sábado, 17 de outubro de 2009

Sobre o militarismo na profissão policial

Não se trata de questionar o modelo militar de ação policial. Este é bem-sucedido em todo o mundo, inclusive no Brasil, e não é exclusivo de instituições policiais militares. O nosso foco é o militarismo praticado pelos exércitos de linha e sua utilidade como instrumental de segurança pública, como ocorre com as Polícias Militares desde que foram criadas, nos velhos tempos del-Rei e dos Imperadores, percorrendo a República e alcançando os dias atuais. Desde antanho, aqui e algures, o problema (ou a solução) universal do militarismo se resume à máxima de que o superior hierárquico sempre tem razão. Num modelo massificado de tropa, em que os entrechoques físicos predominavam nas batalhas, mandar soldados à morte dependia bastante de um poder de comando equivalente ao poder de retaliação. Avançar no terreno sob o fogo inimigo sempre foi algo tenebroso e desproporcional. Para vencer um grupo armado e entrincheirado só cabia avançar sobre ele pisoteando os mortos que antes foram ordenados a tentar o mesmo. Para cada leva de mortos na arrancada desesperadora, havia alguns abatidos do outro lado, e assim seguia a batalha até que sobrassem como vencedores os que contassem maioria absoluta. Se os entrincheirados fossem repostos pela retaguarda protegida, o exército inimigo sucumbia como um asno a disputar com outro as moitas de capim, cada qual puxando o outro para lados contrários, só que, diferentemente da alegoria, numa guerra ambos morrem de fome.



Descumprir ordens extremas durante a guerra era assinar a sentença do fuzilamento sumário e ainda hoje é assim. O exagero procede. Quem já assistiu às reproduções cinematográficas dessas insanas guerras num tempo nem tão remoto, – incluindo-se em relevo a II Grande Guerra, – sabe que não foram poucas as batalhas travadas nesse estilo sangrento. Hoje as guerras esbanjam tecnologia, mas não impedem que elas culminem no combate corpo a corpo a se prolongar indefinidamente. E as mortes se avolumam sob os escombros de vencedores e vencidos, se é que há vencedores em alguma guerra. Tudo, na verdade, se resume ao desprezo do poder estatal pelo ser humano. Em nome desse poder, e de argumentos discutíveis, alguns poucos mandam muitos para a morte nos campos de batalha. Trata-se, pois, de cultura enraizada, em desdobramento do poder absolutista que se representa pelo militarismo até em países que se ostentam como exemplos de democracia.
Eis como chegamos ao militarismo europeu com pitadas norte-americanas exercitado pelas Polícias Militares brasileiras, uma afronta ao direito à vida de seus integrantes, tratados como bonecos enfeitando o ambiente onde morrem. Avançam contra grupos de delinquentes enfiados em meio a comunidades ordeiras de cidadãos (homens, mulheres e crianças faveladas) a lhes servirem de escudo ou trincheira. E os militares estaduais partem ao enfrentamento de um inimigo igual a ele, saído do mesmo estrato social, até seu parente. Não como nas guerras em que os inimigos não possuem a mesma identidade pátria.
Para manter a coesa submissão desses homens, inventam-se para eles alguns ideais irresistíveis; fazem-nos jurar, perante o Pavilhão Nacional, defender a pátria e a sociedade; e juram pela honra obedecer às autoridades, mesmo com o risco da própria vida. Aceitam essa situação extrema os desesperados que vão ao subemprego e ao falso poder a ser usado contra seus iguais em desgraça; falso poder daqueles que fingem que mandam, mas o que só fazem é obedecer ao longo da carreira e da vida. Cerram fileira até morrer ou pagam o alto preço da desobediência com o descarte para o lixão das inutilidades sociais: tornam-se ex-PMs.
Nada demais para o sistema situacional. No fim de contas, há a garantia de reposição na proporção do descontrolado aumento populacional defendido pelas Igrejas para garantir o “rebanho”, sob a “ordem divina” do “crescei e multiplicai-vos”. É assim porque o poder real necessita de mão-de-obra disponível para reposição, e sempre contará com ela neste cruel quadro situacional que se chama “sociedade”. Viva el-Rei!
Não é difícil enxergar esse reduzido poder estatal absolutista a massacrar contingentes humanos pauperizados e sem origem. O número de quem decide pela maioria no Poder Judiciário, por exemplo, e o exemplo não basta, é infinitamente inexpressivo. O número de parlamentares representativos da maioria é uma piada de mau gosto, mais ainda porque esses poucos não representam nada e enricam, assim como aqueles outros detêm o poder de ganhar o maior salário público do país, em detrimento de médicos, enfermeiros, professores, dentistas, policiais, lixeiros etc. Porque manda quem pode e obedece quem tem juízo...
Por que os membros do Poder Judiciário são referenciais de melhores salários? Que justificativa há nisso além do extremado poder que em si concentram numa relação direta com os altos salários que percebem? Que moral nacional ampara a escolha deles de cima para baixo? Ah, sim, a moral é essa: tem de ser de cima para baixo, gado de raça versus gado de rebanho, embora esses privilegiados pelo sobrenome e pelo berço de ouro não sejam mais e melhores que ninguém: comem, defecam, dormem, acordam, sentem náuseas e dores, envelhecem e morrem.
Eis aí, todavia, a diferença: envelhecem e morrem em abastança e alegria, enquanto julgam seus semelhantes em idiossincrasias consagradas entre eles como “entendimento”, “jurisprudência”, “doutrina” e demais solenidades quase que divinas. E o Poder Legislativo cumpre seu papel secundário de representante do povo, como todos veem no cotidiano das maracutaias e dos enriquecimentos ilícitos de seus membros desdobrados no tempo também por conta de sobrenomes e berços de ouro que se reportam ao Brasil Colônia ou a Portugal antes de 22 de abril de 1500.
Por último, o Poder Executivo, reinado de mui pouquíssimos sob o mote de um “majoritário eleitoral”, mas ele pouco ou nada difere dos demais poderes do Estado. Completa uma “santíssima trindade” que se entende inalcançável em suas inconfessáveis alturas, enquanto o povoléu faz o jogo dela a medo de retaliações, dentre as quais a de mandar matar e de mandar morrer. Nesta última modalidade estão os militares estaduais instados a morrer pela pátria, pela sociedade e pelos poderosos (autoridades constituídas sob o manto de outra “santíssima trindade”: o “Estado Democrático de Direito” – Estado, Democracia, Leis).
Nesse meio de cultura, e em zum necessário à nossa reflexão, pode-se afirmar que a realidade do militar estadual aproxima-se do absurdo de Camus: o suicídio; ou do comportamento de rebanho denunciado por Nietzsche; ou dos corpos dóceis criticados por Foucault... Daí, tanto faz elogiar com reservas o PM que matou dois assaltantes, porque o evento desgraçadamente ceifou a vida de um transeunte, ou execrar o PM assaltante flagrado pela rápida ação de seus colegas que mal figuraram nos comentários da prisão do “bandido fardado”. Como se a farda fosse o signo ideal a complementar o vocábulo “bandido”... Não sei... Sempre lembro o jornalista dizendo que “a farda do PM é a menor prisão do mundo, só cabe um ladrão”. Faz sentido, é o que a alta sociedade espera do rebanho, ou seja, que algumas cabeças sejam ofertadas em sacrifício às piranhas: os “bois de piranha”...
Poderiam igualmente ser os “bodes expiatórios” a concentrarem a ira das massas desesperadas, estas que precisam simbolicamente “malhar o Judas”: a “santíssima trindade” – os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário, não necessariamente nesta ordem). Somos, nesse contexto, “bodes” ou “bois de piranha”. Devemos expiar a culpa dos nobres; devemo-nos resignar ou reagir em alegria de “bobos da corte”; devemos usar guizos a barulhar as ruas (nossas sirenes, luzes, cornetas, formaturas e tiroteios), fingindo um poder que não é nosso, mas da “santíssima trindade”, que tem no poder total – somente transferível por laços consanguíneos, – o início, o meio e o fim. Nada demais. Afinal, somos escravos e índios como outrora, somos arraias-miúdas a serem usadas como Bombril – povoléu caminhando que nem cobra pelo chão nos majestosos desfiles militares em homenagem aos Capitães Hereditários hodiernos. E usamos a farda e a arma contra nós mesmos, eis a contraditória síntese do militarismo nas Polícias Militares: somos “Força Pública”, não somos Serviço Público...

4 comentários:

henrique disse...

Prezado eterno Parlamentar Cel Laranjeiras , vosso artigo nesse blog , retrata com propriedade a pirâmide social brasileira , infelizmente , a nós , simples cumpridores das leis , regulamentos e estatutos , cabe a esperança das possibilidades que um " verdadeiro " regime democrático de direito pode proporcionar , dependemos do nosso poder de informação para MOBILIZAÇÃO , sou um inveterado otimista , vislumbro a vitória dos que já fizeram história no cenário mundial , ainda engatinhamos , mas , " o rato acuado ataca " .
São muitas frentes de luta social , torço para que tenhamos lideranças sensíveis a isso , e , que Deus nos abençoe nessa ardua jornada cívica .

paulo fontes disse...

Caro companheiro Larangeira,
Na excelente matéria postada registrei a sua preocupação com a primazia do Poder Judiciário pelos melhores salários da administração pública brasileira.
Não faz muito tempo o senador Cristovam Buarque também manifestou sua preocupação e comparou a situação dos juízes federais americanos com os seus paradigmas brasileiros.
Segundo o senador, enquanto um juiz federal americano recebe $13.000, um professor federal recebe $3.500,
Já no Brasil um juiz federal além de recebe o salário mais alto da administração pública, em torno de R$25.000,00, ganha mais de doze vezes do que um professor federal de nível médio que recebe algo em torno de R$2.000,00.
Ou seja, salário de primeiro mundo com uma contrapartida de produção de quinto mundo e milhares e processos empilhados nas prateleiras empoeiradas dos fóruns.
Não podemos mais aceitar esse tipo de coisa.Não podemos aceitar que em todas as unidades federativas o poder judiciário torre 95% ou mais da sua dotação com pagamento de pessoal.E a lei de responsabilida de fiscal onde fica?
Não podemos mais conviver com as imunidades dos magistrados como se fossem seres acima do bem e do mal.
Saudações
TC FONTES

Edison disse...

Caro Cel. Emir Laranjeira

Primeiramente Gostaria de expressar minha admiração pelos seus textos. Desde de que os descobri, leio-os e reflito.
Sou cadete do 2° ano e gostaria que o senhor escrevesse o que o senhor pensa à respeito do "poder moderador" que possui o Comandante Geral de decidir excluir ou não um policial, contrariando, às vezes, os colegiados e, quais os prejuízos causados à PMERJ, que muitas vezes tem que reincluir tais policiais novamente. Que influências pode sofrer na hora de decidir? Não seria mais justo que a decisão fosse dos próprios conselhos? O próprio CG não seria beneficiado se assim fosse?
Sei que o senhor poderá contribuir conosco, por isso,já agredecemos. Muito Obrigado.
Atenciosamente, 0834 Edison

Emir Larangeira disse...

Você tem razão. Sou contrário a esse "poder moderador", um desprestígio para os membros de Conselhos Disciplinares. Mas a doutrina e a jurisprudência sobre Processos Administrativos Disciplinares, sejam ou não no militarismo, tendem a aceitar a interferência (concordando ou discordando) da autoridade que nomeia os membros de PAD (Processo Administrativo Disciplinar), somente dela e desde que FUNDAMENTADA. A diferença entre nós, da PMERJ, e o mundo civil, e até mesmo entre nós e o mundo militar das FFAA, é que não adequamos a nossa legislação à CRFB. Postei alguns artigos de terceiros no blog (dentre eles um texto primoroso de tenente da PMSP) que ajudam a esclarecer a questão da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
No nosso caso, - e a meu ver, - há um aviltamento das regras pela Corregedoria Interna, que se intromete opinando antes, durante e depois em PADs, quando, na realidade, ela é apenas órgão de assessoramento do Comando Geral, como está na Portaria de sua criação.
O importante, porém, é questionar para aprimorar, dentro da ideia de que a justiça e a disciplina vão de mal a pior na corporação, um problema cultural que até me põe contra esse militarismo que praticamos, "mais realista que o rei": na Marinha de Guerra, a pena disciplinar mais severa é a prisão por dez dias. Há algumas PPMM que evoluíram nessa parte, mas nós, infelizmente, estamos a reboque de quase todas e em quase tudo, menos no sofrimento de ver morrer tantos companheiros, como aconteceu hoje, e ontem, e acontecerá amanhã...

Obrigado pela participação