terça-feira, 28 de junho de 2016

VIOLÊNCIA URBANA IV - A PREVENÇÃO E A REPRESSÃO DA PMERJ NAS FAVELAS




“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)


O perfeito entendimento das ações da PMERJ em favelas não pode prescindir de um esclarecimento antecedente, porquanto decorrem de conceitos nacionais devido à dupla subordinação das Polícias Militares – ao Exército e aos Estados-membros. Este paradoxo conjuntural e estrutural desemboca na cultura profissional que, na verdade, somente tem servido para obscurecer a prática cotidiana da prevenção e da repressão, em razão, principalmente, das distintas responsabilidades das Polícias Militares com a Segurança Pública e com a Segurança Interna. Por esse motivo, é necessário admitir que há uma “dupla prevenção” e uma “dupla repressão” com designações doutrinárias totalmente diferenciadas em relação aos objetivos pretendidos na preservação da Ordem Pública e da Ordem Interna e no tocante ao seu único destinatário: a população. E aí começa o dilema!

No caso da prevenção, teríamos a primeira no campo da Segurança Pública, cujo sentido precípuo é o da proteção dos cidadãos contra os riscos da vida coletiva, sejam ou não tipificados como crime ou contravenção. Nesta situação específica, o pressuposto básico é a obrigação do Estado com a integridade física e o patrimônio dos cidadãos, competindo-lhe a organização de instrumentos garantidores de tal finalidade. Este mecanismo é o que se chama Defesa (Pública ou Interna). Trata-se de conceito material (ser) e formal (dever ser) afinado com a democracia, pois essa proteção é um direito e tem como foco principal o homem: bem maior a ser protegido.

A outra prevenção (Ordem Interna) é, porém, excepcional, aparecendo no momento em que a convivência social perturbada apresenta-se como ameaça ou risco às instituições ou ao próprio Estado. Aqui o foco deixa de ser o cidadão, que passa a representar risco e não o fator a ser priorizado na proteção. Esta é a prevenção da Segurança Interna.

Sintetizando a questão, ela assim poderia ser resumida: na prevenção da Segurança Pública a presença ostensiva de PMs fardados nas ruas objetiva inibir a oportunidade da prática de ilícitos. Complementa-se esta prevenção pelo socorro a pessoas, pelo controle do tráfego de veículos e um sem-número de ocorrências não criminosas (assistenciais e semelhantes); na segunda alternativa de prevenção – da Segurança Interna –, a presença de PMs nas ruas tem caráter intimidador e objetiva, precipuamente, dissuadir os cidadãos no sentido de não exacerbarem em suas manifestações coletivas, de tal modo que possam perturbar a Ordem Interna.

Alguns autores preferem designar esta segunda prevenção ainda no campo da Ordem Pública, mas suas características operativas são muito mais vinculadas à Ordem Interna, até por que é difícil estabelecer o exato momento de transição material de uma para outra.

Com referência à “dupla repressão”, há um ponto comum: o acirramento da coercibilidade objetivando vencer resistências de indivíduos e/ou grupos que se contraponham à lei e à ordem. Na repressão da Segurança Pública, o pressuposto básico é o de que os indivíduos estão singularmente identificados para serem coibidos nos casos de ilícitos penais, não se justificando os excessos no uso desta coercibilidade. Também nas pequenas desordens esta repressão é utilizada, mas o foco principal continua sendo o cidadão, que não pode ter seus direitos ameaçados por criminosos ou desordeiros.

A outra repressão é mais aparatosa e tem como escopo a restauração da Ordem Pública nas situações de desordens mais graves. Esta é de caráter marcadamente militar, com formações de tropa especiais, que predominam sobre o modelo policial rotineiro nas operações policiais-militares. É a repressão da Segurança Interna; por isso seu pressuposto básico é a defesa do Estado e suas Instituições Democráticas, agora ameaçado pelos cidadãos que se manifestam em nitrida desordem. Mas também esta repressão não pode – ou não deveria poder – ultrapassar os limites da lei, a não ser em situações de exceção legal (Estado de Defesa e Estado de Sítio), nos termos e limites impostos pela CRFB.

Embora tudo isso seja facilmente explicável, a prática da “dupla prevenção” e da “dupla repressão” tem-se demonstrado tão complexa que não são poucos os dilemas dos dirigentes PMs no momento de optar por um mecanismo ou outro, ou por ambos. Sem falar, ainda, nas divergências entre os dois senhores que decidem o emprego da Policias Militares nas mais diversas ocasiões: o Estado-Membro e o Exército Brasileiro. É óbvio que atualmente o segundo senhor está inibido, mas também não é demais lembrar que a cultura de emprego das Policias Militares continua sob a égide constitucional da União (entenda-se Exército, vide Inciso XXI do Art. 22 da CRFB).

Neste ponto já é possível restringir a reflexão aos destinatários, mais especificamente ao RJ e sua população, onde a PMERJ se faz representar. Para começar, deve-se destacar o ambiente social fluminense, sem dúvida um dos mais turbulentos do país em termos de criminalidade e manifestações populares. Tal situação tem determinado à PMERJ uma atuação muito dinâmica, ao mesmo tempo em que se vê atordoada pela velocidade dos fenômenos sociais. Há o intenso narcotráfico, os sequestros, os inúmeros assaltos etc., dimensionando-se a Segurança Pública num máximo de sua potencialidade. Por outro lado, as invasões de propriedades privadas por pessoas que não têm onde morar, e outras manifestações populares decorrentes da grave crise social que abala o país contribuem sobremodo para aumentar a tensão da tropa.

A população fluminense reflete indiscutivelmente esse quadro nacional, de tal maneira que é possível distingui-la a partir de dois segmentos bastante diferenciados: os abastados e os pobres. Mesmo sendo grosseira a relação, é válida a distinção entre os moradores do asfalto e os das favelas e bairros não urbanizados. Em termos numéricos, o Padre Antônio Bastos Ávila, sociólogo, lá pela década de 80, apresenta em seus trabalhos o alarmante percentual de 77%, aproximadamente, de pobres, ingentes e miseráveis que compõem a maior parcela da população fluminense (atualmente embolados numa artificiosa “linha de pobreza” em que são postos abaixo dela, claro). Portanto a criminalidade era e ainda é um quadro de Calamidade Social, pois tudo isto permanece exacerbado por uma onda intolerável de criminalidade e violência.

Também é verdadeira a assertiva de que os recursos materiais e humanos da PMERJ estão mais concentrados no asfalto, seja na Região Metropolitana – onde se agrupa a maior parte –, seja no interior do Estado, com ressalva para as gulosas e malfadadas UPPs de agora... No asfalto, é mais fácil observar a prevenção típica de Segurança Pública, organizada com o escopo de proteger talvez a menor parcela da população nas contas do Padre Ávila: os 23%... No asfalto, ainda, observamos o Guarda de Trânsito, as duplas de “Cosme e Damião”, as cabinas, as radiopatrulhas circulando etc., para policiar preventivamente em benefício dos mais afortunados e de maior prestígio. Da mesma forma, a repressão, ainda no campo da Segurança Pública, pode ser observada neste cotidiano, ou seja, atuando no sentido de prevenir e reprimir ilícitos penais, o que, por sinal, não vem funcionando muito bem nos dias de hoje, dada a absurda concentração de efetivos em apenas 40 complexos favelados situados na capital, nas tais unidades de polícia pacificadora (UPPs) que não pacificaram nada.

Do mesmo modo, a prevenção, já com prevalência dos conceitos de Segurança Interna (há os que insistem na tese de que esta prevenção insere-se na Segurança Pública, sem se preocupar com o destinatário da proteção), pode ser bem observada no asfalto. Como exemplo, poderíamos citar a movimentação e a concentração de tropas para inibir piquetes grevistas e dissuadir manifestantes mais afoitos ou violentos. O passo seguinte é a repressão, também diferente em relação aos destinatários a serem protegidos, sem dúvida as instituições e o Estado Democrático de Direito.

Na verdade tudo se resume na organização e na movimentação do sistema de força da PMERJ, cabendo, entretanto, a pergunta: como selecionar recursos para atender com equilíbrio ao problema da Ordem Pública e da Ordem Interna? Como a PMERJ deve encontrar a melhor maneira de obedecer às determinações políticas do Estado-Membro e das autoridades (políticas ou militares) da União? É um paradoxo incontornável, sem qualquer sombra de dúvida, que leva os dirigentes da PMERJ ao máximo do desconforto profissional...

E NAS FAVELAS?...

Nas comunidades carentes inexistem recursos policiais-militares destinados à prevenção com o sentido de proteção. Não há Batalhões, Companhias, Pelotões etc., apesar de esses locais concentrarem, hoje, o maior número de cidadãos. Ou será que não?... Bem, se não forem mais numerosos, basta acrescentar os entornos das favelas (periferia) e a soma fica assim entendida.

Nas favelas não há prevenção, e, diga-se de passagem, nunca houve, assim como seria precipitado culpar os governantes estaduais por essa evidente discriminação a culpa é antes do modelo estrutural imposto aos Estados-membros pela norma constitucional. Os moradores das favelas não gozam do direito assegurado aos congêneres do asfalto no tocante à garantia da sua integridade física e do seu patrimônio. E isto é um contrassenso, pois, afinal de contas, a cultura da Defesa Interna sempre determinou que frações de tropas da PMERJ fossem instaladas em locais de maior concentração demográfica, assim como a prevenção da Segurança Pública sempre foi precípua em relação às demais composições de força. Só não contavam os decididos dirigentes (civis ou militares) que a população marginalizada (não confundir, por favor, com marginais) ampliasse tanto o seu número. Nem contavam que a mágica das UPPs falhasse, o que é inegável. Sim, o coelho entrou, mas não saiu da cartola, e ninguém sabe para onde fugiu. Nem o mágico...

Se não há prevenção nas favelas, nem as com UPPs, é óbvio que aos criminosos fica muito mais fácil a ocupação e a permanência nesses locais. Acresce, ainda, que a proliferação de marginais nas favelas não decorre irrestritamente da crise social, como afirmam os ignorantes e prosélitos, mas da relação direta com a maior quantidade de pessoas que se aglomeram, por imposição do destino e pela incompetência dos dirigentes políticos, nessas comunidades carentes. E é a impunidade, sim, o principal fator condicionante da criminalidade, tanto no asfalto como nas favelas. Por isso, não deixa de ser outra forma de discriminação atribuir como causa da criminalidade a crise social, isto é o mesmo que admitir que o pobre é um criminoso em potencial, que a culpa de existirem favelas é dos favelados.

Mas no asfalto há a prevenção, cujo objetivo é o de inibir a oportunidade do cometimento de crimes. Nas favelas não há a não ser a segunda prevenção, aquela intimidativa e indiscriminada, e que se confunde com repressão. Quando as PATAMOS atuam nas favelas, mesmo com objetivos preventivos, a tensão dos PMs é maior. Tal fato, aliado à incapacidade da PMERJ de singularizar com acerto os verdadeiros criminosos – pois não é a sua função prioritária, mas sim da PCERJ, que, por sua vez, também tem problemas estruturais e conjunturais como obstáculos à eficiência e à eficácia de suas ações –, acaba gerando suspeitas sobre trabalhadores, estes, em maior número, que geralmente são confundidos e tratados como bandidos. E quando um PM suspeita e revista um trabalhador, mesmo em nome da prevenção, isso já é repressão. E neste caso o cidadão está sendo discriminado, e a PMERJ, em nome de conceitos confusos, está é cometendo crime de abuso de poder.

A repressão, mais que a prevenção, representa o máximo da confusão nas relações da PMERJ com as comunidades carentes. Quando a primeira repressão, aquela de natureza policial, é dirigida erradamente contra trabalhadores confundidos com bandidos – e isto ocorre diariamente –, a comunidade revolta-se e reage. Aí o caos é total e a solução é mais repressão: aquela outra, de Segurança Interna, mesmo, com tropa de choque, BOPE e tudo mais.

Diz a Carta Estadual que “ninguém será discriminado (...) por qualquer particularidade ou condição”. Considerando-se que o inverso da discriminação é a igualdade, que, por sua vez, é um dos pilares da democracia, pode-se assegurar que as comunidades carentes não têm acesso aos reais benefícios deste tão almejado sistema político de vida coletiva. E isto não é sofisma, pois são conceitos cristalinos. As UPPs não sanaram a grave questão da extensão e da profundidade da criminalidade do tráfico e seus inúmeros crimes conexos, em especial os de sangue, dentre os quais o assassinato de civis e de muitos PMs em emboscadas perpetradas em locais urbanos de deveria estar permanentemente policiados, mas não estão porque faltam PMs e meios materiais, edis que atualmente concentrados em UPPs no mais terrível engodo estatal que há se viu na história da corporação, com todo respeito aos milhares de companheiros e companheiras PMs que policiam esses 40 lugares com denodo, suor, sangue e morte estúpida e gratuita... Ufa!

É hora, portanto, de repensar o sistema de forças, e o primeiro pressuposto é o de que não há mais possibilidade de o Estado-Membro continuar sem direito de ter sua própria polícia. E esta tem de ser civilista e completa – englobando as atividades de polícia administrativa e judiciária –, além de controlada pela sociedade e não o contrário. Não se trata de discutir se o modelo será ou não militar, isto é outra discussão. Mas esta decisão não pode demorar, o tempo urge e está a exigir a consolidação de um modelo policial que atenda verdadeiramente à democracia em todos os níveis da sociedade, assegurando paz e tranquilidade aos cidadãos ricos e pobres. Indistintamente, como manda a Constituição do Estado do Rio de Janeiro:

Art. 9º - O Estado do Rio de Janeiro garantirá, através de lei e dos demais atos dos seus órgãos e agentes, a imediata e plena efetividade dos direitos e garantias individuais e coletivos, mencionados na Constituição da República, bem como de quaisquer outros decorrentes do regime e dos princípios que ela adota e daqueles constantes dos tratados internacionais firmados pela República Federativa do Brasil.

§ 1º - Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição.


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