“O mundo está perigoso para se viver! Não por
causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta
de que não viram.” (Albert Einstein)
O perfeito entendimento das ações da PMERJ em favelas
não pode prescindir de um esclarecimento antecedente, porquanto decorrem de
conceitos nacionais devido à dupla subordinação das Polícias Militares – ao Exército
e aos Estados-membros. Este paradoxo conjuntural e estrutural desemboca na
cultura profissional que, na verdade, somente tem servido para obscurecer a
prática cotidiana da prevenção e da repressão, em razão, principalmente, das
distintas responsabilidades das Polícias Militares com a Segurança Pública e
com a Segurança Interna. Por esse motivo, é necessário admitir que há uma “dupla
prevenção” e uma “dupla repressão” com designações doutrinárias totalmente
diferenciadas em relação aos objetivos pretendidos na preservação da Ordem Pública
e da Ordem Interna e no tocante ao seu único destinatário: a população. E aí
começa o dilema!
No caso da prevenção, teríamos a primeira no campo da
Segurança Pública, cujo sentido precípuo é o da proteção dos cidadãos contra os
riscos da vida coletiva, sejam ou não tipificados como crime ou contravenção. Nesta
situação específica, o pressuposto básico é a obrigação do Estado com a
integridade física e o patrimônio dos cidadãos, competindo-lhe a organização de
instrumentos garantidores de tal finalidade. Este mecanismo é o que se chama Defesa
(Pública ou Interna). Trata-se de conceito material (ser) e formal (dever ser) afinado
com a democracia, pois essa proteção é um direito e tem como foco principal o
homem: bem maior a ser protegido.
A outra prevenção (Ordem Interna) é, porém, excepcional,
aparecendo no momento em que a convivência social perturbada apresenta-se como
ameaça ou risco às instituições ou ao próprio Estado. Aqui o foco deixa de ser
o cidadão, que passa a representar risco e não o fator a ser priorizado na
proteção. Esta é a prevenção da Segurança Interna.
Sintetizando a questão, ela assim poderia ser
resumida: na prevenção da Segurança Pública a presença ostensiva de PMs
fardados nas ruas objetiva inibir a oportunidade da prática de ilícitos.
Complementa-se esta prevenção pelo socorro a pessoas, pelo controle do tráfego
de veículos e um sem-número de ocorrências não criminosas (assistenciais e
semelhantes); na segunda alternativa de prevenção – da Segurança Interna –, a
presença de PMs nas ruas tem caráter intimidador e objetiva, precipuamente,
dissuadir os cidadãos no sentido de não exacerbarem em suas manifestações
coletivas, de tal modo que possam perturbar a Ordem Interna.
Alguns autores preferem designar esta segunda
prevenção ainda no campo da Ordem Pública, mas suas características operativas
são muito mais vinculadas à Ordem Interna, até por que é difícil estabelecer o
exato momento de transição material de uma para outra.
Com referência à “dupla repressão”, há um ponto comum:
o acirramento da coercibilidade objetivando vencer resistências de indivíduos e/ou
grupos que se contraponham à lei e à ordem. Na repressão da Segurança Pública,
o pressuposto básico é o de que os indivíduos estão singularmente identificados
para serem coibidos nos casos de ilícitos penais, não se justificando os
excessos no uso desta coercibilidade. Também nas pequenas desordens esta
repressão é utilizada, mas o foco principal continua sendo o cidadão, que não
pode ter seus direitos ameaçados por criminosos ou desordeiros.
A outra repressão é mais aparatosa e tem como escopo a
restauração da Ordem Pública nas situações de desordens mais graves. Esta é de
caráter marcadamente militar, com formações de tropa especiais, que predominam
sobre o modelo policial rotineiro nas operações policiais-militares. É a
repressão da Segurança Interna; por isso seu pressuposto básico é a defesa do
Estado e suas Instituições Democráticas, agora ameaçado pelos cidadãos que se
manifestam em nitrida desordem. Mas também esta repressão não pode – ou não
deveria poder – ultrapassar os limites da lei, a não ser em situações de
exceção legal (Estado de Defesa e Estado de Sítio), nos termos e limites
impostos pela CRFB.
Embora tudo isso seja facilmente explicável, a prática
da “dupla prevenção” e da “dupla repressão” tem-se demonstrado tão complexa que
não são poucos os dilemas dos dirigentes PMs no momento de optar por um
mecanismo ou outro, ou por ambos. Sem falar, ainda, nas divergências entre os dois
senhores que decidem o emprego da Policias Militares nas mais diversas
ocasiões: o Estado-Membro e o Exército Brasileiro. É óbvio que atualmente o
segundo senhor está inibido, mas também não é demais lembrar que a cultura de
emprego das Policias Militares continua sob a égide constitucional da União
(entenda-se Exército, vide Inciso XXI do Art. 22 da CRFB).
Neste ponto já é possível restringir a reflexão aos
destinatários, mais especificamente ao RJ e sua população, onde a PMERJ se faz
representar. Para começar, deve-se destacar o ambiente social fluminense, sem
dúvida um dos mais turbulentos do país em termos de criminalidade e
manifestações populares. Tal situação tem determinado à PMERJ uma atuação muito
dinâmica, ao mesmo tempo em que se vê atordoada pela velocidade dos fenômenos
sociais. Há o intenso narcotráfico, os sequestros, os inúmeros assaltos etc.,
dimensionando-se a Segurança Pública num máximo de sua potencialidade. Por
outro lado, as invasões de propriedades privadas por pessoas que não têm onde
morar, e outras manifestações populares decorrentes da grave crise social que
abala o país contribuem sobremodo para aumentar a tensão da tropa.
A população fluminense reflete indiscutivelmente esse
quadro nacional, de tal maneira que é possível distingui-la a partir de dois
segmentos bastante diferenciados: os abastados e os pobres. Mesmo sendo
grosseira a relação, é válida a distinção entre os moradores do asfalto e os
das favelas e bairros não urbanizados. Em termos numéricos, o Padre Antônio
Bastos Ávila, sociólogo, lá pela década de 80, apresenta em seus trabalhos o
alarmante percentual de 77%, aproximadamente, de pobres, ingentes e miseráveis
que compõem a maior parcela da população fluminense (atualmente embolados numa
artificiosa “linha de pobreza” em que são postos abaixo dela, claro). Portanto a
criminalidade era e ainda é um quadro de Calamidade Social, pois tudo isto permanece
exacerbado por uma onda intolerável de criminalidade e violência.
Também é verdadeira a assertiva de que os recursos
materiais e humanos da PMERJ estão mais concentrados no asfalto, seja na Região
Metropolitana – onde se agrupa a maior parte –, seja no interior do Estado, com
ressalva para as gulosas e malfadadas UPPs de agora... No asfalto, é mais fácil
observar a prevenção típica de Segurança Pública, organizada com o escopo de
proteger talvez a menor parcela da população nas contas do Padre Ávila: os
23%... No asfalto, ainda, observamos o Guarda de Trânsito, as duplas de “Cosme
e Damião”, as cabinas, as radiopatrulhas circulando etc., para policiar
preventivamente em benefício dos mais afortunados e de maior prestígio. Da
mesma forma, a repressão, ainda no campo da Segurança Pública, pode ser
observada neste cotidiano, ou seja, atuando no sentido de prevenir e reprimir
ilícitos penais, o que, por sinal, não vem funcionando muito bem nos dias de
hoje, dada a absurda concentração de efetivos em apenas 40 complexos favelados
situados na capital, nas tais unidades de polícia pacificadora (UPPs) que não
pacificaram nada.
Do mesmo modo, a prevenção, já com prevalência dos
conceitos de Segurança Interna (há os que insistem na tese de que esta
prevenção insere-se na Segurança Pública, sem se preocupar com o destinatário
da proteção), pode ser bem observada no asfalto. Como exemplo, poderíamos citar
a movimentação e a concentração de tropas para inibir piquetes grevistas e
dissuadir manifestantes mais afoitos ou violentos. O passo seguinte é a
repressão, também diferente em relação aos destinatários a serem protegidos,
sem dúvida as instituições e o Estado Democrático de Direito.
Na verdade tudo se resume na organização e na movimentação
do sistema de força da PMERJ, cabendo, entretanto, a pergunta: como selecionar recursos
para atender com equilíbrio ao problema da Ordem Pública e da Ordem Interna?
Como a PMERJ deve encontrar a melhor maneira de obedecer às determinações
políticas do Estado-Membro e das autoridades (políticas ou militares) da União?
É um paradoxo incontornável, sem qualquer sombra de dúvida, que leva os dirigentes
da PMERJ ao máximo do desconforto profissional...
E NAS FAVELAS?...
Nas comunidades carentes inexistem recursos
policiais-militares destinados à prevenção com o sentido de proteção. Não há
Batalhões, Companhias, Pelotões etc., apesar de esses locais concentrarem,
hoje, o maior número de cidadãos. Ou será que não?... Bem, se não forem mais
numerosos, basta acrescentar os entornos das favelas (periferia) e a soma fica assim
entendida.
Nas favelas não há prevenção, e, diga-se de passagem,
nunca houve, assim como seria precipitado culpar os governantes estaduais por
essa evidente discriminação a culpa é antes do modelo estrutural imposto aos
Estados-membros pela norma constitucional. Os moradores das favelas não gozam
do direito assegurado aos congêneres do asfalto no tocante à garantia da sua
integridade física e do seu patrimônio. E isto é um contrassenso, pois, afinal
de contas, a cultura da Defesa Interna sempre determinou que frações de tropas
da PMERJ fossem instaladas em locais de maior concentração demográfica, assim
como a prevenção da Segurança Pública sempre foi precípua em relação às demais
composições de força. Só não contavam os decididos dirigentes (civis ou
militares) que a população marginalizada (não confundir, por favor, com
marginais) ampliasse tanto o seu número. Nem contavam que a mágica das UPPs
falhasse, o que é inegável. Sim, o coelho entrou, mas não saiu da cartola, e
ninguém sabe para onde fugiu. Nem o mágico...
Se não há prevenção nas favelas, nem as com UPPs, é
óbvio que aos criminosos fica muito mais fácil a ocupação e a permanência nesses
locais. Acresce, ainda, que a proliferação de marginais nas favelas não decorre
irrestritamente da crise social, como afirmam os ignorantes e prosélitos, mas
da relação direta com a maior quantidade de pessoas que se aglomeram, por
imposição do destino e pela incompetência dos dirigentes políticos, nessas
comunidades carentes. E é a impunidade, sim, o principal fator condicionante da
criminalidade, tanto no asfalto como nas favelas. Por isso, não deixa de ser
outra forma de discriminação atribuir como causa da criminalidade a crise
social, isto é o mesmo que admitir que o pobre é um criminoso em potencial, que
a culpa de existirem favelas é dos favelados.
Mas no asfalto há a prevenção, cujo objetivo é o de
inibir a oportunidade do cometimento de crimes. Nas favelas não há a não ser a
segunda prevenção, aquela intimidativa e indiscriminada, e que se confunde com repressão.
Quando as PATAMOS atuam nas favelas, mesmo com objetivos preventivos, a tensão
dos PMs é maior. Tal fato, aliado à incapacidade da PMERJ de singularizar com acerto
os verdadeiros criminosos – pois não é a sua função prioritária, mas sim da PCERJ,
que, por sua vez, também tem problemas estruturais e conjunturais como
obstáculos à eficiência e à eficácia de suas ações –, acaba gerando suspeitas
sobre trabalhadores, estes, em maior número, que geralmente são confundidos e
tratados como bandidos. E quando um PM suspeita e revista um trabalhador, mesmo
em nome da prevenção, isso já é repressão. E neste caso o cidadão está sendo
discriminado, e a PMERJ, em nome de conceitos confusos, está é cometendo crime
de abuso de poder.
A repressão, mais que a prevenção, representa o máximo
da confusão nas relações da PMERJ com as comunidades carentes. Quando a
primeira repressão, aquela de natureza policial, é dirigida erradamente contra
trabalhadores confundidos com bandidos – e isto ocorre diariamente –, a
comunidade revolta-se e reage. Aí o caos é total e a solução é mais repressão:
aquela outra, de Segurança Interna, mesmo, com tropa de choque, BOPE e tudo
mais.
Diz a Carta Estadual que “ninguém será discriminado
(...) por qualquer particularidade ou condição”. Considerando-se que o inverso
da discriminação é a igualdade, que, por sua vez, é um dos pilares da democracia,
pode-se assegurar que as comunidades carentes não têm acesso aos reais benefícios
deste tão almejado sistema político de vida coletiva. E isto não é sofisma,
pois são conceitos cristalinos. As UPPs não sanaram a grave questão da extensão
e da profundidade da criminalidade do tráfico e seus inúmeros crimes conexos,
em especial os de sangue, dentre os quais o assassinato de civis e de muitos
PMs em emboscadas perpetradas em locais urbanos de deveria estar
permanentemente policiados, mas não estão porque faltam PMs e meios materiais,
edis que atualmente concentrados em UPPs no mais terrível engodo estatal que há
se viu na história da corporação, com todo respeito aos milhares de companheiros
e companheiras PMs que policiam esses 40 lugares com denodo, suor, sangue e
morte estúpida e gratuita... Ufa!
É hora, portanto, de repensar o sistema de forças, e o
primeiro pressuposto é o de que não há mais possibilidade de o Estado-Membro continuar
sem direito de ter sua própria polícia. E esta tem de ser civilista e completa
– englobando as atividades de polícia administrativa e judiciária –, além de controlada
pela sociedade e não o contrário. Não se trata de discutir se o modelo será ou
não militar, isto é outra discussão. Mas esta decisão não pode demorar, o tempo
urge e está a exigir a consolidação de um modelo policial que atenda
verdadeiramente à democracia em todos os níveis da sociedade, assegurando paz e
tranquilidade aos cidadãos ricos e pobres. Indistintamente, como manda a
Constituição do Estado do Rio de Janeiro:
“Art. 9º - O Estado do Rio de Janeiro garantirá,
através de lei e dos demais atos dos seus órgãos e agentes, a imediata e plena
efetividade dos direitos e garantias individuais e coletivos, mencionados na
Constituição da República, bem como de quaisquer outros decorrentes do regime e
dos princípios que ela adota e daqueles constantes dos tratados internacionais
firmados pela República Federativa do Brasil.
§ 1º - Ninguém será discriminado, prejudicado ou
privilegiado em razão de nascimento, idade, etnia, raça, cor, sexo, estado
civil, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas,
deficiência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer
particularidade ou condição.”
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