“O mundo está perigoso para se viver! Não por
causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta
de que não viram.” (Albert Einstein)
O que é a verdade?...
“O que é a realidade?” (Brian Greene1)
“Einstein e a física quântica derrubaram a
objetividade imparcial: a mente e a realidade são inseparáveis.” (Marcelo Gleiser2)
Há, – entre o que aparenta ser e o que
efetivamente é, – há um abismo.
Dependendo do BEM ou do MAL que a decisão entre uma coisa e outra possa afetar
terceiros, esse abismo não pode ser suprido por nenhuma ponte imaginária. A
ponte há de ser concreta, e àqueles que, por ofício, é delegada a função de
construí-la, não é dado o direito de divagar em ilusões no sentido de alterar o
projeto segundo alguma vontade subjetiva e distanciada do verdadeiro objetivo
da ponte, que é o de atar dois caminhos reais momentaneamente interrompidos por
um capricho da natureza ou por erro de cálculo. Se os cálculos não forem
exatos, se a distância entre um lado e outro do abismo não for precisa, se os
materiais escolhidos não forem de boa qualidade, e se o planejamento da obra
não for meticuloso e cercado de cuidados, a ponte pode vitimar pessoas antes
mesmo de concluída. Portanto, depois de construída, a ponte deve suportar o
peso para o qual foi projetada.
Como se vê, não é fácil construir ou
reconstruir pontes para transpor abismos. Mais difícil ainda (senão impossível)
é construir uma ponte para ligar a mentira à verdade. A tendência é a de uma
rejeitar a outra, como a matéria rejeita a antimatéria. Mas pode levar muito
tempo e jamais reparar os danos. Deste modo, e partido do princípio de que a
verdade é, e a mentira somente aparenta ser, mas não é, o primeiro passo é
reconhecer que não há como estabelecer uma relação sadia entre o ser e o
não-ser. E, quando o interesse é o desvelar da verdade, não no campo
metafísico, mas no material, no substancial, ela não pode decorrer de nenhuma
revelação, que é atributo divino. Encontrar, pois, a verdade real, verdadeira,
substancial e palpável, para depois atá-la a outra verdade real, verdadeira,
substancial e palpável, como efeito da que lhe deu causa, não é tarefa simples.
Esta é a ponte a que me refiro, ou seja, a ponte capaz de ligar duas verdades
incontestáveis.
Por exemplo, é da lógica que um
interruptor, ao ser ligado, acenda a lâmpada. Esse teste repetido
sistematicamente provará que o interruptor é um dos lados do abismo e a lâmpada,
o outro. Daí a verdade real, substancial e palpável é o interruptor e a outra,
a lâmpada. Mas, para corroborar categoricamente tal afirmação, o sucesso do
teste é imprescindível. Ocorre, porém, que a natureza costuma pregar peça aos
que a ela se entregam sem a devida cautela. Pois, de súbito, o manuseio do
interruptor não acende a lâmpada e a escuridão impera num ambiente que se
destinara a ser visível pela luz gerada. A ponte entre uma verdade e outra é,
então, destruída, e necessita de ser restaurada. E começa o processo de
reconstrução a partir do aparentemente óbvio: a lâmpada cumpriu seu tempo de
uso e queimou. Retira-se então a lâmpada, que é testada em outro bocal, mas se
conclui que ela não queimou...
Pronto: o problema simples torna-se
complexo. Se o defeito estiver em mãos de especialista, claro que ele testará o
próprio bocal para saber se a energia nele continua a chegar com o interruptor
ligado. Para sua surpresa, a energia continua a chegar, concluindo-se que o
defeito não é da lâmpada nem do interruptor nem relacionado a outras variáveis
antecedentes. O defeito sugere ser uma variável interveniente: talvez o bocal
necessite de troca. Seguindo essa lógica, e sem testar mais miudamente, o bocal
é trocado e a lâmpada é então recolocada: eis a ponte reconstruída com
objetividade. Mas, desgraçadamente, ao ligar o interruptor, a lâmpada insiste
em não acender e a escuridão predomina sobre a aparente verdade absoluta da luz
que deveria ser jorrada...
O especialista persegue a verdade ainda
não revelada pela tecnologia que domina e por suas modernas ferramentas de
medição. Aí descobre que o ato de ligar o interruptor e acender a luz está
interrompido, na realidade, por um defeito no disjuntor instalado no quadro
geral de distribuição da energia consumida. Pronto! Problema sanado: troca-se o
disjuntor, liga-se o interruptor e a lâmpada finalmente... Não acende...
Suado, o especialista resolve testar o
quadro de distribuição próximo do relógio, já do lado de fora da casa. Está
ligado e enviando a energia para o outro quadro; ele então testa a chegada da
energia ao disjuntor e percebe que está normal. A partir daí inicia sua via
crucis, ou seja, desvelar quantos pontos de consumo da energia além daquele
sistema fechado (interruptor-lâmpada) são dependentes do mesmo disjuntor. Para
tanto, ele se vê obrigado a mil e um testes com os demais disjuntores, até
concluir que a verdade consiste no fato de haver um novo eletrodoméstico,
ligado em tomada distante, aumentando o consumo simultâneo de energia além da
capacidade do disjuntor relacionado à lâmpada...
Eureca! Finalmente a verdade! Basta
instalar um disjuntor mais potente e problema resolvido! O disjuntor é trocado
e tudo funciona simultaneamente. A família está feliz, paga o esforço hercúleo
do especialista, que também se felicita pelo encontro da verdade tão
dolorosamente buscada. Mais tarde, liga-se o novo aparelho e a luz acende. Tudo
perfeito, até que o fio se derrete dentro do conduíte, em curto-circuito, e
explode um princípio de incêndio que a família não consegue conter.
Em pânico, a família aciona o Corpo de
Bombeiros, que, mesmo vindo rápido, dá tempo ao fogo de consumir vorazmente a
casa, assim destruindo o vestígio primordial: o fio que ligava o interruptor e
a tomada era incompatível com a energia consumida durante um tempo maior pela
lâmpada acesa e pelo eletrodoméstico simultaneamente acionado. O fio deveria
ter sido trocado... O especialista não teve tirocínio nem paciência para testar
sua verdade ainda inconclusa. E adveio o desastre...
Toda essa digressão é para demonstrar
que não é simples, no plano físico, ter-se certeza da verdade. Como revelação,
no plano metafísico, não se discute, é questão de fé de cada indivíduo. Mas na
ciência é tarefa complexa e muitas vezes impossível, dependendo de quem a busca
e quais critérios se escolhe para alcançar a verdade substancial. Por exemplo,
a inferência é uma técnica sugerida pela Metodologia da Pesquisa Científica.
Ensinam Cervo, A. I. & Bervian, P. A. – Metodologia da Pesquisa Científica
– Makron Books do Brasil Editora Ltda. – Editora McGraw-Hill Ltda. São Paulo,
4ª Edição, pág. 33:
Pela
inferência o espírito é levado a tirar conclusões a partir de premissas
conhecidas. Inferir é tirar uma conclusão de uma ou várias proposições dadas,
nas quais está implicitamente contida (...). A inferência, como se vê, é uma
operação que leva a concluir algo a partir de certos dados antecedentes. É uma
extensão do conhecimento. É uma passagem do conhecimento ao não conhecido.
Implica uma espécie de salto dos dados estabelecidos e verdades aceitas para
novas verdades com elas relacionadas.
Como se
depreende, a subjetividade é tão tamanhona que quem faz a inferência tem de
crer na existência do espírito (a “mente” de Platão). Não crendo nele como
verdade, nem mesmo é possível começar o processo de inferência para “saltar” o
abismo entre “dados estabelecidos e verdades aceitas para novas verdades com
elas relacionadas”. Enfim, encontrar a verdade para afirmá-la é um dos desafios
maiores da ciência, incluindo a ciência natural, especialmente a Física
Quântica e suas parentelas próximas, como a Física Clássica, Astrofísica e a
Matemática etc., todas incompletas no que se refere ao conhecimento da verdade
da existência do Universo e de todas as suas coisas, inclusive nós, seres
autodenominados humanos e pensantes, mas que somente sabem que nascem para
morrer, se é que nascem e morrem não necessariamente nesta ordem...
Tão
invencível dúvida está presente nas mentes mais pródigas dos tempos remotos e
presentes. Brian Greene, em sua obra Tecido do Cosmo (Companhia das Letras,
2004), logo no Prefácio, ao se referir à dificuldade de dar respostas sobre a
“natureza do universo”, desafia:
Nossa viagem
também nos levará, repetidas vezes, a outra questão, estreitamente relacionada
com esta e tão abrangente e difícil como ela: o
que é a realidade? Nós, seres humanos, temos acesso às experiências
internas da percepção e do pensamento. Como podemos, então, estar certos de que
essas experiências internas refletem verdadeiramente o mundo exterior? Os
filósofos se dedicaram a esse problema há muito tempo (...). E os físicos, como
eu, têm a nítida consciência de que a realidade que observamos – a matéria evolui no cenário do espaço e do tempo – pode ter
muito pouco a ver com a realidade externa, se é que existe. (...) escolhemos
para ser nossos guias os dados objetivos e o arcabouço da matemática, e não a
imaginação desenfreada ou o ceticismo implacável. (Grifo nosso)
Resistindo à minha vontade de sublinhar
toda a citação, de tão esclarecedora do que não se pode esclarecer pela
“imaginação desenfreada” ou pelo “ceticismo implacável”, vou a Sócrates para
registrar a sua máxima vencedora dos séculos: “Eu sei que nada sei”. E prossigo
em minhas dúvidas garimpando compêndios para tentar encontrar a verdade no
vasto campo do Direito, com o foco no testemunho do sujeito sobre algum objeto.
Alcanço, então, o ensinamento do Ministro Moacyr Amaral Santos, contido
na sua obra Da Prova Judiciária no Cível e no Comercial, Max Limonad, 4º Ed.,
1972, III Vol., pág. 208:
A verdade,
relativamente a um fato certo, determinado, concreto, é e não pode deixar de
ser uma só. Assim, não se compadecem com o testemunho idôneo afirmações contraditórias
ou incongruentes. (...) De declarações contraditórias, ou seja, narrações do
mesmo fato entre si repugnantes, não resulta prova alguma. Donde a máxima: – são suspeitas por vício
no depoimento as testemunhas que depõem de modo contraditório ou vário,
afirmando coisas entre si diversas e repugnantes (...). A testemunha vária ou
contrária entre si na mesma causa, e no mesmo juízo, sobre fato substancial,
não prova e se reputa falsa, e se julga falsa no seu todo (...).
Quando estabeleço a relação
sujeito-objeto, adentro o campo mais complexo da filosofia, permeado de dúvidas
e contradições sobre a verdade contida nessa relação, que, sem outra
possibilidade, foi convencionada para facilitar a comunicação entre os seres
humanos. Daí, quando afirmamos que uma taça de vinho é uma taça de vinho, a
associação se complementa entre muitos povos até de linguagem diferente, desde
que, entre esses povos, o determinante se ajuste ao determinado, e não
necessariamente nesta ordem. Mas, se apenas afirmarmos que uma taça é uma taça,
a comunicação se torna abissal, bastando pensar numa taça representativa de
vitória em alguma modalidade esportiva.
Portanto, antes de se pensar em
afirmar algo sobre algum objeto, o sujeito tem de reconhecer o objeto em máxima
concretude. E quando esse objeto é um fato ou um fenômeno, a complexidade dele
põe em xeque o sujeito; e ele, neste momento de dúvida, pode optar por
estabelecer a verdade à vista de dogmas ou ideologias defendidas como verdades
insofismáveis por terceiros, com estes pressionando o sujeito, por vias
ignominiosas, no sentido de estabelecer a mentira como verdade. Eis o poder
contaminado, que no mundo sensível (ou insensível) predomina sobre qualquer
verdade tornando-a mentira.
No campo do Direito, onde nos
fixamos em busca da verdade, sem, entretanto, perder o foco nas demais ciências
e na filosofia, encontramos o ensinamento do processualista José Joaquim Calmon
de Passos:
Todo Direito
assenta num fato. E qualquer modificação no fato importa diversificação do Direito.
Por conseguinte, em última análise, não há justiça efetiva onde o fato
fundamentado no Direito não foi posto com exatidão.
Com efeito,
a inexatidão do fato não permite a inferência da verdade nele contida. Peca-se
na origem, que não pode ser reconstruída nem como encenação posterior do que
poderia ter havido antes. É o que se denomina, na linguagem jurídico-policial,
“reconstituição do fato”. Em se tratando de crime, seria a “reconstituição do
crime”. E se o fato é um crime, presume-se autoria e culpa de alguém. E se o
crime é de sangue (homicídio), e não há dúvida quanto à autoria, há ressalvas
relevantes para se demonstrar como verdade principalmente a culpa e/ou o dolo
(crime culposo ou doloso) ou a não-culpa (excludentes de criminalidade).
Vencida esta
fase, a verdade real concretizada, chega-se à certeza como última etapa da
inferência, que deve ser exaustiva e isenta de ânimo, especialmente por quem
detém o poder de decidir sobre a vida e a liberdade de algum ser humano. Para
tanto, é inevitável que o poder de decisão esteja em mãos e mentes
experimentadas, maduras, conscientes, e, sobretudo, capazes de isentamente
inferir, por dedução ou indução, a exatidão do fato, que só pode ser uma. Se o
detentor do poder, todavia, não se colocar como expectador isento e se entregar
a uma das partes como membro efetivo e defensor da causa dogmática ou
ideológica, mesmo que tal ocorra por pressão e o detentor da decisão se
acovarde, há o risco de a mentira ocupar o lugar da verdade e danificar a vida
de muitas gentes concomitantemente. Sobre esse perigo, vale transcrever um
ensinamento importante:
Mas se as
coisas não podem ser falsas por si mesmas, podem ser falsificadas pela obra do
homem, que maliciosamente é capaz de imprimir nelas uma alteração enganadora
naquelas determinações de lugar, tempo ou modo, que constituem a subjetividade
formal da prova material; e o investigar se a coisa é ou não falsificada,
pertence à avaliação subjetiva, enquanto tende a fixar credibilidade subjetiva
da coisa probatória, isto é, a estabelecer se a coisa material se apresenta com
a missão subjetiva de provar o verdadeiro que vem da natureza, ou se, ao
contrário, vem da malícia humana modificada para produzir uma falsa
verificação, especialmente para enganar. (Malatesta, Nicola Framarino Dei, in
“A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995, Vol. II, pág. 369).
Desnecessário
informar sobre a importância do autor, reconhecido internacionalmente no mundo
jurídico-filosófico. E quando assim ele se expressa, não o faz para criticar,
mas para ensinar o que não deve ser feito por quem detém o poder sobre a
conduta alheia em nome do Estado, o que indica a serventia generalizada do
ensinamento. Em outras palavras, poderíamos acrescentar: aquele que concentra o
poder legal de opinar sobre pessoas ou julgá-las deve ter em mente que sua
errônea ou maliciosa opinião ou sua equivocada ou tendenciosa decisão em
prejuízo de outrem (ser humano), se assim acontecer, reduzem a sua condição ao
nível mais desprezível que se pode supor.
Enfim,
aquele que cabe opinar sobre a conduta alheia não pode divagar em ficções para
agradar a correntes político-ideológicas nem se dar ao luxo de opinar ou
decidir com base em suas próprias ideologias, dogmas, estereótipos etc. Exigir
isso de um ser humano, falível e impressionável em todos os sentidos, não é
simples, mormente num país em que o poder político interfere nas carreiras
públicas com forte influência totalitarista e o nepotismo político grassa como
praga incontrolável.
Inclui-se
ainda como fator preponderante a associação desse poder político com a grande
mídia, que, além de incontestável tendência ideológica de esquerda, tem no
sensacionalismo ao modo Kane sua lógica de mercado. Portanto, a mídia não
costuma ser amiga da isenção e da verdade; ademais, adora demonizar pessoas que
não atendem à parcialidade dos seus nefastos princípios, assim como ama
heroificar quem reza na sua cartilha. Para tanto, vive mais de ficção que de
realidade; vive mais de odiosa tendenciosidade, vive do que não é verdadeiro,
não exalta a justiça e o equilíbrio: único caminho da verdade. E, por falar em
ficções, tornam-se oportunas as palavras
do grande jurista Ferrara, na obra Büiow,
Civilprozess. Fictionem und Wahreiten (Arq. f. civ. Prax., 62, p.
1/6. Biermann, B. R. 92) "Trattato". Athenaeum,
Roma, 1921, nº 9, pág. 50:
De
qualquer maneira, se ficções são
toleráveis na lei, das ficções deve
fugir a ciência. Ficções são
mascaramentos da verdade, e a ciência, que tem por missão descobrir a verdade, não pode contentar-se com um artifício. Toda ficção é um problema não resolvido.
Não
há como prosseguir no raciocínio sem novamente jorrar luz na obra de Malatesta,
já que intentamos demonstrar quão difícil é o encontro da realidade papável, ou
da verdade real, fator indispensável a qualquer decisão sobre o objeto
apreciado, o fato, no caso, uma forçada acusação de duplo homicídio:
A
verdade sensível nem sempre é percebida, nem sempre se pode apreender por via
imediata; muitas vezes a ela se chega por via mediata: partindo de uma verdade
sensível, diretamente percebida, passando-se a afirmar outra verdade não
percebida diretamente. Um fato físico que nos conduz ao conhecimento de outro,
físico ou moral; e aquele fato que nos conduz ao conhecimento de um outro não
diretamente percebido constitui a sua prova. É sempre a reflexão intelectiva que nos guia do
conhecido ao desconhecido; e nos guia por meio do raciocínio. O raciocínio,
instrumento universal da reflexão, é a primeira e mais importante fonte da
certeza do crime. (Ibidem, Vol. I, pág. 29, SARAIVA, 1970, SP)
A
preciosidade da obra de Malatesta sobre a verdade racionalizada, ou seja,
despida de sentimentalismo, não se esgota nela. Malatesta vai além de vários
ensinamentos anteriores e posteriores, tornando-se sempre atualíssimo. E nos
inspira a grafar a notável indagação do filósofo Jean Beaufret, em O Poema
de Parmênides, traduzido por Hélio L. Barros e Mary A. L. de Barros:
Mas
se a designação da verdade como
revelação só é
inteligível relacionada com uma não-revelação mais inicial, não devemos
concluir que a revelação da verdade tenha como efeito destruir a não-verdade do
ocultamento, extorquindo-lhe uma revelação daquilo que ele, por natureza, tem
de ocultar?
A revelação é dependente da
fé. Está além da ciência e da tecnologia. Não se coaduna com a razão. Dela,
portanto, não se pode servir o responsável por uma opinião ou um julgamento,
como se fazia nos tempos remotos o Santo Ofício. A Inquisição, por conta da
“verdade revelada”, torturou, torrou e afogou milhões inocentes, matando-os sem
contemplação. As Cruzadas dizimaram milhões de inocentes. Saber, portanto, o
que seja a verdade em contraposição à não-verdade só é factível por via da
razão, deixando de lado quaisquer rasgos de ideologia ou dogma quando se trata
de opinar sobre prática de crime por alguém, ou de julgá-lo em decorrência de
falsa opinião. Concluir Por meio da emoção é mais que erro, é tão absurdo como
o suicídio. Usar alguma autoridade a emoção fundada em vaidades estimuladas,
enfim, em retóricas cruéis, tendo como arma o poder estatal que lhe é
conferido, é matar moralmente o indivíduo antes de condená-lo fisicamente aos
grilhões, levando ao abismo o erradamente réu e sua família. Fazer tamanha
crueldade em nome de ilusões ou em apego doentio a estereótipos é mais que
absurdo: é crime contra a Humanidade:
III – O princípio de toda a
soberania reside essencialmente na razão;
nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane
diretamente. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS
DO HOMEM E DO CIDADÃO).
Toda essa digressão objetiva ajudar um tenente da
Polícia Militar que responde por duplo homicídio decorrente de ação policial
inevitável durante serviço de supervisão, quando, na verdade, deveria tudo ser
encerrado num Auto de Resistência. A versão do tenente é simples e direta: ele,
acompanhado de um Aspirante-a-Oficial PM e de um Cabo PM (motorista), na
localidade conhecida como Cantagalo, em Niterói, deparou com uma motocicleta na
via principal (estrada) que liga o Centro da cidade à Região Oceânica.
O motociclista, ao perceber a viatura policial,
disparou em fuga, sendo por isso perseguido. Num determinado momento, o carona
se voltou para trás e fez dois disparos de revólver em direção à viatura
policial. O tenente, – que se encontrava ao lado do motorista, e armado com
fuzil (do Estado), – reagiu à injusta agressão e disparou contra o agressor,
atingindo-o frontalmente (o agressor estava com a cabeça voltada para trás para
atirar na direção da guarnição). O projétil do fuzil, por esta razão comprovada
em exame cadavérico, transfixou o pescoço da vítima, indo atingir mortalmente o
condutor da moto. Em consequência, a moto desgovernou-se e ainda em alta
velocidade colidiu frontalmente com um veículo que vinha na pista em sentido
contrário.
O veículo atingido conduzia um casal, – motorista e
esposa, – que sofreu lesões leves, com a mulher alegando tontura nos primeiros
momentos posteriores à colisão. Depois de acionar a ambulância do Corpo de
Bombeiros e solicitar reforço para cuidar da ocorrência de trânsito, o tenente
decidiu mandar socorrer as vítimas, que faleceram de caminho, permanecendo ele
no local objetivando localizar a arma do agressor. Verificando meticulosamente
o local do grave incidente, o tenente logrou localizar a arma: um revólver
Rossi, calibre 38, com numeração raspada: arma típica de bandido. Em função do
acidente de trânsito (fato conduzido antes à DP pela guarnição convocada para
tal labor específico), – e na sequência do fato principal (reação aos tiros
desferidos pelo agressor), – o tenente assumiu a responsabilidade pela
ocorrência principal: conduziu pessoalmente o fato à 79ª DP, sendo atendido por
um policial civil de bermuda e camiseta, que se encontrava de plantão nessas
condições.
E o policial civil, em vez de acionar o delegado de
plantão, que não se encontrava presente, ou outro delegado de polícia em DP
localizada em Niterói, simplesmente registrou a ocorrência (RO) geradora de
duas vítimas fatais do modo como o tenente relatou e fez constar no TRO
referente. Deste modo, e por falta de iniciativa da polícia Civil, não foi
lavrado o Auto de Resistência indispensável ao caso, assim como nenhum delegado
de polícia cuidou, neste primeiro momento, de providenciar as medidas legais de
perícia na arma para recolher as impressões digitais do agressor, bem como
requisitar do IML a prova de resíduo de pólvora nas mãos do agressor que fizera
uso do revólver disparando dois tiros contra a guarnição. Essas duas
providências eram fundamentais como prova técnica da agressão sofrida e
relatada pelo tenente, sendo certo que ele assumiu de imediato a autoria do
disparo que atingiu mortalmente os dois ocupantes da moto em fuga.
Posteriormente, – em virtude de manifestações
típicas de favelados protestando contra a polícia e anunciando que os jovens
motoqueiros “não eram bandidos”, – o sistema oficial reagiu ao clamor
incriminando o tenente e seus auxiliares. O tenente, pelo duplo homicídio e
fraude processual (artigo 121, § 2º, Incisos I e II, na forma do artigo 69 (duas
vezes) e 347, parágrafo único, todos na forma do artigo 69 do Código penal); os dois membros da guarnição,
por fraude processual (artigo 347 do CP).
Toda essa falsa opinião, como se observa na denúncia,
baseia-se tão-somente no que o Parquet
designa como “contundente prova oral produzida”, ou seja, decorrente de
testemunho diverso em relação ao fato em si, já que não assistiram ao evento a
não ser em momento posterior, como curiosos. Somente o casal, em tese, poderia
testemunhar sobre o fato, e o fez de maneira extremamente facciosa, repetindo
ou assinando seus preparados depoimentos, em 15/03/2009, ou seja, sete dias
após os fatos, com frases idênticas, decerto sugeridas por quem fez a tomada
dos depoimentos na 79ª DP. Porque, na data do fato (08/03/2010), o casal
afirmou em dependências policiais história diferente...
É aberrante a sugestão
ilícita geradora dos ajustados depoimentos de 15/03/2010, bastando citar um
pequeno trecho de ambos. Pela ordem, disse Anderson da Conceição Silva,
motorista do auto atingido pela moto: “que escutou as rajadas de fuzil em sua
direção, vendo os fragmentos passando ao seu lado esquerdo (...) chegando a
supor que era o alvo”. Caramba! Como ele “viu” esses fragmentos “passando”?
Será que ele é superdotado? Que suposição bem encaixada!... E num momento logo
adiante ele afirma “que sua esposa bateu com a cabeça no pára-brisa ficando um
pouco tonta; que o declarante abriu os olhos...” caramba! Ele “viu” de olhos
fechados os fragmentos passando ao seu lado e achou que “era o alvo”! Como
pôde?... Com a ressalva, por ele confirmada, de que o seu carro não fora
atingido por nenhum dos fragmentos que ele “viu” de olhos fechados...
Já a esposa dele, Tatiana Coelho dos Santos, – mas
que se diz “solteira” na sua qualificação, tal como ele igualmente se declara
(“solteiro”), – a esposa dele afirma que “bateu com a cabeça no pára-brisa
ficando um pouco tonta”, ou seja, repete com absoluta precisão a mesma frase
anotada no depoimento do seu marido; e em local ermo (era noite), e tonta, ela
assegura peremptoriamente que as vítimas “já estavam mortas”. Como pode ela,
“um pouco tonta”, decerto em pânico diante do havido, e sem ser especialista
(não era médica nem enfermeira), afirma em “contundente prova oral” (na ótica
do Parquet) que os motociclistas
agressores “estavam mortos”? E o faz em duas oportunidades do seu segundo
depoimento na DP. E mais: com a desgraçada coincidência de o referido casal (?)
residir na mesma comunidade do Cantagalo, local de residência de todos os
curiosos, além de notório homizio de traficantes armados. Ora, arrenego!...
Sobre a sugestão ilícita, figura
bastante conhecida no mundo jurídico-penal, vale transcrever o ensinamento do
mestre Nicola Framarino Dei
Malatesta, in “A Lógica das Provas em
Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995, Vol. I, págs. 106/7:
Mas,
ordinariamente, a sugestão se apresenta como violação da liberdade subjetiva da
testemunha, e é por isso ilícita. A sugestão ilícita pode ser de três espécies:
violenta, fraudulenta e culposa. A sugestão violenta sugere as respostas por
meio do temor, a fraudulenta por meio do engano gerado pelo dolo do interrogante,
a culposa por meio do engano pela negligência do interrogante. (...).
Consideramos em geral a sugestão como violação da liberdade subjetiva do
interrogado; mas ela é contrária à verdade mesmo quando possa eventualmente
emprestar ao interrogado as armas para mentir, dando-lhe um conhecimento dos
fatos que podem facilitar e tornar mais verossímeis suas mentiras.
Acontece que na data dos fatos, em 08/03/2009, o
casal relatou na DP a seguinte versão (sic): [“ANDERSON DA CONCEIÇÃO SILVA –
Relata que estava indo para a sua residência; que na ESTRADA CAETANO MONTEIRO
ouviu disparos de arma de fogo e viu que a moto com dois elementos estava em
alta velocidade na contramão vindo em sua direção; que o mesmo se abaixou no
interior do veículo e sentiu um impacto verificando que a moto colidiu de
frente com seu veículo, que rodou, e ao sair do veículo, atordoado, se afastou
um pouco e observou que os elementos estavam caídos na via e observou que os
mesmo estavam sendo socorrido pelos policiais-militares; que seu veículo ficou
no local aguardando a perícia; que não se machucou, só ficando tonto no momento
da batida.”]; [“TATIANA COELHO DOS SANTOS – Relata que estava acompanhada de
ANDERSON; que os mesmo estavam indo para a residência; que viu quando vinha a
moto vinha pela contramão, abaixando no interior do veículo quando sentiu o
impacto, ficando meio tonta; que ao sair do carro verificou que os elementos
estavam caídos na calçada sendo socorridos por policiais militares.”]
É fácil perceber como a memória do casal foi
“refrescada” após sete dias (15/03/2010), enquanto que na data dos fatos
(08/03/2010) a natural oralidade do casal difere totalmente dos depoimentos
posteriores, com convenientes acréscimos para ajustar a nova versão à má
intenção das autoridades de polícia judiciária no sentido de prejudicar o
tenente.
Por sinal, o policial civil AGOSTINHO RODRIGUES DA
SILVA NETO, por iniciativa do seu chefe, delegado de polícia titular da 79ª DP,
respondeu a procedimento administrativo exatamente por desconsiderar a versão
do tenente apresentada em 08/03/2009, “para apurar a DESÍDIA, em tese, em
desfavor do policial AGOSTINHO, tendo em vista que o mesmo narrou na dinâmica
‘troca de tiros’ e havendo a apreensão de arma de fogo suprimida”. Isto sem se
considerar outras providências inadiáveis que o referido policial civil deveria
tomar em vista do fato real narrado pelo tenente. Ora, nem há necessidade de se
saber qual o resultado da “sindicância sumária”, embora tenha havido aberrante
prevaricação do policial civil, que, aliás, na data dos fatos não se preocupou
em acionar o delegado titular ou algum delegado adjunto para conduzir a grave
ocorrência precisamente narrada pelo tenente.
Do mesmo modo, nota-se a preocupação da Oficial de
Cartório ISABELLA ROQUE DOS NASCIMENTO SILVA, matrícula 888.619-4, que buscou
nos depoimentos “de conduta” firmar uma “cristalina idoneidade” de dois jovens
de menor idade, um de “apenas 15 anos” e outro de “apenas 16 anos”, com um
deles, sem habilitação, a pilotar uma motocicleta em via de trânsito rápido, em
alta velocidade, portando um revólver raspado, com o carona disparando dois
tiros em direção à viatura que os perseguia.
Dentro desta mesma linha de protecionismo,
deliberaram os denunciantes pela “imaturidade” dos adolescentes, com o fito de
minimizar o grave fato de que não eram tão criancinhas assim e sabiam mui bem o
que faziam. Mais paradoxal, para não se dizer aberrante, é o fato de o Parquet considerar o uso do fuzil contra
os dois agressores, como afirma na denúncia, “de forma desproporcional”, como
se reagir aos disparos de um revólver calibre 38 com tiros de fuzil fosse culpa
de quem o portava: um fuzil fornecido pelo Estado para uso em serviço.
Seria o caso de indagar se algum PM, ao ser atacado
por agressor armado de faca, disposto a matá-lo, devesse usar o fuzil como
“borduna de bugre” para a reação ser do agrado dos promotores de justiça. Ora!
Arrenego!... E tudo, como alega no desfecho da facciosa denúncia, fundado em
“contundente prova oral”, que, na realidade, resume-se a um rol de moradores da
comunidade do Cantagalo que não presenciaram o fato. Demais disso, residem em
local infestado de traficantes, como, aliás, ocorre nas demais favelas de
Niterói, com a agravante da migração de bandidos oriundos das favelas ocupadas
por Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), aumentando deveras os perigos
enfrentados cotidianamente pelo policiamento ostensivo.
Também é aberrante o destaque dado ao desidioso
policial civil AGOSTINHO RODRIGUES, que, como está grafado na denúncia (sic),
“confeccionou o 1º registro de ocorrência em que os PMs apenas informaram sobre
a ocorrência de um acidente de veículo quando na realidade tinha ocorrido
disparos de arma de fogo, tipo fuzil.” Ora, omite convenientemente o Parquet que esses primeiros PMs cuidaram
tão-somente da ocorrência de trânsito, confeccionando inclusive o indispensável
BRAT, enquanto os demais envolvidos no tiroteio socorriam as vítimas devido à
demora da chegada da ambulância do Corpo de Bombeiros, aliás, acionada pelos
PMs denunciados.
E depois, sim, eles se dirigiram à DP para relatar
o fato principal, de responsabilidade exclusiva deles, não apenas narrando o
ocorrido como também apresentando a arma usada pelos menores infratores contra
a guarnição. E quem registrou tudo isso foi exatamente o policial civil
AGOSTINHO RODRIGUES, considerando o delegado de polícia Luiz Mariano da
Fontoura Xavier, titular da 79ª DP, a sua conduta funcional como “desidiosa”,
claro que “em tese”, instituindo desde logo a “brecha” para livrar o desidioso
PC de punição. Desídia, aliás, insanável, porque não havia autoridade
competente na DP para comandar todo o processo apuratório, este que deveria
incluir, no primeiro momento, o pedido de recolhimento de impressões digitais
no revólver apresentado pelo tenente, bem como a verificação de resíduo de
pólvora e alguma zona de esfumaçamento que costuma comprovar que determinada
mão disparou um revólver, fato mais que sabido no mundo policial, ministerial e
judicial. Enfim, incompleto exatamente nos aspectos favoráveis ao relato do
tenente, a autoridade policial não inseriu os quesitos aqui sublinhados, como
se infere do LAUDO DE EXAME EM ARMA DE FOGO E MUNIÇÃO, que, por sua vez,
confirma ser a arma boa para matar e apresentar cartuchos por ela disparados,
como de fato foram apresentados, faltando, contudo, aprofundar a perícia para
se ter a certeza de que o percussor que feriu a espoleta é o da arma, o que
caracterizaria o disparo recente, prejudicado em todos os sentidos. Porque é
certo que o perito jamais poderia afirmar em que momento a arma fora utilizada,
mas apenas que havia dois cartuchos esvaziados, tudo conforme o relato do
tenente.
Importa, neste ponto, consignar QUE O LAUDO DE
EXAME EM LOCAL DE OCORRÊNCIA DE TRÂNSITO, inicia-se afirmando que o local
estava “preservado”, eis que “acautelado pelo cabo Xavier, RG 70.046, viatura
54-3650. Já o LAUDO DE EXAME CADAVÉRICO do IML prende-se tão-somente aos
quesitos requisitados pelo delegado da 78º DP, que, por sinal, não cobre a
região onde o fato ocorreu. Não houve, portanto, nenhum pedido de exame de
impressões digitais dos cadáveres e nem do revólver, sendo certo que o carona
FELIPE MARIANO PEREIRA BRITO, de “apenas 15 anos”, carona da moto que fez uso
do revólver 38, recebeu um impacto frontal do projétil, prova técnica, esta
sim, contundente, de que ele estava com a cabeça voltada para trás. Disso se
infere que, numa moto em alta velocidade, a cabeça voltada para trás não tinha
outro objetivo que não fosse o de visualizar o alvo (a viatura policial) para
atirar, daí FELIPE MARIANO PEREIRA BRITO receber de volta a reação do tenente à
sua injusta agressão. O laudo de exame cadavérico não deixa dúvida quanto à
penetração do tiro, que, transfixando o pescoço de agressor, culminou acertando
o piloto da moto, JOÃO GABRIEL DE MATOS, de “apenas 16 anos”, sendo certo que
os médicos legistas não concluíram ter sido a morte decorrente de “meio
insidioso ou cruel”.
Percebe-se, pelos floreios eloquentes dos
signatários da denúncia, em concerto medonho com uma polícia judiciária que
propositadamente ignorou o seu dever de produzir todas as provas técnicas, que,
aliás, poderiam até ser desfavoráveis ao tenente, uma tendência claramente
maniqueísta, ou seja, consideraram os membros da Polícia Militar, que se
arrisca na defesa do BEM, como o MAL a ser combatido. Porque, enquanto os PMs
cumpriam rigorosamente o dever de estar nas ruas de madrugada protegendo a
população, a Polícia Civil se fazia ausente na DP, não existindo nem equipe
mínima. Reduzia-se a um policial civil desidioso, a atender de bermuda e
camiseta quem lá comparecesse. Enfim, apenas era o titular da chave das
dependências policiais para não fechá-la de vez. Essa inversão de valores,
nitidamente ideológica, é desanimadora. Abusam todos (Polícia Civil e
Ministério Público) do direito de perseguir e punir como nos nefastos tempos da
Inquisição ou do Nazismo. Não entendem o valor da vida e da liberdade nos
limites corretos e isentos, que vale para quem está cumprindo a lei
oficialmente, sob juramento, de doar a vida em favor da sociedade, mas nem por
isso perdem a condição fundamental do direito à vida e à liberdade como seres
humanos que enfrentaram bancos escolares, concursos públicos e cursos
exaustivos exatamente para gozar da mínima credibilidade social. Como afirmou o
Dr. Ophir Cavalcante Junior, presidente nacional da Ordem dos Advogados do
Brasil, outro dia, em artigo publicado em O
Globo (17/11/2010): “(...) Nos limites da lei, por não existir direito
absoluto, e até os direitos sagrados à vida e à liberdade se esmaecem frente,
respectivamente, à legítima defesa e à prisão por ato criminoso (...).”
Ora, que estava numa pista de trânsito rápido em
alta velocidade, ou seja, praticando conscientemente a direção perigosa, e em
sendo perseguidos pela guarnição da PMERJ, em vez de parar reage à abordagem
com o carona atirando de revólver no tenente, foram os dois adolescentes, que,
ao contrário do que defendem os signatários da denúncia, tinham idade mais que
suficiente para responder por seus atos criminosos. Aliás, em muitos países
democratas e civilizados os jovens dessa idade podem até ser condenados à pena
máxima dependendo do crime que cometam. Mas a falta de isenção do MP, que
considera falaciosa a versão oficial narrada na DP e escorada em prova técnica
que à Polícia Civil cabia aprofundar com a indispensável isenção, mas não o
fez, torna a denúncia, esta sim, falaciosa.
Apelam os signatários da denúncia para uma grave
acusação sem provas além dos depoimentos de parentes e amigos dos agressores
mortos (decerto eles não são detentores da unanimidade garimpada com esse fim).
Dão conta de que as vítimas eram pessoas idôneas e só estavam praticando a
direção perigosa montados numa moto em via de trânsito rápido porque não
possuíam, em virtude da idade (“apenas 15 anos e apenas 16 anos”), a necessária
maturidade. Enfim, lembra a afirmação do MP sobre a “imaturidade” de dois
jovens já alcançando a idade adulta, portanto maduros o suficiente, a prática
de vergonhosos oximoros do tipo “valentia covarde” e “inocente culpa”. Tanto
que a denúncia gasta mais tinta para sacralizar os agressores e bem menos tinta
para demonizar os agentes públicos da PMERJ que cumpriam serviço e se
defenderam de injusta agressão com os meios que lhe são proporcionados pelo
Estado. Ora, os fuzis usados pela polícia não são de uso particular. É a arma
distribuída às guarnições em vista dos perigos proporcionais que os PMs
enfrentam nas ruas e são feridos e morrem às pencas.
A falta de critério técnico da Polícia Civil e a
deliberada vontade de não investigar o fato com a precisão devida demonstram
claramente o facciosismo de um Inquérito Policial Civil, que, de tão
manipulado, nem pode ser denominado como investigação criminal. O preparo
posterior dos depoimentos visando aos pontos que gerariam a denúncia foi
caprichado pelos depoentes sob a ilícita e descarada sugestão da oficial de
cartório que os conduziu. Abundam malícias insustentáveis no sentido de excluir
a arma utilizada contra os agentes públicos da PMERJ, para, assim, preparar o
terreno para a denúncia exagerar o uso do fuzil contra os agressores. Ora, são
aberrantes as contradições entre os primeiros relatos do casal que teve o carro
colidido pela moto, em 08/03/2009, e seus depoimentos em 15/03/2009. E basta
ressaltar uma das aberrações: ANDERSON, com seus olhos fechados, – e abaixado
dentro do carro, – mesmo assim “viu” passar do seu lado “fragmentos dos tiros
de fuzil”, achando inclusive que ele “era o alvo”. Façanha como essa desmerece
a idoneidade do testemunho como um todo, sendo certo que as demais
contradições, igualmente aberrantes, são “café pequeno”. Ah, não há como não
reiterar veementemente o dizer do Ministro Moacyr Amaral Santos, contido
na sua obra Da Prova Judiciária no Cível e no Comercial, Max Limonad, 4º Ed.,
1972, III Vol., pág. 208:
A verdade,
relativamente a um fato certo, determinado, concreto, é e não pode deixar de
ser uma só. Assim, não se compadecem com o testemunho idôneo afirmações
contraditórias ou incongruentes. (...) De declarações contraditórias, ou seja,
narrações do mesmo fato entre si repugnantes, não resulta prova alguma. Donde a
máxima: – são suspeitas por vício no depoimento as testemunhas que depõem de modo
contraditório ou vário, afirmando coisas entre si diversas e repugnantes (...).
A testemunha vária ou contrária entre si na mesma causa, e no mesmo juízo,
sobre fato substancial, não prova e se reputa falsa, e se julga falsa no seu
todo (...).
Neste ponto, e para encerrar, retomo a ideia
inicial do eletricista para demonstrar que o exercício da lógica, por meio de
inferências, existe para buscar a verdade real ou substancial, ou seja, a
verdade dos fatos. Portanto, em processo criminal não se justifica nenhum
floreio eloquente e palavrórios rebuscados com o fim único de danificar a
verdade e fazer prevalecer a mentira em desfavor de alguém. O cunho nitidamente
ideológico do Inquérito Policial Civil e da Denúncia do MP dele decorrente
emerge como partitura estudada por duas orquestras para a apresentação de um
concerto como se fossem uma. Mas não tratamos de palco nem de encenações mal
treinadas por atores e atrizes ruins nos seus misteres. Tratamos de decisão
sobre a vida funcional, pessoal e familiar de agentes da lei que cumpriam com
os seus deveres e reagiram à injusta agressão, cuidando, inclusive, de socorrer
as vítimas, e depois se apresentando à DP como manda o figurino. Só que, lá na
DP, havia apenas um servidor público desidioso, “em tese”, que conduziu a
ocorrência com a competência de um asno vestido de bermuda. Ou seja, não
estamos diante de um processo crime, mas de uma ficção direcionada como fuzil
em rajada contra policiais-militares que apenas cumpriam missão perseguindo
infratores sem etiqueta indicando serem menores de idade (questão apenas de lei
a determinar como menores marmanjões adolescentes). Intentam, deste modo
ignominioso, matar física e moralmente três agentes públicos que apenas
cumpriam com o seu dever de coibir o ilegal, e, em função disso, reagiram à
injusta agressão armada. O resto é ficção mal engendrada pela malícia humana, um
perigo para uma sociedade a mais e mais atingida fatalmente por “menores” como
os que, desta feita, não tiveram a sorte de se tornar heróis do crime por matar
PMs.
Mas as autoridades policiais civis, em concerto de
vontade com os membros do Ministério Público, não inovaram em matéria de
comportamento. Nietzsche (Para além do bem e do mal), ao afirmar que
a “vontade não-livre” é mitologia, o
filósofo desfere com a assertividade que norteia toda a sua obra filosófica:
Na vida real apenas se trata de vontade forte e de vontade fraca. Quase sempre é o sintoma de que lhe falta alguma coisa,
quando um pensador, em todo “encadeamento causal”, em toda “necessidade
psicológica” experimenta uma espécie de constrangimento, uma necessidade, uma
obrigação, uma pressão, uma ausência de liberdade. Trata-se de verdadeira
traição sentir assim – e é a própria pessoa que se trai. E mais, se bem
observei, a “não-liberdade da vontade” é vista como problema sob dois prismas
completamente diferentes, mas sempre de um modo profundamente pessoal: uns não querem, a todo preço,
renunciar à sua “responsabilidade”, à fé em
si mesmos, ao direito pessoal ao seu mérito
– as raças vaidosas estão nesse conjunto –, os outros, opostamente, não querem
responsabilizar-se por nada, ter culpa de nada, e procuram, impelidos por um
íntimo autodesprezo, poder descarregar
o fardo do seu eu seja onde for. Quando escrevem livros, estes últimos têm hoje
o hábito de defender a causa dos criminosos. O seu disfarce mais conveniente é
uma espécie de piedade socialista. Efetivamente, o fatalismo dos fracos de
vontade embeleza-se espantosamente quando sabe apresentar-se a si mesmo como la religion de La souffrance humaine. É
o seu “bom gosto”.” (Grifos do autor)
A acusação contra o tenente é a verdade caindo de
ponta-cabeça e se espatifando no chão, destruída, de modo a que seus fragmentos
pudessem ser juntados e reconstruídos como uma nova “verdade” (a não-verdade
dos fatos, o falso indiciamento e a falsa opinião): a de que, para considerar o
tenente um criminoso cruel, necessário se fazia instituir uma enormidade de
fantasias, metonímias, metáforas, deste modo urdindo a ilusão desde antes
combinada entre seus mentores. Grotesca ilusão, aliás, por via da qual a
verdade naturalmente apresentada pelo oficial da PM não interessou nem como
possibilidade a ser contestada pelos poderosos que lhe retiraram as vísceras e
lhe destruíram a alma. Seus desafetos institucionais nem mesmo atuaram com o
foco num dualismo para comparar um lado e outro da história, sopesando-os em
isenção. Pior fizeram ignorando a produção de provas técnicas que, em tese, até
poderiam ser inconvenientes ao tenente. Por que não buscaram as digitais no
revólver e os resíduos de pólvora (zona de queimadura e esfumaçamento somente
factíveis pelo método da parafina)? Ora, seus algozes (ou algozes da
instituição PM) defenderam com falsos argumentos posteriores a intenção
pré-adotada de culpar o tenente por uma desgraça da qual poderia ter-se saído
vítima fatal, caso fosse ele atingido pelos tiros do revólver. Ou seus
companheiros, que somente com ele contava para a reação possível nas
circunstâncias em que o fato se desenrolou.
1. Greene, Brian – O tecido do cosmo – Companhia das letras
– São Paulo, 2005. Brian Greene graduou-se na Universidade Harvard e
doutorou-se na Universidade de Oxford. Em 1990 tornou-se professor da faculdade
de Física da Universidade de Cornell e, em 1995, recebeu o título de professor
catedrático. Em 1996, transferiu-se para a Universidade Colúmbia, onde hoje é
professor de física e matemática. Foi convidado para palestras em mais de 25
países e é responsável por importantes descobertas da teoria das supercordas.
Seu primeiro livro, O universo elegante,
foi finalista do Prêmio Pulitzer.
2.
Marcelo Gleiser, brasileiro, é Escritor (livros traduzidos: A
Dança do Universo, O Fim do Céu e da Terra, e Criação
Imperfeita),
Professor de Filosofia Natural (Appleton) e Professor de Física e Astronomia em
Dartmouth College, dentre outras
atividades científicas, filosóficas e literárias que o destacam no mundo
acadêmico nacional e internacional. (http://marcelogleiser.blogspot.com).
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