quinta-feira, 3 de setembro de 2015

DELAÇÃO PREMIADA III



“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)

Para encerrar a reflexão sobre o tema, afirmo que uma das funções mais importantes da atividade policial é a investigação criminal. Na realidade, a investigação criminal é uma técnica baseada em lógica que independe do “faro policial”. Carece, sim, de ferramentas científicas e tecnológicas que permitam a busca da verdade substancial sobre determinado fato tipificado como contravenção ou crime. Esta verdade substancial deve ser tenazmente perseguida, tal como ocorre em pesquisas científicas, de modo que futuras decisões policiais, ministeriais e judiciais se apoiem em situações concretas e não em suposições e falsas opiniões.

Dentro desta linha de raciocínio, não seria demais assegurar que a investigação criminal deve primar por seu caráter científico, de modo que a verdade buscada seja efetivamente encontrada. Claro, portanto, que qualquer testemunho tem valor relativo, não podendo jamais ser prova absoluta. Mais ainda nos devemos acautelar em relação à confissão, que é um componente humano, não sendo raro no mundo judicial confissões falsas e até de autoincriminação. Neste contexto puramente emocional, calcado num moralismos geralmente distanciado da razão, emerge por último a delação feita por criminosos para atingir comparsas. Mais tenebroso é tudo isto quando a confissão maculada na origem é ainda premiada...

Ora bem, quando um criminoso se predispõe a acusar seus comparsas, é muito fácil ao seu interlocutor lhe sugerir alguma linha de conduta. Torna-se-lhe mais fácil ainda direcionar essas acusações contra terceiros (alvos) em forma de confissão, revestindo-a em formato de “verdade absoluta”, a ponto de dispensar a investigação de natureza científica. E aí vem a célere denúncia destroçando reputações...

Como nos estamos referindo a comportamento humano, não há como não admitir que todo o processo de delação, premiada ou não, nasce doente, com fortes possibilidades de atingir a podridão moral. Sobre a moral, assim se expressou Friedrich Wilhelm Nietzsche em Aurora: “A moral, contudo, não dispõe somente de toda espécie de meios de intimidação para manter à distância as investigações e os instrumentos de tortura: sua segurança se baseia ainda mais numa certa arte de sedução que possui — ela sabe “entusiasmar”. Ela consegue muitas vezes com um simples olhar paralisar a vontade crítica e até atraí-la para seu lado, havendo casos em que a lança mesmo contra si própria: de modo que, como o escorpião, crava o aguilhão em seu próprio corpo.”

Vejamos então alguns exemplos em que mestres do Direito condenam esse tipo de prova (delação) no processo criminal, em especial por ferir a indispensável lógica que deve nortear a investigação. Só para ilustrar, inicialmente destaco um dizer importante sobre “sugestões ilícitas”, da lavra de Nicola Framarino Dei Malatesta in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995, Vol. I, págs. 106/7:

“Mas, ordinariamente, a sugestão se apresenta como violação da liberdade subjetiva da testemunha, e é por isso ilícita. A sugestão ilícita pode ser de três espécies: violenta, fraudulenta e culposa. A sugestão violenta sugere as respostas por meio do temor, a fraudulenta por meio do engano gerado pelo dolo do interrogante, a culposa por meio do engano pela negligência do interrogante. (...). Consideramos em geral a sugestão como violação da liberdade subjetiva do interrogado; mas ela é contrária à verdade mesmo quando possa eventualmente emprestar ao interrogado as armas para mentir, dando-lhe um conhecimento dos fatos que podem facilitar e tornar mais verossímeis suas mentiras”.

Sobre o caráter secreto da “Lava-Jato”, eis o que nos ensina outro importante mestre, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, na sua obra “Dos Delitos e Das Penas”, Ediouro Ltda. RJ, págs. 41/2:

“As acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessário em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e pérfidos (...). Quem poderá defender-se da calúnia quando esta se arma com o escudo mais sórdido da tirania: o sigilo?”.

Voltando à delação, não se pode negar o perigo de se dar muito crédito a quem não deve merecê-lo:

“Há crimes que, pela sua natureza, exigem uma baixeza de espírito inconciliável com o senso moral, donde o ter sido condenado por tais crimes inspira suspeita sobre a credibilidade da testemunha; (...) crime revelador da frieza de cálculo e torpeza de ajuste; (...) todas as condenações, em suma, por crimes que implicam uma torpe baixeza de espírito, não conciliável com o senso moral, são motivos absolutos de suspeita contra a testemunha.” (Malatesta, in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Saraiva, 1960, Vol. II, pág. 56).

Ora, a delação premiada é espécie de transformação de réus em “testemunhas” de delitos comuns aos membros da mesma quadrilha, pondo-os em “briga de foice no escuro”, jogando-os uns contra os outros. Pior ainda quando a delação garante o prêmio da impunidade:

“A promessa de impunidade, contrato imoral entre as leis e o delinquente, além de ser um erro jurídico é um erro probatório; de um lado, incita ao delito, corrompe e perturba a sociedade com o espetáculo da liberação de um réu, que quase sempre não só é maior como mais perverso; do outro, perturba todo o critério probatório, gerando, por obra de leis, na consciência do acusado um impulso poderosíssimo para as falsas revelações”. (Ibidem, Vol. II, pág. 213).

Ainda sobre a se dar crédito a criminosos, vejam Altavilla, in “Psicologia Judiciária”, 3º Vol., 1959, Armênio Amado Coimbra, pág. 180: 

“(...) a experiência judiciária nos previne de que há malfeitores audaciosos que têm a impudência de fazer narrações pormenorizadíssimas. E tenha-se presente que a veridicidade do pormenor também não é um elemento seguro para deduzir que seja verdadeira a indicação do co-réu, porque não é raro o caso de, num quadro perfeitamente conforme a verdade, se colocar um indivíduo que lhe é perfeitamente estranho, como acontece quando se pretende salvar o verdadeiro culpado”.

E sobre a verdade diz o Ministro Moacyr Amaral Santos in “Da Prova Judiciária no Cível e no Comercial”, Max Limonad, 4º Ed., 1972, III Vol., pág. 208:

“A verdade, relativamente a um fato certo, determinado, concreto, é e não pode deixar de ser uma só. Assim, não se compadecem com o testemunho idôneo afirmações contraditórias ou incongruentes. (...) De declarações contraditórias, ou seja, narrações do mesmo fato entre si repugnantes, não resulta prova alguma. Donde a máxima: - são suspeitas por vício no depoimento as testemunhas que depõem de modo contraditório ou vário, afirmando coisas entre si diversas e repugnantes (...). A testemunha vária ou contrária entre si na mesma causa, e no mesmo juízo, sobre fato substancial, não prova e se reputa falsa, e se julga falsa no seu todo (...)”.

Isto nos impõe, ainda, a referência ao ensinamento do eminente processualista José Joaquim Calmon de Passos:

“Todo Direito assenta num fato. E qualquer modificação no fato importa diversificação do Direito. Por conseguinte, em última análise, não há justiça efetiva onde o fato fundamentado no Direito não foi posto com exatidão”.

Se não bastasse, vejam novamente Nicola Framarino Dei Malatesta:

“Mas se as coisas não podem ser falsas por si mesmas, podem ser falsificadas pela obra do homem, que maliciosamente é capaz de imprimir nelas uma alteração enganadora, naquelas determinações de lugar, tempo ou modo, que constituem a subjetividade formal da prova material; e o investigar se a coisa é ou não falsificada, pertence à avaliação subjetiva, enquanto tende a fixar credibilidade subjetiva da coisa probatória, isto é, a estabelecer se a coisa material se apresenta com a missão subjetiva de provar o verdadeiro que vem da natureza, ou se, ao contrário, vem da malícia humana, modificada para produzir uma falsa verificação, especialmente para enganar.” (Malatesta, Nicola Framarino Dei, in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995, Vol. II, pág. 369).

Todas estas citações são para demonstrar que não defendo posição pessoal, apenas infiro pensamentos da Filosofia do Direito, porém sem nem mesmo ser bacharel em Ciências Jurídicas, minha formação é em Ciências Administrativas, a par da que possuo como oficial militar estadual. E na idade em que estou, depois de vencer muitos estágios do tempo e apreender que o ser humano é a pior espécie vivente sobre a crosta terrestre, posso fechar questão na ideia de que nenhum detentor de cargo público, por mais poderoso que o seja, torna-se por isso acima de quaisquer suspeitas.

Enfim, não me empolgo com delações premiadas, independentemente de serem elas conduzidas por pessoas de ilibado caráter, digo-o em fraca suposição. Porque parto do pressuposto de que o caráter ilibado é primeiramente um dever de quem investiga, acusa e julga como agente público. Creio, porém, que tal pessoa está no Reino dos Céus, não existe no planeta Terra. Daí eu não aceitar passivamente a delação premiada nem aplaudir seus defensores. Preocupa-me bem mais o fato de muitas gentes letradas se deixarem levar pela emoção e se tornarem meras expectadoras de “castigos espetáculos”, tais como nos tenebrosos tempos da Inquisição em que o populacho aplaudia o carrasco e apedrejava o acusado em sua passagem de carroça rumo ao patíbulo. Mas o acusado muitas vezes era inocente!...


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