“O mundo está
perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa
dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)
Para encerrar a
reflexão sobre o tema, afirmo que uma das funções mais importantes da atividade
policial é a investigação criminal. Na realidade, a investigação criminal é uma
técnica baseada em lógica que independe do “faro policial”. Carece, sim, de
ferramentas científicas e tecnológicas que permitam a busca da verdade substancial
sobre determinado fato tipificado como contravenção ou crime. Esta verdade substancial
deve ser tenazmente perseguida, tal como ocorre em pesquisas científicas, de
modo que futuras decisões policiais, ministeriais e judiciais se apoiem em situações
concretas e não em suposições e falsas opiniões.
Dentro desta linha de
raciocínio, não seria demais assegurar que a investigação criminal deve primar
por seu caráter científico, de modo que a verdade buscada seja efetivamente
encontrada. Claro, portanto, que qualquer testemunho tem valor relativo, não
podendo jamais ser prova absoluta. Mais ainda nos devemos acautelar em relação
à confissão, que é um componente humano, não sendo raro no mundo judicial
confissões falsas e até de autoincriminação. Neste contexto puramente
emocional, calcado num moralismos geralmente distanciado da razão, emerge por
último a delação feita por criminosos para atingir comparsas. Mais tenebroso é
tudo isto quando a confissão maculada na origem é ainda premiada...
Ora bem, quando um
criminoso se predispõe a acusar seus comparsas, é muito fácil ao seu
interlocutor lhe sugerir alguma linha de conduta. Torna-se-lhe mais fácil ainda
direcionar essas acusações contra terceiros (alvos) em forma de confissão,
revestindo-a em formato de “verdade absoluta”, a ponto de dispensar a
investigação de natureza científica. E aí vem a célere denúncia destroçando
reputações...
Como nos estamos
referindo a comportamento humano, não há como não admitir que todo o processo de
delação, premiada ou não, nasce doente, com fortes possibilidades de atingir a
podridão moral. Sobre a moral, assim se expressou Friedrich Wilhelm Nietzsche
em Aurora: “A moral, contudo, não dispõe somente de toda espécie de meios de
intimidação para manter à distância as investigações e os instrumentos de
tortura: sua segurança se baseia ainda mais numa certa arte de sedução que
possui — ela sabe “entusiasmar”. Ela consegue muitas vezes com um simples olhar
paralisar a vontade crítica e até atraí-la para seu lado, havendo casos em que
a lança mesmo contra si própria: de modo que, como o escorpião, crava o
aguilhão em seu próprio corpo.”
Vejamos então alguns
exemplos em que mestres do Direito condenam esse tipo de prova (delação) no
processo criminal, em especial por ferir a indispensável lógica que deve
nortear a investigação. Só para ilustrar, inicialmente destaco um dizer
importante sobre “sugestões ilícitas”, da lavra de Nicola Framarino Dei
Malatesta in “A Lógica das Provas em
Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995, Vol. I, págs. 106/7:
“Mas, ordinariamente, a sugestão se apresenta como violação da
liberdade subjetiva da testemunha, e é por isso ilícita. A sugestão ilícita
pode ser de três espécies: violenta, fraudulenta e culposa. A sugestão violenta
sugere as respostas por meio do temor, a fraudulenta por meio do engano gerado
pelo dolo do interrogante, a culposa por meio do engano pela negligência do
interrogante. (...). Consideramos em geral a sugestão como violação da
liberdade subjetiva do interrogado; mas ela é contrária à verdade mesmo quando
possa eventualmente emprestar ao interrogado as armas para mentir, dando-lhe um
conhecimento dos fatos que podem facilitar e tornar mais verossímeis suas
mentiras”.
Sobre o caráter secreto da “Lava-Jato”, eis o que nos ensina outro
importante mestre, Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, na sua obra “Dos
Delitos e Das Penas”, Ediouro Ltda. RJ, págs. 41/2:
“As acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e
tornado necessário em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal
uso torna os homens falsos e pérfidos (...). Quem poderá defender-se da calúnia
quando esta se arma com o escudo mais sórdido da tirania: o sigilo?”.
Voltando à delação, não se pode
negar o perigo de se dar muito crédito a quem não deve merecê-lo:
“Há crimes que, pela sua natureza, exigem uma baixeza de espírito
inconciliável com o senso moral, donde o ter sido condenado por tais crimes
inspira suspeita sobre a credibilidade da testemunha; (...) crime revelador da
frieza de cálculo e torpeza de ajuste; (...) todas as condenações, em suma, por
crimes que implicam uma torpe baixeza de espírito, não conciliável com o senso
moral, são motivos absolutos de suspeita contra a testemunha.” (Malatesta, in
“A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Saraiva, 1960, Vol. II, pág. 56).
Ora, a delação premiada é espécie de transformação de réus em “testemunhas”
de delitos comuns aos membros da mesma quadrilha, pondo-os em “briga de foice
no escuro”, jogando-os uns contra os outros. Pior ainda quando a delação
garante o prêmio da impunidade:
“A promessa de impunidade, contrato imoral entre as leis e o
delinquente, além de ser um erro jurídico é um erro probatório; de um lado,
incita ao delito, corrompe e perturba a sociedade com o espetáculo da liberação
de um réu, que quase sempre não só é maior como mais perverso; do outro,
perturba todo o critério probatório, gerando, por obra de leis, na consciência
do acusado um impulso poderosíssimo para as falsas revelações”. (Ibidem, Vol.
II, pág. 213).
Ainda sobre a se dar crédito a
criminosos, vejam Altavilla, in
“Psicologia Judiciária”, 3º Vol., 1959, Armênio Amado Coimbra, pág. 180:
“(...) a experiência judiciária nos previne de que há malfeitores
audaciosos que têm a impudência de fazer narrações pormenorizadíssimas. E
tenha-se presente que a veridicidade do pormenor também não é um elemento
seguro para deduzir que seja verdadeira a indicação do co-réu, porque não é
raro o caso de, num quadro perfeitamente conforme a verdade, se colocar um
indivíduo que lhe é perfeitamente estranho, como acontece quando se pretende
salvar o verdadeiro culpado”.
E sobre a verdade diz o Ministro
Moacyr Amaral Santos in “Da Prova Judiciária no Cível e no Comercial”, Max
Limonad, 4º Ed., 1972, III Vol., pág. 208:
“A verdade, relativamente a um fato certo, determinado, concreto, é
e não pode deixar de ser uma só. Assim, não se compadecem com o testemunho
idôneo afirmações contraditórias ou incongruentes. (...) De declarações
contraditórias, ou seja, narrações do mesmo fato entre si repugnantes, não
resulta prova alguma. Donde a máxima: - são suspeitas por vício no depoimento
as testemunhas que depõem de modo contraditório ou vário, afirmando coisas
entre si diversas e repugnantes (...). A testemunha vária ou contrária entre si
na mesma causa, e no mesmo juízo, sobre fato substancial, não prova e se reputa
falsa, e se julga falsa no seu todo (...)”.
Isto nos impõe, ainda, a
referência ao ensinamento do eminente processualista José Joaquim Calmon de
Passos:
“Todo Direito assenta num fato. E qualquer modificação no fato
importa diversificação do Direito. Por conseguinte, em última análise, não há
justiça efetiva onde o fato fundamentado no Direito não foi posto com
exatidão”.
Se não bastasse, vejam novamente Nicola
Framarino Dei Malatesta:
“Mas se as coisas não podem ser falsas por si mesmas, podem ser
falsificadas pela obra do homem, que maliciosamente é capaz de imprimir nelas
uma alteração enganadora, naquelas determinações de lugar, tempo ou modo, que
constituem a subjetividade formal da prova material; e o investigar se a coisa
é ou não falsificada, pertence à avaliação subjetiva, enquanto tende a fixar
credibilidade subjetiva da coisa probatória, isto é, a estabelecer se a coisa
material se apresenta com a missão subjetiva de provar o verdadeiro que vem da
natureza, ou se, ao contrário, vem da malícia humana, modificada para produzir
uma falsa verificação, especialmente para enganar.” (Malatesta, Nicola
Framarino Dei, in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, Conan Ed., 1995,
Vol. II, pág. 369).
Todas estas citações são para
demonstrar que não defendo posição pessoal, apenas infiro pensamentos da
Filosofia do Direito, porém sem nem mesmo ser bacharel em Ciências Jurídicas,
minha formação é em Ciências Administrativas, a par da que possuo como oficial
militar estadual. E na idade em que estou, depois de vencer muitos estágios do
tempo e apreender que o ser humano é a pior espécie vivente sobre a crosta
terrestre, posso fechar questão na ideia de que nenhum detentor de cargo
público, por mais poderoso que o seja, torna-se por isso acima de quaisquer
suspeitas.
Enfim, não me empolgo com
delações premiadas, independentemente de serem elas conduzidas por pessoas de
ilibado caráter, digo-o em fraca suposição. Porque parto do pressuposto de que
o caráter ilibado é primeiramente um dever de quem investiga, acusa e julga
como agente público. Creio, porém, que tal pessoa está no Reino dos Céus, não
existe no planeta Terra. Daí eu não aceitar passivamente a delação premiada nem
aplaudir seus defensores. Preocupa-me bem mais o fato de muitas gentes letradas
se deixarem levar pela emoção e se tornarem meras expectadoras de “castigos
espetáculos”, tais como nos tenebrosos tempos da Inquisição em que o populacho
aplaudia o carrasco e apedrejava o acusado em sua passagem de carroça rumo ao
patíbulo. Mas o acusado muitas vezes era inocente!...
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