Aos novos da PMERJ e a quem mais possa interessar
“Existem objetos como as rochas e os abridores de
latas, que simplesmente existem e podem ser completamente explicados por uma
lista de suas propriedades. E existem coisas que somente podem ser explicadas
contando uma história. Para as coisas do segundo tipo, uma simples descrição
nunca é suficiente. Uma história é a única descrição adequada para elas, porque
entidades como as pessoas e as culturas não são de fato coisas, mas sim
processos que se desenvolvem no tempo.” (Smolin, Leo – Três Caminhos Para a
Gravidade Quântica)
O processo degenerativo da PMERJ começou no seu
nascedouro: a fusão da GB com o RJ. Aliás, antes mesmo da fusão (1975) a
degeneração já afetava a PMEG, nascida em 1960, por ocasião da transferência de
Distrito Federal para Brasília. Eis como surgiu a PMEG: nada mais que fragmento
da PMDF que preferiu ficar, enquanto o outro seguia viagem para a NOVACAP, ou
vice-versa, no caso a ordem dos fatores não alterou o produto.
Engano!... Alterou, sim, e para pior! Porque os
optantes pela PMDF podiam desistir de caminho e muitos o fizeram, instituindo o
primeiro racha na tropa da PMEG, que teve de acolher novamente os “federais”
mais antigos, e assim nasceu o “QE” (Quadro Especial), que os que ficaram (PMEG)
ainda hoje designam pejorativamente como “Quadro dos Espertos”. E foi em meio a
essas desavenças aprofundadas que os estados do RJ e da GB foram fundidos, em
1975, emergindo desta nova miscelânea a atual PMERJ. Enfim, nasceu fadada à
entropia...
A partir da fusão, foram criados os quadros seguintes:
QE (Quadro Especial), Q1 (Quadro da nova PMERJ), Q2 (Quadro da extinta PMEG), e
Q3 (Quadro da extinta PMRJ). E os cadetes que ingressaram na nova PMERJ (Q1)
desde então sonhavam com o dia em que os demais quadros passariam à
inatividade, o que já ocorreu, não sem certa demora em virtude de filigranas
inseridas no Estatuto, dando sobrevida a alguns integrantes do QE, do Q2 e do
Q3.
O novo Q1 da PMERJ teve então de amargar desagradável
espera, até que finalmente um dos seus integrantes ocupasse o comando da
corporação e ficasse ela finalmente livre dos “impuros”. Talvez por isso alguns
oficiais da nova geração tenham recentemente cometido o “ato falho” de designar
todo o resto como “impuros” sendo eles, logicamente, os “puros”, esquecendo-se,
porém, de que se incluem no primeiro caso, pois são farinha do mesmo saco
denominado Q1.
Mesmo sendo um comportamento reprovável, o sentido de
“puro” e de “impuro” que permeou os bastidores da corporação ultimamente, –
gerando muita polêmica, – em minha opinião não guarda relação com nenhum
“nazismo” ou “nazifascismo”. Talvez fosse melhor considerar tudo uma estupenda
fanfarronice e esquecer o assunto, porque é corrente a ânsia do militar por um
mito, um “El Cid” qualquer, que num militarismo claudicante é ainda mais
corriqueiro, em especial quando o coletivo militar não identifica um líder para
seguir. No fim de contas, o ser humano é “gado de rebanho”, precisa do “sino de
guerra” tal como o rebanho depende do guia balançando o seu sino preso ao
pescoço:
“Que as alegres canções dos trovadores eram
sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com
tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e
que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo
sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do
senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” (René Fülöp-Miller – Os Santos
Que Abalaram O Mundo).
Ponho a questão na mesa como se pusesse um “bode na
sala” porque todos esses abismos antigos renasceram com vigor de uns anos para
cá. Verdade é que a ânsia de poder de alguns comandantes desta nova geração do
Q1 culminou gerando uma inelutável degeneração corporativa, já que muitos
oficiais do Q1, antigos, porém preteridos por oficiais mais novos, foram à
inatividade precocemente. Instituiu-se na PMERJ, na verdade, um acelerado
processo de destruição intramuros, eis que a antiguidade no posto se tornou pó
inútil.
Mas a culpa não deve ser atribuída aos novatos alçados
ao último posto e ao comando-geral por idiossincrasias políticas. Sim, o
problema foi gerado de fora para dentro, por gestores civis sem compromisso com
as tradições do militarismo estadual. Caberia, sim, aos oficiais do último
posto, primar pela manutenção dos valores corporativos e pela união dos pares.
Não foi bem assim, é só pesquisar o almanaque recente para constatar que os
planos traçados ainda na Academia pelos novos do Q1 desde muito enveredaram por
um irresistível processo entrópico.
Lembro-me bem da profunda rivalidade entre os oficiais
dos quadros criados a partir da fusão. Antes dela, a PMRJ, da qual eu fazia
parte, era uma corporação pequena, porém unida por fortes laços, embora
houvesse algumas pinimbas entre os oficiais oriundos da EsFO (Escola de
Formação de Oficiais) e os mais antigos que alcançaram o último posto por
outros critérios de formação e aperfeiçoamento. Essas rivalidades, todavia, não
afetavam o todo da PMRJ, que cumpria sua missão com denodo e camaradagem entre
seus oficiais, graduados e praças.
Não era assim a PMEG. Ela veio à fusão já contaminada
por importante divisionismo interno, e ainda teve de receber um terceiro
segmento, menor, representado pela PMRJ, acrescentando-se mais um andar
(térreo) na “Torre de Babel”, esta que só não levou tudo aos caos porque o bastão
de comando manteve-se em mãos de coronéis do Exército, e eles não tinham
compromisso com a tumultuada cultura da nova PMERJ. Na verdade, os oficiais do
Exército levavam a sério a antiguidade do posto como fundamento basilar do
militarismo, pois assim aprenderam nos seus quartéis federais.
Tudo começa a descambar, por conseguinte, a partir do
primeiro comando-geral entregue a um PM, no caso o Coronel PM Carlos Magno
Nazareth Cerqueira, nomeado pelo então governador Leonel Brizola como
Secretário de Estado da Polícia Militar, viés malandro para burlar a lei
federal que obrigava o governante a submeter o nome do escolhido ao prévio aval
do Exército. Mas como era momento de abertura política, e Brizola representava
a figura de proa entre os exilados que voltaram ao torrão natal, ninguém
questionou e o escolhido, do quase falecido QE assumiu a PMERJ com um poder
interno incontestável. A bem da verdade, o Cel Cerqueira até que conduziu com
isenção o seu comando, claro que não abrindo mão de pôr nos cargos de
Estado-Maior seus colegas do QE, para desespero dos que imaginavam logo ocupar
o poder interno quando o EB batesse em retirada.
O comando seguinte foi duramente disputado por cerca
de dez coronéis do Q2 (“azulões”), ou seja, da antiga PMEG, muito mais
articulados, por sinal. Mas não contavam com a habilidade dos coronéis do Q3
(“joões-de-barro”) nem com o fato de o governador eleito (Moreira Franco) ser
remanescente do antigo RJ. Assumiu então a PMERJ um coronel do Q3 em vias de
passar para a reserva (Coronel PM Manoel Elísio dos Santos Filho). Para tanto,
o mesmo artifício da nomeação como secretário de estado foi utilizado, além de
providencial mudança do Estatuto para que o novo Secretário de Estado da
Polícia Militar pudesse permanecer no serviço ativo, deste modo acumulando seu
cargo maior de secretário com o menor de comandante-geral, tal como fez o Cel
Cerqueira.
Este novo comandante, oficial do Q3 por ser da extinta
PMRJ (João-de-barro), diferenciando-se do anterior nomeou como Chefe do EMG um
coronel do Q2 (“Azulão”), assim flexibilizando o poder interno e aparentemente
fechando a tampa do caixão do QE, com todos devidamente sepultados na
inatividade. Não contavam, porém, os oficiais do Q2 e do Q3, com a nova vitória
brizolista e o consequente retorno do Coronel PM Carlos Magno Nazareth
Cerqueira como Secretário de Estado da Polícia Militar e comandante-geral,
aproveitando a mesma “brecha estatutária” que preservara no cargo o comandante
anterior. Deste modo, tanto os coronéis mais modernos da extinta PMEG (Q2) como
os da extinta PMRJ (Q3) amargaram uma longa espera, até que finalmente
assumiram o comando da corporação, em alternância normal, os coronéis do Q2 e
do Q3 promovidos após a fusão de 1975: os “últimos moicanos”...
Enquanto isso, os oficiais do Q1 foram lentamente galgando
os postos superiores e se preparando para o grande momento de finalmente fechar
a tampa de três caixões, respectivamente, do QE, do Q2 e do Q3. Sim, o dia do
enterramento coletivo finalmente chegou, mas não tão pacificamente, pois o Q1
já vinha desde muito tempo rachado em pedaços. Na realidade, desde os bancos da
Academia Dom João VI, onde os cadetes formaram facções nítidas num divisionismo
de dar gosto.
O segredo das facções só vem a público quando um dos seus
membros é alçado ao poder maior corporativo, momento em que desafetos são
derrubados como peças de dominó, enquanto os aliados ampliam seus poderes
promovendo precocemente os pares e subordinados alinhados a suas facções, claro
que visando à permanência eterna no poder, não mais ao exercício impessoal do
comando, como nos tempos do Exército em que a impessoalidade e o respeito aos
mais antigos prevaleciam em detrimento de interesses pessoais. Tudo isto tem
somente um nome: processo entrópico.
Sei da temeridade de afirmar o que ora afirmo, se
fosse prova de concurso do CSP eu arredondaria um zero rubricado por tacanhos e
estultos, que, graças aos céus ou aos infernos não mais existem, estão
sepultados comigo. Faço-o, porém, em exumação teimosa, e do alto dos meus quase
69 anos de idade, sem mais qualquer interesse por algum poder político e muito
menos corporativo. Daí é que me sinto à vontade para jorrar esta curta história
de muitos lances que poderiam ser aqui ilustrados por outros companheiros de
igual visão.
Penso, sim, na PMERJ como instituição bicentenária que
juramos defender, embora eu saiba que, intimamente, esta não é a minha PM. A
minha foi extinta em 1975. Mas esta é a PM do povo carioca e fluminense, e de
todos nós PMs de um lugar ou de outro, de uma história ou de outra, de um hino
corporativo ou de outro. E todos nós, como brasileiros e militares estaduais, temos
o compromisso de defender a sociedade até com o risco da própria vida. Por isso
escrevo estas impressões que sei negativas, mas sei também que são reais, de
modo que os atuais mandatários fardados da PMERJ pelo menos reflitam e comecem
a reconstruir uma corporação sem ódios e outros sentimentos menores.
Sim, almejo a homeostase. E torço para que o cadete de
hoje seja o comandante-geral impessoal e respeitador de todos amanhã. Para
tanto, porém, alguém deve recomeçar, deve cuidar de reconstruir uma PM que não
se basta por ser fragmentada. E está, sim, em processo de autodestruição por
culpa de intervenções externas, de natureza política, muitas delas
mal-intencionadas e que nenhum compromisso tem com o desenvolvimento
corporativo nem com a saudável convivência dos cidadãos, esta que é missão da
PMERJ manter e restaurar mesmo que a duras penas.
Sim, sim, recomeçar é preciso! E a reação há de partir
dos quartéis e das pessoas que ocupam suas estruturas, com relevo para os de
maior posto, que são os que detêm o poder decisório!... E a primeira decisão
deve ser pela união de todos, oficiais, graduados e praças, afastando os males
do passado que não têm remédio e, portanto, remediados estão... A segunda é
pelo resgate da cultura institucional e operacional por meio de animados cursos
de formação e de aperfeiçoamento, acrescidos de treinamentos intensivos e
perenes. Porque, a predominar a perda de tempo em “brigas de foice” pelo poder
em si a PMERJ um dia sucumbirá em entropia irreversível. E quem ama a
corporação, seja ativo ou inativo, não gostaria disso!
3 comentários:
Cel Larangeira,em alguns casos aqui no seu blog venho descordando em partes de seus textos,em alguns concordo.Mas essa sua última postagem deveria fazer parte
de instrução para alunos da ESFO e do CFAP.Um texto que não tem como descordar devido sua coerência.Ele por si só ,em sua síntese já diz tudo.
Quem sabe a briosa ainda tenha jeito?
Abraços comandante.
Emir disse:
Obrigado pela contribuição. A ideia é não deixar a história ser apagada do mapa. Porque os reflexos atuais, negativos em todos os sentidos, têm origem que precisa ser conhecida e estudada com mais afinco.
so não temos mais historias que geram reflexao e crescimento pq isso q o senhor nos ensinou pode ser taxado de expor a corporação, o que dá até exclusão; esse o motivo pq seremos encerrados, e o sr estará vivo para ver, não temos espaço para fazer mea culpa, auto-analise e estudos de caso para aprender e crescer. parabens pela aula de História
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