sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Com ou sem fuzil?


Uma das mais importantes medidas até hoje na segurança pública foi o recolhimento de fuzis das guarnições que atuam na Zona Sul, suprindo-as com armas não letais e pistolas. Não é de hoje que comento sobre a banalização do uso de fuzis de guerra pelas polícias do Rio de Janeiro, instituindo um visual incentivador do medo entre a população. Porque não é agradável ao contribuinte ver passar uma guarnição pelas ruas da cidade atrás de uma guerra que, se não há, passa a haver em vista desse aparato bélico a desafiar, mesmo no âmbito da prevenção pela presença no asfalto, os longínquos criminosos que igualmente assim se armam em locais isolados (favelas). 

Tudo começa em 1989, no dia 24 de novembro... Enquanto comandante do nono batalhão, logrei ver apreendido por guarnições da unidade o primeiro fuzil de guerra norte-americano (Fuzil AR-15, versão civil do M.16, fabricado para uso no Vietnã). Na época, assumindo total responsabilidade reclamei dizendo que aquele tipo de arma não deveria chegar aos traficantes, pois mudaria a dinâmica dos confrontos, que já eram muitos, mas em equilíbrio de forças delimitado no âmbito das escopetas, dos revólveres, das pistolas e das metralhadoras, armas de curto alcance e menos capazes de atingir pessoas além dos alvos marginais. 

A apreensão do fuzil AR-15, na verdade, mudou a cultura do crime no Rio de Janeiro e dos confrontos, que se tornaram mais acirrados e mortais entre policiais e bandidos. E, como numa epidemia, o uso do fuzil alastrou-se, e hoje é o que se vê: milhares de fuzis disparados a esmo ou bem direcionados, porém matando inocentes devido ao poderoso alcance de seus projéteis a ciscar o ar e atravessar barreiras naturais e artificiais que as armas curtas não conseguem fazê-lo. 

Outra dura realidade que constatei na época foi a de que a tropa operacional nem mesmo treinava tiro com suas armas de uso diário, embora houvesse no quartel um estande em boas condições e também a PMERJ mantivesse um setor de recarga garantindo munição de revólver à vontade para treinar a tropa. Poucos batalhões a usavam. Daí, tivemos acesso a uma grande quantidade de munição recarregada e iniciamos um intenso treinamento de tiro de revólver obrigatório a todos os integrantes de guarnições operacionais. Os primeiros resultados foram desastrosos, surpreendentes, espantosos: a maioria da tropa não sabia atirar, esquecera-se das técnicas superficialmente aprendidas no CEFAP. Enfim, iam às ruas sem noção do que poderia fazer com o revólver que usava para se defender e defender terceiros, um verdadeiro absurdo. 

Instituímos exaustivos treinamentos de tiro ao alvo incluindo o tiro instintivo, com o atirador correndo entre corredores e dependências do quartel, até que, arfando em descontrole respiratório, chegasse ao estande e disparasse contra o alvo. No início, os alvos eram fixos e de papel (famoso modelo que põe o “5X” no centro do coração, valendo dez pontos, e o braço contando apenas dois pontos); depois, instalamos alvos de ferro com dispositivo de queda e retorno por acionamento de molas para que o atirador tivesse uma sensação maior de realidade. Fizemos ainda treinamento de deslocamento em lanço (ou lance) de um ponto a outro do quartel, simulando cobertas e abrigos, para condicionar os PMs a assim procederem em situações reais, sempre visando à sua proteção física antes do inevitável revide. Enfim, não havia fuzil, e o que havia era pessimamente utilizado pela tropa, ampliando deveras o risco de morte em todos os sentidos, incluindo a morte de bandidos e de pessoas inocentes. 

Mas a apreensão do primeiro fuzil AR-15 na favela de Acari marcaria o início da febre marginal e estatal por fuzis. E eles foram abarrotando o mundo da polícia e o submundo do crime, simultaneamente, agora diversificando marcas a mais e mais sofisticadas, não se sabendo hoje quantos fuzis estão em mãos oficiais e ilegais a dispararem rajadas e a matarem inocentes, sendo certo que a letalidade policial aumentou assustadoramente, assim como a dos marginais que antes corriam da polícia e hoje se postam camuflados em pontos seguros dos morros e favelas planas para atirar com precisão e eliminar o policial, mesmo que este porte fuzil, mas em situação de inferioridade tática e operacional. 

Retirar os fuzis das mãos da tropa, permitindo o seu uso apenas por pessoal especializado (sniper), de modo a fazer frente aos atiradores de elite e aleatórios do submundo do crime, é medida a meu ver tão saudável quanto foi a conquista de territórios favelados com instalação de UPPs. Creio que no caso dos fuzis a banalização de porte e uso por policiais destreinados, fingindo-se verdadeiros “Rambos”, tem produzido muitas mortes desnecessárias. Porque os encontros e os confrontos nas zonas urbanas se dão a curta distância e uma arma leve bem manipulada pode ser mais eficaz que um fuzil em mãos destreinadas. 

Mas coube ao sistema situacional, como agora se constata com satisfação, a iniciativa de retirar do policial seu excesso bélico danoso a ele próprio. Quanto aos bandidos, os atiradores de escol da polícia cuidarão deles com eficiência e eficácia no acerto do alvo. Portanto, trocar o fuzil letal por uma arma não letal, incluindo como imperativo um intensivo treinamento da tropa no uso da pistola, é o que basta para mudar a cultura dos confrontos bélicos em zonas urbanas. Mas que as autoridades se preparem para o espanto que enfrentei quando assisti aos primeiros tiros de corajosos PMs passando ao largo de alvos em tamanho proporcional ao corpo humano, postos somente a 15 metros de distância...

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