quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Sobre o poder disciplinar na PMERJ







“LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” (CRFB, Art. 5º)












O emprego é um bem precioso, não há dúvida. Aliás, num país terceiro-mundista carente de trabalho remunerado e de mobilidade social, o emprego é imprescindível ao atendimento das necessidades do ser humano, desde as mais rudimentares (fisiológicas), passando pela segurança, pelo reconhecimento social e finalmente alcançando a auto-realização, em lembrança grosseira de Maslow. Portanto, perder o emprego significa cair em desgraça, mais ainda acontecendo em idade avançada. Se já é difícil ao jovem conquistar seu espaço no mercado de trabalho, ao mais velho é quase impossível. Por isso é que o Estado, como ente promotor de bem-estar, vem instituindo garantias de manutenção do emprego, embora haja a contrapartida de sua perda mediante justa causa, seja na atividade particular, seja na pública. Mas o prevalente num Estado Democrático de Direito é a proteção do trabalho continuado como componente da própria dignidade humana consagrada na Carta da ONU de 1948.
Aqui não se cuida de ficções. No fim de contas, o Brasil é um dos signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem e a reproduz em gênero, número e grau na Carta Magna, com desdobramentos nas Constituições dos Estados-membros. Os direitos são, pois, imperativos constitucionais a que a legislação menor deve total obediência, seja ela anterior ou posterior à CRFB. Nenhuma legislação (federal, estadual ou municipal), portanto, está livre de ser comparada e tornada nula se não for recepcionada pela Lei Maior, premissa válida até mesmo para as Constituições Estaduais, com destaque para os direitos e garantias individuais, prerrogativas cujo desrespeito configura abuso de direito/autoridade/poder.
Seria maravilhoso se a sociedade brasileira, historicamente bipartida em Casa-grande e Senzala, tomasse a iniciativa de adequar seus instrumentos legais e normativos à CRFB, depurando os resíduos autoritários. Contudo, a realidade é outra: nem as leis estão em acordo com os ditames constitucionais, nem a Justiça cuida no sentido de que o ajustamento ocorra. E como a sociedade, em sua imensa maioria, é carente e ignara, as injustiças se acumulam e uma geração já alcançou a maioridade sem conhecer e amar a Lei Soberana promulgada em 1988. Esse desconhecimento tem sido fatal ao povo e tenebroso ao “cidadão comum”.
O sistema de defesa de direitos oferecido pelo Estado é sobremodo inferior ao da cobrança de deveres. As Defensorias Públicas não estão estruturadas à altura dos Ministérios Públicos. O Estado conta com o Ministério Público para acusar e possui estruturas poderosas de defesa dos interesses estatais nem sempre compatíveis com a vontade do povo. A desproporção é evidente. O cidadão, quando acusado ou aviltado em seus direitos, necessita de contratar advogado, algo possível somente aos aquinhoados de berço, ou seja, a parcela mínima da população. Isto significa ausência de igualdade, bem constitucional inestimável, porém inalcançável em muitas oportunidades reais. Existe no Brasil um enorme distanciamento entre a legalidade e a legitimidade. Num Estado Democrático de Direito esses valores deveriam ser “gêmeos univitelinos”. Não o são; aqui são irmãos bastardos...
Se a injustiça impera na sociedade brasileira, mais ainda ela se faz presente no militarismo. Restringindo o nosso raciocínio à PMERJ, não é leviano afirmar que a instituição permanece a reboque da legitimidade e da legalidade. Sua legislação é anacrônica, tacanha e carcomida; não resiste ao mínimo cotejo com a nova ordem constitucional. Há um emaranhado de leis, decretos, normas, resoluções, portarias, ordens e quejandos que lembra um novelo molhado e cheio de nós cegos. Esse emaranhado não se dá a conhecer com clareza e precisão nem pelos mais dedicados estudiosos; demais disso, contribui para a baderna institucional a desatualizada legislação federal referente às Polícias Militares como forças auxiliares reserva do Exército Brasileiro. Este, porém, já adequou sua legislação à CRFB, pelo menos no que respeita ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório em procedimentos administrativos disciplinares. A PMERJ, muito pelo contrário, mantém-se descaradamente autista...
É difícil compreender e dominar a vasta legislação que informa o funcionamento da PMERJ no seu todo e em suas multivariadas partes. Se não bastasse a absurda quantidade de prescrições legais e normativas, muitas beirando os 40 anos de vida inútil e temerária, os casuísmos imperam e a deformação da legislação original propicia a proliferação de idiossincrasias impunes. Isto é ruim para a fluidez dos assuntos corporativos com vistas ao alcance da eficiência estrutural e da eficácia na proteção da sociedade: a nossa missão constitucional. As desigualdades ocorrem no atendimento à tropa em tudo que é campo de interesse: saúde, carreira, instrução, operacionalidade, e, principalmente, justiça e disciplina. Os anseios e valores são tão confusos que fazem predominar a insatisfação e a revolta. Para contê-las, ah, para contê-las impõe-se um rigor disciplinar que não respeita minimamente a dignidade da pessoa humana. Um detalhe: não falo de pessoas, mas da errônea cultura, deixando a carapuça à disposição de quem quiser enfiá-la em sua própria cabeça-dura...
Numa profissão complexa, militarizada e atuante nas ruas, as possibilidades de falhas são extremadas. Mesmo se a PMERJ contasse com um efetivo jovem, bem remunerado, saudável, otimamente treinado e motivado, mesmo assim muitas falhas decerto ocorreriam. Agora, é só imaginar um efetivo avelhantado, – com os homens e as mulheres psiquicamente afetados e insatisfeitos com os maus-tratos que recebem, – é só imaginar esse efetivo e jorrá-lo nas ruas. Claro que o resultado produzido não será compensador, e as falhas e os desvios de conduta tenderão a se avolumar. É esta a realidade, mas a corporação está sempre preparada para reagir com a celeridade exigida pelas pressões da sociedade, em especial da imprensa, e não se vexa em retaliar o efetivo em absurdo terror disciplinar.
Eis a fonte das injustiças! Eis como se afoga em lama o efetivo e se desprotege a sociedade destinatária dos serviços policiais militares! Pois o moral baixo faz diminuir as boas ocorrências e a negatividade supera a almejada positividade. Sim, o poder disciplinar é tão presente e aterrorizante nos boletins internos que afeta todos os integrantes da corporação. O temor da punição e a certeza absoluta de que ela poderá alcançar qualquer integrante da PMERJ generaliza a ideia de que a profissão é descartável, e, portanto, desprezível. E, se é desprezível, por que não desprezá-la em vista de interesses menos nobres?... Eis, talvez, como pensam os policiais-militares (insisto no hífen para demonstrar a substantividade dos vocábulos na profissão), em especial as praças. Não? Façam então uma pesquisa por amostragem preservando o anonimato...


Para corrigir tão tamanhona anomalia, – e sepultar a “anomia institucional”, – necessário seria resgatar todas as leis, decretos, resoluções, portarias, notas de instrução e demais ordens e normas escritas e estudá-las com o espírito voltado para o regramento constitucional; em especial cuidando da questão disciplinar com o foco no respeito à dignidade humana, por mais que os detentores do poder disciplinar lhe sejam contrários, e o são em virtude de cultura equivocada ou ignorância proposital. Contudo, não pretendo concluir que alguns deles pensem como os seguidores da Bula de Inocêncio IV e ajam como um Tomás de Torquemada. Não!... Mas também não descarto a hipótese... Daí a necessidade de se estudar a questão disciplinar no seu todo e com ideias próprias, em vez de copiar, adaptando para pior, a legislação verde-oliva. Ora, não somos apenas militares! Somos também policiais! Precisamos adequar a nossa cultura profissional à realidade encontrada nas ruas. Portanto, ou se estuda e renova a legislação atendendo aos anseios e valores internos, adequando-os à demanda externa, ou se continua a fingir eficiência tendo como objetivo institucional a punição, deste modo levando a tropa à revolta e aos desvios de conduta consequentes.
Com efeito, não há na corporação uma política de enriquecimento do trabalho humano; os conflitos são tratados a “borduna de bugre” e jamais permitem alcançar algum consenso; não existe sinergia na PMERJ. A razão está com os regulamentos e suas “verdades legais” imutáveis. Reverter esse estado de entropia não é tarefa simples, e não pode ser missão de indefectíveis corregedorias internas ou de outros sistemas de vigilância amantes do “santo ofício”. Chega de cultura do “disciplinador” dando azo a que pensem só haver indisciplina na PMERJ! Não é verdade, – embora não se negue o excesso dela, – com a ressalva de que muitas indisciplinas são decorrentes de maus-tratos de superiores contra subordinados; já outras resultam do fato de a corporação negar ao policial-militar a condição de “sujeito” pensante e detentor de direitos; tratam-no como mero “objeto” cumpridor de deveres, sem o direito de ter ideias (“A vida militar exige poucas ideias” – Balzac).
Diriam, neste ponto, que exagero. Para quem assim deduz, relembro uma antiga pesquisa encomendada pela PMERJ ao IBOPE. Nela, dentre muitas indagações feitas à tropa em amostragem proporcional ao efetivo de oficiais, graduados e praças, havia uma pergunta que se resumia em saber quais as qualidades que os subordinados mais apreciavam em seus superiores. Em meio a inúmeros adjetivos, uma resposta destacou-se: “nenhuma”. Sim, esta ganhou disparada, com quase 70% dos entrevistados escolhendo-a. Isto se deu em 1984 e os regulamentos eram os mesmos que ainda hoje vigem na PMERJ. Ainda hoje?... Sim!... E o que pensa a tropa, hoje, sobre os seus superiores hierárquicos?... Não será hora de parar, pesquisar, desvelar, repensar e mudar tudo?...

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