quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Sobre a PEC 300




Sonhar é preciso, lutar é preciso!...


Não costumo viver de ilusões. Entretanto, eu sonho. Dormindo ou acordado, eu sonho. Também gosto de me entregar por inteiro às ficções, sejam minhas ou de terceiros, tanto faz, viajo nelas como se estivesse num trem rumo ao infinito. Para mim, sonhar é crucial, é como respirar o oxigênio que me sustenta a vida física. Não sei o que seria de mim sem ficções e sonhos a me embalarem na irreversibilidade do meu tempo.
Não costumo viver de ilusões, não as vejo sinônimas do sonho nem da ficção. A ilusão conduz à desilusão, tal como a esperança conduz à desesperança. Para mim, a esperança é irmã da ilusão e ambas possuem forte liame com o desespero. Não creio que façam bem à saúde; quando nos prendemos às coisas materiais e não as alcançamos, o desespero assume roupagem de doença incurável. Não faço aqui um exercício de semântica, apenas externo o que sinto; e vejo a ilusão e a esperança como bolhas de sabão em falsa impressão de realidade palpável; porque logo elas desaparecem em efemeridade, deixando-nos o vazio da irrealidade...
Desde jovem, quando me encaminhei à profissão policial-militar (ainda não existia a expressão “militar estadual”)1, vi-me momentaneamente iludido por um salário que representava o dobro do que eu percebia trabalhando no comércio. O salário-mínimo era de Cr$ 45,00 (quarenta e cinco cruzeiros) e a remuneração do soldado PM era de CR$ 90,00 (noventa cruzeiros). Não havia ainda o real nem o cruzado, se não me falha a memória. Era o ano de 1965...
No dia 29 do mês de junho daquele ano ingressei na briosa. Contava 19 anos. Nem cria que a partir de julho teria salário dobrado. Não era ilusão, era realidade! Oito meses depois, ingressei na Escola de Formação de Oficiais, e lá estava eu envergando uma bela farda e me iniciando em nova aventura. Não tão nova, eu começara na labuta aos 11 anos. Trabalhara em Laboratório de Análises Clínicas e no comércio de Niterói. Não era ruim, mas, comparando com o quartel, mesmo com o rígido sistema disciplinar, eu parecia estar no Paraíso.
A instrução na Escola de Formação de Oficiais era pesada; o regime de internato me consumia todo o tempo. O salário não se alterara: aluno de primeiro ano percebia salário de soldado. Mas houve uma diferença a me amargurar: muitos descontos no salário do cadete. Era como se nós, os cadetes, dele não precisássemos. No meu caso, fez aterradora diferença: eu era arrimo de família e destinava a totalidade do que ganhava ao sustento de mãe e quatro irmãos. Veio-me a desilusão...
Refiro me à primeira delas: eu não era um “cadete”, como aduzi no parágrafo anterior; eu era apenas um “aluno”, porque o vocábulo “cadete” era exclusivo de militar das Forças Armadas. Depois igualmente percebi a dura realidade de que, constitucionalmente, se é que havia constituição em 1967, o PM não podia perceber mais que o equivalente ao posto ou à graduação do Exército Brasileiro. Discriminação mais substantiva que esta eu não conheço. Enfim, farda bonita de militar de araque, amarga ilusão tornada desilusão. Representávamos no militarismo pátrio a “menos-valia” profissional: eu era um “canela-preta”, pejorativo vociferado pelos verdes-olivas para nos diferenciar deles havia muito tempo...
Assim comecei a trilhar pelas sendas da esperança e a viver de ilusões. Ansiava por notícias de aumento, mas, em vez dele, tomava-me o desespero: faltavam-me as coisas mais simples (gilete, sabonete, graxa, creme dental etc.). Quem me socorria era o amigão do armário ao lado, Carlos Alberto Cardão Dal Bello. No armário dele, sempre arrumadinho, havia a abundância dos quitutes e das quinquilharias do dia-a-dia. De tanto necessitar e pedir ajuda, ganhei dos colegas uma alcunha: “Irmão Pedro”.
Sim... “Irmão Pedro”... Tratava-se de um padre que muito pedia para sustentar um orfanato no interior do Estado. Mas lá estava eu ostentando em humilhação o apodo, até que a primeira planilha de notas foi pendurada e o “Irmão Pedro” figurou em primeiro lugar (dezoito matérias, em sua maioria de assuntos militares). Passei a ser respeitado pela turma. E assim fui em frente até o final do curso, eu e o colega Astério Pereira dos Santos alternando comigo, passo a passo, prova a prova, o primeiro e o segundo lugares. Mas, no fundo, não era minha vontade disputar nada. O que eu queria, mesmo, era sobreviver como podia e ajudar a minha família a vencer a miséria. Os colegas não sabiam que eu era o “lanterninha social”...
A fome rondava o meu lar. Do meu apertado salário, metade ficava no Armazém Reembolsável da briosa: as compras do mês a garantir o bucho familiar. O restante ia direto para as mãos da minha mãe. Sobravam me a passagem e um tiquinho de nada para as demais necessidades. Talvez por isso, – e menos a imposição do respeito por via intelectual, – o apelido desapareceu em fade; ou melhor, fora substituído por outro: “Surdinho”. Bem melhor... A uma, porque estourei o tímpano do ouvido esquerdo em virtude de tiro de fuzil disparado ao meu lado pelo saudoso colega Guinaldo Fiuza Rosa. Morreu tenente, de câncer. A duas, porque eu era um autêntico nefelibata: vivia no mundo dos sonhos, caminho que busquei para vencer a desilusão e me afastar do desespero.
Mas eu não resistia às ilusões porque guardava em mim a esperança de dias melhores, de salários mais interessantes. De certo modo, eles se tornaram realidade... A evolução da carreira foi acrescentando um pouco mais de dinheiro e, bem devagarinho, conquistei a emancipação financeira e casei. Comprei, em longo prazo, todo o enxoval do lar, na Casa Neno, que ficava na esquina da Avenida Amaral Peixoto, em Niterói, perto da Estação das Barcas. Contei com o peitudo aval do amigo Astério, agora oficial, primeiro colocado da turma. O sujeito era obstinado, não resisti, terminei em segundo lugar. Poucos apostaram nessa amizade de contendores. Pois está firme e forte faz 43 anos e vencerá os tempos com ele sempre “salvando as minhas algibeiras”... Bem, como num sonho, casei e fui morar nos fundos da casa do sogro, casinha também dele, tremenda “colher de sopa”, golpe do baú de pobre contra remediado. Ali permaneci até meu primeiro filho completar três anos. Festa dupla: aniversário dele e fim das prestações da Casa Neno, que vendia tudo “a preço de banana”.
Conto essa pequena história, que prossegue até os dias de hoje sem muitas diferenças. Continuo, como antes, torcendo para ganhar salário digno. Na média, porém, não posso reclamar: a sorte me permitiu pular fora do quartel e incorporar uma gratificação. Mas suei a camisa, mormente na Defesa Civil, atendendo a milhares de desabrigados e chorando desgraças e mortes, em especial de crianças soterradas em deslizamentos de encostas. Também vi os vivos, ao lado dos vizinhos mortos, cheios de esperança, apesar do desespero (Que impressionante!). Viviam pendurados em barracos desarrumados e desafiadores das leis da física, tais como os ninhos de pássaros-pretos na ponta das árvores. E ao tentar afastar essas famílias do perigo iminente, vi nelas a fé em Deus e a ilusão de um dia receberem moradias dignas. E não arredavam pé do perigo. Só saíam à força. Que impressionante ilusão! Que demonstração de esperança! Nem o perigo da morte era capaz de vencê-las. Ah, não costumo viver de ilusões...
É o que penso da PEC 300, torrente de ilusões que vem levando às ruas milhares de policiais-militares Brasil afora. Curioso é que todos sabendo que não cabe ao Poder Legislativo aumentar vencimentos, ainda mais na situação da referida PEC, iniciativa inconstitucional sem chance de ser recepcionada pelo Governo Federal, que deve respeitar a autonomia dos Estados Federados, e, por outro lado, deve cuidar de resguardar suas algibeiras das “mordidas estaduais”... Mas a desesperança de milhões de militares estaduais está a estimular a ilusão, e a ilusão está a jorrar nas cidades brasileiras, em passeatas, expressivo grupo representativo de 500.000 almas só no serviço ativo (somatório dos efetivos das Polícias Militares).
Não costumo viver de ilusões, é verdade. Mas antevejo um dado curioso: se as manifestações não convencerem os governantes da validade da causa, uma coisa se está provando: os militares estaduais estão se unindo em todo o país; e se a causa é hoje uma bolha de sabão, amanhã poderá haver razão mais estimuladora e se tornar uma grandiosa bola de fogo. A força dessa união nacional poderá acordar os governantes e os próprios militares estaduais para a realidade de que são eles (ativos, inativos, pensionistas e dependentes) mais de 1.000.000 (um milhão) de almas iludidas, que, em sendo desiludidas, poderão se desesperar, efervescer e entornar o caldo. E o que agora é ilusão passará a ser realidade dura de ser contida.
E assim, crendo numa ilusão, e aceitando possibilidade de a mitológica quimera se materializar, quem sabe a PEC 300 tornar-se-á realidade?... Não costumo viver de ilusões, sim, mas já vi muitas delas se tornarem sonhos e depois se concretizarem em doces realismos ou em tragédias dantescas. Afinal, a voz do povo é a voz de Deus!... E se é a voz de Deus, que a procissão de militares estaduais “sem-salário” siga sonhando rumo à PEC 300 e acorde o país antes que o sonho se torne pesadelo: a “voz do Diabo!”

1 Insisto no hífen a juntar os dois vocábulos, que são substantivos (“policial” e “militar”) e característicos da ambiguidade que vivenciamos em quartéis e nas ruas; parece me irreal exercitar duas gigantescas profissões muitas vezes situadas em polos opostos. Pior é que sem aceitação pelas categorias representadas por apenas um vocábulo acrescido de adjetivo (sem hífen): policiais civis e militares federais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sr Cel, boa tarde.
Belo texto, alias marca registrada de suas matérias. Também PM da reserva ( gloriosa PMMG )fico a pensar nessa " ilusão ", mas creio que mesmo que não venha a tão sonhada equiparação com o DF uma coisa ta ficando clara, estamos iniciando uma união de todos Estados. Acredito que esse ponto vai merecer mais atenção por parte do Governo. Deveríamos focar mais nesse assunto, inclusive, já palpitei no blog da Mônica, entretanto vejo alguns desvios na net, essa poderosa ferramenta. Imagina o senhor um dia de passeata de ativos, inativos e pensionistas, de forma pacifica,com dia marcado e presença maciça, imagina só. Acho que até a GLOBO vai nos dar um espaço.
Obrigado pela atenção.

Sub Marcos