sábado, 14 de março de 2009

Sobre a liberdade

A libertação do coronel


“Vede os pequenos tiranos / que mandam mais que o rei / Onde a fonte de ouro corre / apodrece a flor da lei.”
(Cecília Meireles)



Em toda a minha carreira, jamais soube de oficial-general preso em circunstância semelhante à do coronel PM Ronaldo Antonio Menezes, que hoje, dia 14 de março de 2009, é libertado. Porque, ressalvadas as proporções, o coronel PM é para nós o que é o oficial-general para as Forças Armadas. Justifica-se a comparação em função do grau de responsabilidade inerente à máxima patente.
Desde os idos de 1982, – por iniciativa do coronel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, mais chefe que líder para dar vencimento ao delicado momento de transição política (a chamada “abertura”), – o Curso Superior de Polícia (CSP) e o Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais (CAO) tomaram novos rumos: abriram-se ao estudo do mundo externo e permitiram que as universidades tomassem o espírito da geração de tenente-coronéis, majores e capitães. A idéia do coronel Cerqueira, também psicólogo, era a de tentar mudar atitudes para gradativamente gerar novos comportamentos. Ele, porém, sabia e dizia que a resistência às mudanças seria invencível. Estava com razão...
Na verdade, o governante da época pretendia uma PM submissa, descartável e inoperante, um dos pratos da balança que nos está a pesar há anos, sendo evidente que o outro acolhe uma PM submissa, descartável e atuante. Pior que ambos é a ambiguidade do contrapeso desequilibrando aleatoriamente a balança... E assim oscilam os pratos: omissão ou ação ou um caótico meio-termo, dependendo de como o governante decide abusar da gente. Em todos os casos, porém, somos submissos e descartáveis. No primeiro (omissão), o descarte é pela exclusão disciplinar do PM; no segundo (ação) é pela morte dele, o que não significa eliminar a hipótese do descarte, presente em ambos. Por fim, a aleatória tentativa do meio-termo, que abraça as outras duas, confunde-as e nos mergulha na escuridão abissal. A vergonha maior, todavia, está na submissão dissimulada no que apelidam de “hierarquia” e “disciplina”, que, sem embargo, lembram os terríveis tempos do “Terror”...
Nos modernizados concursos do CSP e do CAO foram inseridas matérias estranhas ao militarismo, produzindo-se uma contradição: oficiais antigos e bitolados, alguns até incultos, passaram a examinar provas de uma nova geração que, por iniciativa própria, conheciam desde antes os bancos universitários. Daí é que o inculto examinava o culto, estupenda inversão de valores dissimulada em ombros agaloados. “Sabia mais” o de maior patente, mesmo que não passasse de asno. Ah, tempos idos e vividos, e vencidos...
Sim, o tempo venceu muitas resistências internas, e os referidos cursos evoluíram sobremodo. Hoje se integram ao ambiente universitário, onde se aprende a questionar a corporação com vistas a melhorar o desempenho dela em prol da sociedade; e se aprende a avaliar com seriedade as críticas externas, tornando-as insumos a serem processados com o fim da obtenção de ótimos resultados. Nada mais que isto o coronel Menezes pretendeu, ou seja, polemizou com maestria, modo, aliás, de se iniciar uma pesquisa científica: a “polêmica” é, ao lado da “vivência” e da “reflexão”, uma das fontes mais comuns de assuntos para pesquisa, como nos ensina João Álvaro Ruiz (vide Metodologia Científica – Ed. Atlas, São Paulo, 1985, p. 60), ensinamento, aliás, disseminado na corporação a partir dos supracitados cursos.
De 1982 para cá, a corporação se vem tornando um sistema aberto e os questionamentos emergem sem cessar. Os ares da liberdade substituíram o pedantismo intelectualóide interno, este que se poderia resumir na frase de Balzac: “A vida militar exige poucas idéias.” Ah, os ares da liberdade!... Que bom se fosse assim!... Não! Não!... A mudança cultural no âmbito da PMERJ funcionou como antibiótico insuficiente para evitar a proliferação da bactéria denominada tacanhice, e muitas bactérias conseguiram se manter, na forma cística, debaixo dos tapetes ou nalgum cantinho secreto... E ainda sobrevivem em entidades sustentadas pela corporação, consagrando o abuso ao direito constitucional do servidor público de não se associar nem permanecer associado. E a corporação vai seguindo a trilha cômoda do “Ó tempos, ó costumes!”, ou então, como dizia Cícero (De Officiis, I, 28, 97): “Odeiem-me, contanto que me temam.”
Desde que o movimento dos “Coronéis Barbonos” e dos “40 da Evaristo” foi sufocado, – creio que o foi porque faltou ao grupo abrir-se antes para acolher o público interno e aumentar a capacidade de negociar, – a PMERJ apenas ganha tempo cumprindo ordens e enterrando seus mortos. Depois de conquistar a legitimidade e se tornar secretaria de estado, a corporação regrediu ao inglório segundo escalão. Isto, no fundo, representou uma categórica derrota para a nova geração, em especial para aquela que permitiu o retrocesso com o fim de lhe garantir o poder interno. Naquele momento, faltou união e força entre os coronéis, e os que venceram a corrida pelo comando o fizeram segundo os “princípios” descritos pelo mestre Machado de Assis em seu conto “Teoria do Medalhão”. O resultado foi a desunião, cujo ápice vê-se agora: a inusitada prisão do coronel Ronaldo Antonio Menezes, dando-nos a impressão de que todos os coronéis “se prenderam” juntos com ele na circunflexão aos dirigentes políticos que outra coisa não visam a não ser a manutenção do poder à custa do sacrifício diário do PM.
Mas, para que não se diga que sou inflexível em minha crítica, ouso afirmar que os governantes estaduais vêm oscilando entre três situações da alegórica balança (um prato ou outro ou nenhum) por não haver uma solução definitiva, esta que passa pela necessidade de mudanças na segurança pública a partir de uma conjuntura federal (a Carta Magna engessou o atual sistema). Portanto, nada mais a fazer que prover os meios materiais e humanos para funcionar o sistema de segurança pública (exigência da ação), ou não prover meio algum nem exigir nada (a tentativa do meio-termo), ou não prover nada e exigir a omissão. Enfim, três situações que permitem ao leitor escolher quais governantes nelas se inserem, pela ordem: Brizola, Moreira, Brizola, Marcelo, Garotinho, Benedita, Rosinha e Sérgio. Até se poderia conceber outras situações que não vislumbrei, não pretendo ser dono da verdade nem o único cidadão-eleitor PM, condição que me permite avaliar com espírito crítico se votei ou não votei bem em qualquer político.
Não faço esta reflexão como crítica isolada a quem quer que seja. Mas entendo a prisão do coronel com tal gravidade que transcende ao fato em si; vejo-a como falta de vontade dos seus pares em agir e reagir à altura dos nossos antepassados (oficiais e praças) que gravaram em ouro inimitáveis heroismos. Basta citar Tiradentes. E, ao citá-lo, sinto no meu peito uma angústia profunda, pois, como os demais integrantes da PMERJ, o que mais almejo é me orgulhar dos meus superiores hierárquicos, é me orgulhar dos novos coronéis a vencerem os grilhões do passado e a projetarem ao futuro uma vida melhor para a imensa família PM. Mas a minha esperança de cidadania plena está reduzida ao aprisionamento de um de seus insignes idealizadores: o coronel PM Ronaldo Antonio Menezes. Ora bem, que fazer além de um recado derradeiro?... Para os que me leem, confesso o meu espanto! Para o coronel Menezes, minha respeitosa e orgulhosa saudação: a destreinada continência de um velho PM brotada do fundo do coração, e não do punho tacanho que sustenta a minha mão direita, mas não comanda o meu espírito.

5 comentários:

Luiz Alexandre disse...

Parabéns pela postagem. Umas das melhores manifestações de pensamento feita por um Policial Militar que já li em minha vida.

Só ouso discordar do senhor quando diz que: foi-se o tempo onde "“Sabia mais” o de maior patente, mesmo que não passasse de asno".

Anônimo disse...

Cruzes!!! Ainda está assim? Obrigado pelo incentivo. Emocionou-me deveras. Abraços

Emir Larangeira

Anônimo disse...

Prezado Cel Emir Larangeira,

Cumprimentando-o,

Em primeiro lugar, gostaria de parabenizá-lo pelo excelente conteúdo da postagem.

Infelizmente, a cultura de subserviência que permeia as relações de poder e sua lógica perversa implícita de dominação está, cada vez mais, impregnando e corroendo as estruturas organizacionais da Corporação, bem assim enfraquecendo e corrompendo os seus agentes.

Além de contribuir para a deterioração dos pilares fundamentais da oganização policial, essa situação vem ao longo dos anos comprometendo sobremaneira os valores institucionais, morais, deontológicos e sociais.

Saudações fraternais,

Antonio Carlos Carballo Blanco
Ten Cel de Polícia

Anônimo disse...

Prezado Ten Cel Carballo

Obrigado pelo comentário e parabéns pela riqueza do seu conteúdo. Realmente, o que nos deixa cada vez mais perplexos é o fato de sabermos que a PMERJ possui tantos talentos sufocados pela ausência de paradigmas ajustados à nova ordem constitucional. Precisamos até de mais que isso, a CRFB nega-nos muitos direitos inerentes à cidadania, mas bastaria respeitá-la para começar. Não aprendemos ainda nos unir numa só força a ser respeitada pelo poder político. Reduzimo-nos ainda, e infelizmente, ao que sugere Cecília Meireles no poema que sublinhei. Mas guardo em mim a esperança nos jovens talentosos como você e tantos outros que conhecemos e admiramos.
Um afetuoso abraço!

Emir Larangeira

paulo fontes disse...

Caro amigo Larangeira,
Mais uma vez venho te cumprimentar pelo brilhante e emocionante artigo
postado no teu blog.
É uma jóia rara que brilha e ilumina e escuridão em que vivemos.
Nossa fome de liberdade, nossa luta pela dignidade, nosso anseio por melhores dias são mitigados
por artigos como o teu e como o do Coronel Menezes.
Embora a cultura da subserviência ainda permeie as relações entre a Corporação e o poder governante,como disse o Coronel Carballo, tenho esperanças de que um dia a nova geração ainda possa repetir o famoso "cerco ao palácio", de 1981, quando a esmagadora maioria do oficialato lá compareceu, exigiu melhores salários e depois se apresentou "presa" no QG/PMERJ.
Eu era 1º Tenente e tive a honra e a sorte de ter participado do movimento histórico.
Já na passaeta de janeiro de 2008 eu também estava presente mas senti falta dos jovens oficiais, principalmente Tenentes e Capitães.
Em compensação fiquei emocionado ao ver o velho companheiro Coronel Santos Filho como um dos líderes da manifestação.
Um grande abraço do
TC FONTES