Nos tantos anos em que servi à população como integrante da PMERJ, foram poucos os que a instituição se manteve firme e decidida quanto à sua destinação, ao seu treinamento e aos valores que informavam sua discreta atuação nas ruas. A tônica era a da subordinação ao Exército Brasileiro, e a doutrinação vinha de fora, de manuais norte-americanos traduzidos e fornecidos por uma organização governamental dos EUA conhecida pela sigla “Ponto Quatro”. Com base nesta doutrinação ianque, que situava o comunismo como o grande mal da humanidade a ser combatido, as Diretrizes Bienais de Ensino e Instrução eram emitidas para as Polícias Militares e sua aplicação nos cursos de formação e aperfeiçoamento de oficiais e praças era regularmente cobrada em visitas de inspeção promovidas pela Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão do Estado-Maior do Exército.
Não se falava em bandido, mas em “subversivo”, e os ensinamentos policiais, mínimos, seguiam um antigo manual editado pela PMDF com a denominação de Manual Básico de Instrução Policial ou algo semelhante. Nele se ensinava o comportamento padrão de policiais-militares ante ocorrências criminosas, tais como arrolamento de testemunhas, preservação de locais de crime, eventuais prisões em flagrante e encaminhamento posterior dos elementos de prova à Polícia Civil, lavrando a guarnição o respectivo TRO (Talão de Registro de Ocorrência), simultaneamente à lavratura do Registro de Ocorrência (RO) pela Polícia Civil, após o que o policial civil assinava num campo do TRO o recebimento da ocorrência, cujo prosseguimento, não sendo flagrante delito, dependia de avaliação posterior do Delegado de Polícia. E, como eram poucas as ocorrências, geralmente consequentes da ação da Polícia Militar em grandes eventos populares, e bem menos de rotina, o policiamento exercitado pela corporação mantinha uma frequência mínima. Não importando aqui se a nomenclatura dos registros de antanho era a mesma de hoje, ainda na década de sessenta, na verdade, o policiamento ostensivo era exercitado pela Polícia Civil vestida em uniforme de patrulheiro e embarcada em viaturas caracterizadas. Porém, nos últimos anos desta década as Polícias Militares foram jorradas nas ruas e logradouros pela União, desviando-se as Polícias Civis e outras instituições (Corpos de Bombeiros, Guardas Civis, Guardas Municipais etc.) para afazeres restritos, com algumas dessas instituições entre parênteses sendo absorvidas pelas Polícias Militares.
Enfim, a partir de 1964 houve uma significativa mudança comportamental das polícias a “toque de caixa”, sem que os espíritos policiais fossem para tanto preparados. Deste modo abrupto, os policiais iniciaram novas e estranhas incumbências arrumadinhas no continente e confusas no conteúdo, com o primado das improvisações a lembrarem um pântano movediço e sua crosta enganadora. E, em meio a esse desordenamento invisível, tal como um câncer em metástase, as duas instituições policiais se debatiam como condenados sem direito a recurso. Era esta a ordem do sistema situacional, e que cada instituição se adaptasse às novidades lançadas no ambiente pelos vencedores! (“Ao vencedor as batatas!”) Claro que, servis ao extremo (as instituições eram e ainda são piramidais em suas estruturas de poder interno), os eventuais mandatários dessas instituições bajulavam para cima e pressionavam para baixo em insuportável manu militari: “Tudo que o mestre mandar, faremos todos!”
Diante da impossibilidade de brigar para cima, o jeito foi conflitar-se lateralmente, como hoje assistimos a fazer a Polícia Militar e a Polícia Civil, e, eventualmente, os Corpos de Bombeiros, com a sede de uma dessas instituições, inclusive, invadida à força por uma Polícia Militar, episódio absurdo que, desgraçadamente, ocorreu no RJ. Sim, acostumamo-nos a brigar entre nós na impossibilidade de fazê-lo verticalmente, e não apenas durante o regime militar, mas agora, em plena democracia, tudo por conta do “vício do cachimbo”. Enquanto isso, as instituições definham em qualidade e a violência e o crime avançam minando os alicerces de duas polícias ineficientes e ineficazes na proteção dos cidadãos. Porque elas, descontroladas, não evoluem no sentido positivo, mas involuem em virtude de rivalidades que não findarão enquanto o modelo for mantido.
Aliás, durante o regime militar as secretarias de segurança pública eram comandadas por oficiais-generais do Exército Brasileiro (raramente ocupava o cargo um coronel), assim como a legislação (Decretos-Leis) primava pelo controle das duas polícias. Ocorre que esse modelo ainda perdura, notando-se apenas a ausência dos militares, embora alguns governantes eleitos pelo povo insistam em privilegiar militares nesse elevado cargo, que, antes de funcionar como mediador de conflitos, é fomentador deles. Cá entre nós, certo estava o Governador Leonel Brizola ao extinguir a SSP por entendê-la desnecessária, apêndice pronto a supurar e que nenhuma falta fez quando extirpado pelo velho caudilho. Vale o argumento para os órgãos hoje pendurados na estrutura da SSP, lá gauderiando enquanto as polícias brigam, com relevo para a inútil Corregedoria Interna Unificada (CGU/RJ), má ideia surgida para engrossar a crosta do terreno movediço das relações institucionais PMERJ-PCERJ (ou PCERJ-PMERJ, para não dizerem que ponho uma à frente da outra).
Agora a briga é a lavratura de Registro Policial Militar (RPM) nos casos de ocorrência de menor potencial ofensivo, em minha opinião uma causa perdida pela PCERJ, pois não se trata de invenção da PMERJ, mas da necessidade de atender aos preceitos da Lei 9099/95, vinda exatamente para combater a morosidade dos inquéritos policiais e, principalmente, retirar da competência policial o julgamento dessas ocorrências, que se deve restringir à competência do Ministério Público (formulador único e exclusivo da opinio delict) e da Justiça (único órgão competente para julgar). Porque a polícia administrativa (PMERJ) apenas anota as ocorrências e a polícia judiciária (PCERJ) prepara em inquérito policial os fatos anotados para posterior decisão judicial, sem essa de ocorrências encerradas por PMs no local ou por PCs em delegacias, prática obscura que precisa ser atalhada, e está efetivamente sendo, em vista das regras estabelecidas pela Lei 9099/95, que excluem quaisquer poderes de decisão na esfera policial. Pelo menos em tese...
Falta, então, para melhorar os sistemas policiais, que o governante extinga a SSP e seus órgãos, transformando as PCERJ e PMERJ em secretarias de estado, de modo que ele, governante legitimado pelo voto popular, funcione como mediador desses intermináveis conflitos policiais, sem intermediários tendenciosos... Afinal, estava com razão o velho caudilho, que, com sua sabedoria política, minimizou sobremodo as rivalidades entre as polícias, já que a origem delas está no modelo, que é nacional e malmente regido pela Carta Magna. Isto, sim, precisa ser mudado, de modo que surja no Brasil uma polícia única (ou separada por território), mas completa, coesa e de consenso. Porque, cá entre nós, a PCERJ e a PMERJ não melhoraram seus desempenhos ao longo desses turbulentos anos, o que garante a inutilidade dos conflitos, que lembram, sem sombra de dúvida, a alegoria dos burros e suas inalcançáveis moitas mui bem inserida pelo Professor da UERJ e Coronel PM Jorge da Silva num recente texto reproduzido neste blog.
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