quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ainda sobre UPPs

Fonte: Jornal O DIA, de 09/09/2011


A falta de espírito adota todas as formas apenas para se esconder por trás delas: ela se disfarça num modo empolado ou bombástico de se expressar, no tom da superioridade e da fidalguia e em centenas de outras formas. (Arthur Schopenhauer)


O anúncio governamental nos jornais de hoje de que a UPP do Complexo do Alemão consumirá 2200 PMs, − demais de quase 400 outros a serem destinados à UPP da Mangueira, decerto dois quantitativos necessários ao êxito da pacificação, − tem, porém, seu lado momentaneamente desfocado da realidade do efetivo total da PMERJ e de sua distribuição pelo território fluminense. Essa distribuição era até então pautada por certo equilíbrio na relação policial/população. Não que fosse este um fator decisivo, mas um dentre muitos a serem considerados como prioridade em Levantamento Estratégico com o fim de definir a real necessidade de policiais em determinado ambiente social.
Inobstante a regra, que não pode ser pétrea, a distribuição do efetivo sempre sofreu pequenas distorções decorrentes de idiossincrasias políticas. Essa intervenção velada da política jamais será assumida pela corporação, mas é inevitável no contexto corporativo. E não são poucas as ocasiões em que a intervenção política na distribuição do efetivo sai da cortina de fumaça e assume contornos reais. É o caso recente das UPPs, cuja concentração de efetivos para atendê-las põe-nas na contramão da doutrina de prevenção pela máxima frequência do policiamento ostensivo nos multifacetados ambientes do RJ.
Na medida em que os efetivos são concentrados, − e não há outra forma de manter funcionando as UPPs, sob pena de a relação de força polícia/bandido beneficiar o segundo, − a frequência geral do policiamento resta prejudicada. Por outro lado, a concentração do efetivo em favelas dominadas pelo tráfico é imprescindível, não importando aqui a nomenclatura desse tipo de ação nem qual a comunidade privilegiada. É mais ou menos o que assistimos no Sambódromo, no Carnaval, ou num Fla-Flu, no Maracanã, em final de campeonato. Porque num ambiente restrito o policiamento é exercitado em máxima frequência e a prevenção naturalmente predomina, ficando a repressão como exceção, porém capaz de pronta resposta. É a lógica da prevenção nas localidades com UPPs, sem qualquer segredo ou milagre.
Insisto, porém, no meu espanto, pois sei que as fornalhas de PMs estão sendo maciçamente direcionadas para as UPPs enquanto os efetivos das demais Unidades Operacionais espalhadas pelo território fluminense reduzem-se a olhos vistos. Os motivos são vários (férias, licenças-prêmios, dispensas por doença, exclusões disciplinares, pedidos de licenciamento, prisões disciplinares e judiciais etc.). Repor a tempo esses efetivos implica um plano de contingência oneroso, tal como é pesado o ônus criar e manter uma UPP. Mais ainda me espanto ao perceber que o dia a dia das UPPs já demonstra certa degeneração, sem que seus motivos sejam conhecidos. Falta um diagnóstico profundo e parece que agora ele será objeto de preocupação corporativa e governamental. Isto é bom. Corrigir rumos é preciso, e torço para que a correção garanta a permanência das UPPs como solução para o grave conflito embutido da tríade “trabalhador-policial-bandido” sublinhada por mim em outro artigo e grande desafio cultural a ser vencido.
Creio ser hora de mostrar à sociedade fluminense a realidade global em vista da especificidade das UPPs, estas, destoadas da natureza indistinta do policiamento ostensivo na manutenção da ordem pública, que é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos. Pois o cidadão lá dos roçados longínquos detém o mesmo direito à segurança individual e comunitária que o favelado do Complexo do Alemão ou da Mangueira. E, considerando a capacidade de movimentação dos traficantes expulsos das localidades pacificadas, é possível supor que estejam hoje desfrutando das benesses do crime nesses locais ermos e sem policiamento. Aliás, a prática de bandidos se homiziarem em sítios interioranos é antiga. Eu mesmo, nos meus velhos tempos, localizei uma ilha fluvial de 10.000 m2, no rio Muriaé, Município de Italva, Norte Fluminense, pertencente a Tunicão (Antonio Carlos Coutinho), traficante-mor da favela de Acari. Também me recordo de que o traficante Celsinho da Vila Vintém foi preso num sítio em Papucaia, Distrito do Município de Cachoeiras de Macacu, local que também servia de esconderijo seguro a Escadinha.
Preocupa-me, pois, a concentração de efetivos, bem mais por não perceber nenhum anúncio das autoridades indicando a disposição de repor os efetivos interioranos e dos quartéis da Baixada Fluminense. Sei, por outro lado, da migração compulsória de muitos PMs interioranos para as UPPs, modo distorcido suprir as idiossincrasias políticas supracitadas. Claro que nas eleições vindouras tal procedimento será cobrado nas urnas; mas, enquanto isso, o interior e a Baixada Fluminense estão verdadeiramente esvaziados de efetivos e não se fala em reposição em curto prazo. Pois as pressões estão sobre as UPPs, e o tempo urge, e novas fornadas de PMs já estão comprometidas com as UPPs adrede anunciadas. Enfim, sobra espírito público em relação às UPPs e falta espírito público em relação ao restante do território fluminense e sua imensa população, o que talvez esteja produzindo os discursos de momento de políticos e autoridades focando o específico para ocultar o geral, tal como sugere o provérbio alemão: “A árvore oculta a floresta.” Conclusão, enfim, que me conduz ao pensamento do filósofo sublinhado no frontispício...


Um comentário:

Paulo Xavier disse...
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