quinta-feira, 30 de junho de 2011

Sobre a mea-culpa governamental

Fonte: Jornal O GLOBO de 30 de junho de 2011



E não resistiu o Criador em disparar críticas contra o egocentrismo clerical, elevando-as ao ápice quando se referiu a Pio IX, que na maior cara-de-pau instituiu a infalibilidade papal, tornando-a dogma a ser digerido na base de ameaças de danação endereçadas aos recalcitrantes. Coisa tão séria que o alucinado papa chegou a mandar um aleijado andar e o pobre-diabo espatifou-se no chão. Enfim, mero poder terreno elevado ao cume da loucura, eis os pilares da igreja forjada por séculos e séculos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém!” (Emir Larangeira in Que Mundo é Este?)

A mea-culpa do governante Sérgio Cabral, estampada nos jornais de hoje, me fez lembrar a infalibilidade papal formalizada por Pio IX em tempos remotos, instituto clerical, aliás, atualíssimo por não ter sido revogado. Também me fez rememorar o psicanalista, sociólogo e filósofo alemão Erich Fromm e sua máxima: “A calamidade é ruim para o povo, mas boa para a sociedade.” Por que a mea-culpa ensaiada pelo governante não me parece nada além de pânico ante o fato grave de imoralidade pública que não se desfaz por vontade dele nem por decreto por ele subscrito, posto a recomendação inversa já constar no Art. 37 da Carta Magna:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)



(...)






§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.



Se não bastasse, ainda se há de considerar o Código Penal:




(...) Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem (...) Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)




É evidente que os indícios de atos dessa natureza assim noticiados não podem receber tratamento diferenciado e se extinguirem a autoria e a culpa por meio duma singela mea-culpa. Assim proceder é fazer de palhaço o mundo inteiro e estender a histórica e absurda infalibilidade papal a uma nova versão: a infalibilidade governamental proposta pelo próprio governante. A ninguém é dado o direito de se livrar de indícios de crime com desculpas teatrais encenadas diante do espelho e tendo nas mãos o roteiro. É muito manjado esse golpe.
Porque nenhuma desculpa apagará a nódoa da invasão do sagrado lar dos soldados do fogo pelo BOPE, e esta foi a ordem de cima para aplacar a justa ira duma categoria que vem clamando por melhores condições de trabalho e de vida sem produzir nem mesmo coceira nos ouvidos moucos dum governante insensível em relação aos servidores públicos que comanda e usa à vontade por conta do seu elevado cargo público. E no seu mundo particular esbanja charme e riqueza decerto escudado em sua própria e consagrada infalibilidade governamental que agora proclama para se livrar de suas graves irresponsabilidades acumuladas.
Fosse eu um bombeiro-militar não perdoaria a invasão nem aceitaria nenhuma desculpa esfarrapada de quem, por conta e risco de suas estripulias, perdeu o céu e o chão. Fosse eu um bombeiro-militar, não sublimaria nada do que houve em vista da intenção do ofensor moral de se livrar dum problema que considera menor ou até inexistente: a crise dos bombeiros-militares por ele tachados de “vândalos”. Porque ele o faz para se entrincheirar na defesa das graves acusações de improbidade administrativa cujo tipo penal está inscrito na lei pátria sob o título de Corrupção Passiva. Eis o tamanhão do Leviatã ao contrário que a arrogância daquele que se vinha achando semideus deverá enfrentar, com fortes possibilidades de perder a luta em nome da moralidade pública.
Desculpem-me, leitores, mas a retratação do governante em relação aos heróis do fogo, do ar, da terra e da água também me faz lembrar alguma filigrana jurídica para evitar danos futuros em processos criminais e cíveis, como nos sugere o Art. 107, Inciso VI do Código Penal pátrio. Pois, considerando o passado de ofensas gratuitas por ele endereçadas aos servidores públicos, não dá para confiar no seu discurso mui bem elaborado em que cada palavra parece medida (juridicamente orientada...). E não se há de estranhar essa mudança de comportamento. Afinal, é o que um bom ator faz ao encenar personagens vários nos palcos das ficções. Mas a vida não é um palco de ficções; é cenário de realidade a acolher sentimentos que foram irremediavelmente danificados por um ente real, eleito pelo povo e compromissado com a legalidade, com a impessoalidade, com a probidade, com a moralidade, com a publicidade e com outras obrigações intransferíveis em se tratando de detentores de cargos públicos, sejam ou não eletivos.
De tudo que se ouve ou lê se ressalta um provável “ato falho” do personagem-foco desta reflexão: o governador Sérgio Cabral Filho. Sim, pois é o que se deduz do seu dizer publicado no Jornal O Globo de hoje, dia 30 de junho de 2011:



Eu errei quando chamei de vândalos (bombeiros) porque eles erraram, se comportaram mal, mas é uma instituição muito querida pela população.





Com efeito, a instituição (Corpo de Bombeiros) é “muito querida pela população"... Mas, ao que parece, não é muito querida por ele, que continua maltratando os militares estaduais por oportunismo ideológico irascível. E talvez seja esta a razão de ele inadvertidamente ter-se excluído da “população” a que se referiu... Ou então seu dizer foi consciente e não houve “ato falho” algum...

3 comentários:

Reflexões e Verdades Maçônicas disse...

Parabens!
Não esperaria outra postura sobre o assunto em seus escritos.
Fascina-me, no entanto, a abrangencia da abordadgem e a clareza imparcial.

Abraços,

Luiz da Silva Muzi

Paulo Xavier disse...

Infelizmente essa é a realidade do nosso Estado do Rio de Janeiro atual. Servidores Públicos mal tratados, população desconfiada e a certeza que esse escândalo com o nosso governador terminará em "pizza".
Nunca tive medo de afirmar que fazemos parte de uma sociedade hipócrita. O mesmo cidadão que critica um policial que supostamente se envolveu num ato de corrupção, é o que oferece dinheiro para liberar seu carro irregular, e também vota num candidato que todo mundo sabe que é envolvido em atividades que lhe rende padrão de vida nababesco, digno de um rei.
Hoje temos um batahão de ex-PMs que deve está se perguntando: Poxa, fui excluído porque ganhei de presente um quilo de linguiça do português da padaria da esquina ou porque dei um tapa na cara de um vagabundo que me desafiou . Será que a Lei será igual para todos? Afinal, todos somos iguais perante a lei, ou não somos?

Anônimo disse...

Muitos enxergam os absurdos cometidos pelo Governador, porém poucos sabem expressar de forma tão clara e abrangente, que possibilite aos demais conhecerem dos fatos.
Excelente, Comandante.
Abs,
Rogério Lira da Costa