domingo, 19 de junho de 2011

HORA DE MUDAR



São duas importantes discussões levadas à opinião pública, neste domingo, pelo Jornal O Globo: a desmilitarização dos corpos de bombeiros e o desarmamento dos seus membros, assunto tratado à unanimidade de opinião entre juristas e cientistas sociais entrevistados. Interessante a abordagem porque segue uma lógica perfeita sob o ponto de vista da operacionalidade dos Corpos de Bombeiros vinculada ao militarismo, fator que se vem demonstrando desanimador em todos os sentidos.
Relembrando um pouco: antes de 1964, quase todos os Corpos de Bombeiros pátrios eram municipais e civis, embora utilizassem farda e insígnias como se militares fossem. A partir de 1964, eles foram integrados como segmentos das Polícias Militares, exceção havida no antigo Distrito Federal e mantida no novo Estado da Guanabara, que separou as duas instituições como até hoje funcionam. No antigo RJ, porém, os Corpos de Bombeiros municipais se incorporaram a “toque de caixa” à antiga PMRJ, o que foi bom para seus efetivos devido às incertezas da profissão, incluindo salários insignificantes ou sem a necessária constância. Mas o “militarismo” deles... Que improviso!
Sem dúvida, a militarização dos Corpos de Bombeiros não foi útil em nenhum sentido. Cá pra nós, nem a militarização das Polícias Militares jamais serviu aos seus propósitos de polícia administrativa de manutenção da ordem pública. Nos dois casos, o “militar”, embora substantivo, não possui a devida legitimidade perante os militares de verdade, em especial os do Exército Brasileiro, que agrilhoaram as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares como “forças auxiliares” apenas para controlá-los em vista do temor de sublevações de Estados-membros capazes de pôr em risco o regime militar e outros anteriores e não menos despóticos.
Quem atentar para o Inciso XXI do Art. 22 da Carta Magna não pode ter dúvida quanto a esse exagerado temor da União (entenda-se Exército Brasileiro):
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXI − normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;”
É importante sublinhar que o status dos Corpos de Bombeiros Militares e das Polícias Militares não decorre do interesse dessas instituições. O que não há é vontade política, no âmbito nacional, de mudar o modelo de segurança pública, ainda sobrecarregado de todos os resquícios ditatoriais; pior é que são instituições ignoradas pelo Exército Brasileiro, este que, atualmente, não mais se preocupa com suas “forças auxiliares”, deste modo atreladas somente para efeito de controle rígido de sua evolução nos Estados-membros em vista de interesses com a Defesa Interna (ideológica), sendo certo que a Defesa Territorial (hipótese de conflito externo) é preocupação remotíssima.
Como expõe muito bem na matéria em comento o antropólogo Roberto Kant de Lima, professor da UFF e especialista renomado no contexto da segurança pública, o militarismo imposto aos Corpos de Bombeiros e às Polícias Militares “é uma visão equivocada”. Tem razão, assim como todos os entrevistados estão plenos de razão: é hora de rever o modelo policial brasileiro não apenas desmilitarizando os Corpos de Bombeiros, mas também as Polícias Militares, moldando-os para melhor atender à nova realidade nacional, sem preconceitos semânticos (ideológicos) interferindo. O modelo há de ser predominantemente civil, sepultando-se em definitivo o sistema de desconfiança do poder dominante (sempre militarizado) em relação ao povo brasileiro, vício que remonta ao Brasil Colônia, passa pelo Brasil Império, alcança o Brasil República e paira ameaçadoramente nos dias de hoje.
O que não se admite, todavia, é que a mudança do sistema policial brasileiro seja novamente fruto de trapaças nos bastidores do Congresso Nacional, como hoje observamos não sem apreensão. Porque as Polícias Civis, aproveitando-se dessa paranóia contra o militarismo em razão dos tempos de chumbo, e ignorando que elas participaram ativamente da repressão política, por meio de seus DOPs (Departamentos de Ordem Política), até mais que as Polícias Militares, agora dão de “vestais imaculadas”. Ora, não lhes cabem agora vestir-se de anjos para defenderem Projetos de Emendas Constitucionais (PECs) muito mais voltados para a concentração de poder do que para o atendimento ótimo da sociedade brasileira na luta contra a criminalidade.
O momento, sem embargo, é o de ouvir pessoas capazes e isentas, embora também essas não estejam livres de preconceitos. Mas o equilíbrio virá da discussão, mormente porque falamos de autênticos especialistas do mundo jurídico, antropológico, sociológico etc. Essa plêiade de autoridades universitárias bem que poderia elevar a discussão em seminários até chegar à ação, ou seja, à apresentação de um modelo conjuntural a ser abraçado pela classe política a partir de iniciativa do Poder Executivo. Esse modelo, porém, não deve ser apenas policial, mas de segurança pública como um todo, o que implica considerar vários sistemas interagindo em perfeita sintonia: Ministério Público, Subsistema Carcerário, Leis Penais e Processuais Penais, Justiça Criminal, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil e outras entidades públicas e privadas garantidoras da cidadania e dos direitos humanos.
Em termos conceituais, é possível crer na bagagem cultural dos nossos especialistas pátrios, dedicados estudiosos que desde muito percorrem o mundo perscrutando o assunto e realizando estudos comparados com o sistema nacional de segurança pública, se é que este mereça ser assim denominado. Eu creio que não, pois muito se há de fazer no sentido de modificar o arremedo de sistema existente, alterando profundamente o que está na Lei Maior e no seu aterrador “TÍTULO V: Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”. Ora, o foco deve ser o cidadão e a comunidade como principais fatores de garantia. Não se pode mais admitir que a sociedade brasileira seja responsável precipuamente pela “defesa do estado e das instituições democráticas”. Isto é falácia, pois, afinal, “o estado e as instituições democráticas” existem ou deveriam existir para servir à sociedade e não o contrário.
É tão absurdo o sentido da segurança pública na Carta Magna que, para atender aos interesses do “estado” e das “instituições democráticas” começa-se realçando os estados de exceção legal, antidemocráticos por excelência por ameaçar a regra geral da paz e da liberdade. Também é hora de pôr as Forças Armadas como coadjuvantes do processo de garantia da lei e da ordem internas e não como protagonistas principais e exclusivas dessa tão descarada preocupação com a Defesa Interna (com seus matizes e texturas “subversivos”). Porque é certo que “a lei e a ordem” do caput do Art. 142 não se reduzem à ordem e à segurança públicas, mas à ordem e à segurança internas, temas inapropriados num país atualmente despido de ideologias dominantes, sejam de esquerda, de direita, de centro, ou quaisquer outras postas no continuum que se denomina Estado Democrático de Direito.
O império é o das leis vigentes, sim. Mas muitas estão defasadas ou foram mimetizadas na Constituinte para deixar “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Reescrever a Carta Magna, pois, é preciso, de modo que se clarifiquem os limites das Forças Armadas nas questões internas e libertem os Estados-membros e suas polícias, claro que num sistema de leis que garantam a unidade nacional e, sobretudo, o sistema nacional de segurança pública, que hoje se reduz a uma piada mau tecida no ideário pátrio, a ponto de vermos heróis do fogo enquadrados em crime militar típico dos tempos de guerra.



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