Se existe uma falácia etimológica retumbante é a de que o militarismo, em virtude da hierarquia e da disciplina que o regem, é o melhor modelo de organização que se conhece. Na verdade, é um dos piores, e bastaria sugerir a leitura de Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir (Corpos Dóceis). Aceitar e conviver com essa etimologia fantasiosa é abominar a própria constituição das sociedades (eminentemente civis) e transformar condenável exceção em regra. Afirmo-a, a exceção (o militarismo), como condenável porque foi em nome desta “hierarquia e disciplina” que milhões de jovens foram ceifados no transcurso dos tempos: “... Que as alegres canções dos trovadores eram sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” (René Fülöp-Miller – Os Santos Que Abalaram O Mundo).
É deveras reducionista a declaração do capitão BM Alexandre Machado Marchesini, do Grupamento Operacional Para Tecnologia Avançada (Gota). Ele apenas se declara tão “corpo dócil” quanto seus subordinados, pois esquece de que as organizações de bombeiros ao redor do planeta são civis e a maioria delas é voluntária. Bastaria aqui citar a heróica ação dos bombeiros nova-iorquinos na tragédia de 11 de setembro para fazer cair por terra a tese do capitão em defesa do militarismo praticado pelos bombeiros, e (por que não dizer?) também pelos policiais-militares (insisto no hífen, pois se trata de composto por dois substantivos que só servem para confundir).
Por sorte, o ilustre oficial BM reconhece que o modelo não carece de ser militarizado para funcionar a contento, mas encerra com uma pérola de incongruência: “No organismo militar, podemos servir fora de nossas funções e especialidades.” Ora, ele absolve ou condena o militarismo no fim de contas? Desejou ele avalizar ou derrocar os desvios de função abundantes entre os militares estaduais, a ponto de toda estrutura organizacional do CBMERJ ser deslocada para a pasta da saúde, com muitos bombeiros-militares exercitando outras funções e especialidades estranhas ao cotidiano do labor de soldados do fogo.
Nada demais. Creio que a declaração do capitão se insere como pequena engrenagem da imensa maquinaria estatal representada pelos Corpos de Bombeiros Militares e pelas Polícias Militares, instituições praticantes do militarismo “denorex” (neologismo tornado famoso no sentido da coisa em si ser e não ser concomitantemente, como, por exemplo, uma “pirataria”...). Ora, os militares estaduais, além de vivenciarem essa perturbadora ambiguidade (da garrafa meio cheia ou meio vazia), são tratados como vermes à luz dos direitos de cidadania configurados na Carta Magna.
São os militares estaduais nada mais que rebanho piqueteado aguardando o abate. A imobilidade social garante a fácil reposição do gado abatido por motivos vários, sendo um deles o descarte desumano graças a esse militarismo e à sua hierarquia e disciplina mui distantes da legitimidade da outra hierarquia e disciplina praticadas pelos militares de verdade: os integrantes das Forças Armadas. O resto é falácia etimológica, é militarismo ilegítimo e fadado à ilegalidade dos atos praticados sempre de cima para baixo ao sabor das idiossincrasias políticas e da subserviência dos dirigentes militares estaduais aos variados (e tresvariados) governantes: “Vede os pequenos tiranos/ que mandam mais do que o Rei/ Onde a fonte de ouro corre/ apodrece a flor da lei!” (Cecília Meireles).
Tal fenômeno não ocorre no seio das Forças Armadas porque entre seus integrantes há a disciplina e a hierarquia conscientes e uma doutrina de emprego que garante o exercício sereno dos treinamentos e das missões exercitadas na paz e, se necessário, na guerra. Já os militares estaduais, que têm menos a ver com uma futura hipótese remota de guerra do que os civis a serem mobilizados, posto que estes enfrentarão o inimigo antes mesmo dos militares estaduais, ficarão cuidando da segurança pública como atividade precípua, ou seja, a mesma dos tempos de paz.
Portanto, militarismo nas polícias estaduais e nos bombeiros estaduais pra quê? Ora, para garantir o manuseio dos contingentes como se gado fossem e abatê-los à vontade, como agora assistimos com o sacrifício de quase 500 bombeiros-militares por uma justiça castrense que não passa de desnecessário apêndice que supura e mata se não for extirpado, mas, se o for, nenhuma falta fará ao organismo humano.
De qualquer modo, − e por conta desse ufanismo de condenado a pelotão de fuzilamento, − os militares estaduais defendem posições irreais enquanto a realidade é o encaminhamento de todos ao final infeliz no Congresso Nacional, lugar onde tramitam Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), que, antes de traduzirem anseios da sociedade, apenas informam a sede de poder das Polícias Civis. Porque, diferentemente de nós, − “militares denorex”, − elas são “civis”. Ou seja, nada pagam pela merecida pecha de “polícia política” que se vem desdobrando em serviços sujos de perseguição política desde o Estado Novo e depois por meio de seus DOPs e porões de tortura. Mas isto não importa aos detratores dos militares, até porque não há outro modelo defeso: ou se é militar ou civil.
Eis o maniqueísmo a impedir que os militares estaduais progridam para uma terceira via, que seria a da instituição civil atuando em modelo militar, como, aliás, as polícias civis (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícias Civis Estaduais) tão bem o fazem de uniforme imitando farda, exceto prestar continência e amar a subserviência, mas com forte base hierárquica e disciplinar... CIVIL. E não há de haver agente de polícia judiciária menoscabando a autoridade do delegado de polícia, o que põe por terra a teoria do ilustre e equivocado companheiro capitão BM Marchesini.
A verdade é que os militares estaduais devem se preparar para futuras mudanças, e elas decerto serão no sentido da reformulação do modelo policial brasileiro, tornando-o civil. E não pensem os militares estaduais que as Forças Armadas se preocuparão com nosso destino, eles estão cuidando dos problemas deles e o fazem mui bem. Demais disso, contam com o fato de que não são “militares denorex”, não representam a ambiguidade da garrafa meio cheia ou meio vazia. Eles verdadeiramente são militares. Nós tentamos inutilmente sê-los. Eles vencerão os tempos. Nós afundaremos em nossa própria arrogância e no imediatismo interesseiro do “urso teimoso” de Shakespeare: “Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista de ouro, deixa-se conduzir pelo nariz”.
2 comentários:
concordo plenamente com o que o sr. escreveu, sou polícial milítar em minas gerais e concordo (milítar) é o exército marinha e aeronáutica o resto é denorex. faltam o4 anos para que eu vá para a reserva da pmmg, talvez eu não esteja mais na ativa quando as polícias militares se desmilítarizarem mais isto acabará acontecendo, quer os oficiais queiram ou não.
A verdade é que...
Pouco importa se o regime é militar ou civil, o importante é que os serviços prestados a sociedade sejam de qualidade, e o que determina o desempenho de cada instituição, certamente não é o regime. Será, por exemplo, que o CBMERJ alcançaria os 100% no índice de aprovação junto a sociedade se passasse a ser civil???
Será que quem realmente necessita dos serviços essenciais destas instituições está preocupado com ISTO???
E quem deveria ser desarmado???
Não seria mais lógico, importante, coerente e inteligente se as preocupações fossem voltadas para as armas que estão em poder dos bandidos???
E fazer analogia do Brasil com outras nações, parece até comédia...
Afinal de contas são povos diferentes, histórias diferentes, culturas diferentes, organizações sociais e políticas diferentes, e bla bla bla!!!
Não precisa ser escritor nem polêmico pra ver isso.
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