sábado, 18 de junho de 2011

ESTOURO DA BOIADA



Há na cultura profissional da PMERJ alguns conceitos que devem ser atentamente observados quando se trata de coibir manifestações populares. Primeiramente, releva-se a distinção entre aglomeração, multidão e turba, pois suas características indicarão os cuidados com a seletividade do uso da força. A aglomeração é a que se assiste no cotidiano das pessoas, que, embora caminhando ou estacionando em grandes quantidades nas vias públicas, seus membros não comungam pensamentos e motivações comuns. No Saara, Centro do Rio, por exemplo, aquelas gentes comprando não se ligam uma às outras. Porém, se houver algum evento que torne comum o pensamento delas, temos aí a formação consciente ou inconsciente da multidão. É como devemos considerar as torcidas organizadas nos estádios. E basta haver algum incidente para que essa multidão se torne turba, gerando consequências tão incomensuráveis como velozes. Dos exemplos de turba a sublinhar, releva-se Carandiru, acontecimento até hoje carente de explicação, sendo certo que a mais simples seria aceitar que ambos os lados da contenda se tornaram turba e saiu derrotado o lado que não possuía a mesma força de confronto do outro: os bandidos.
A turba pode ser manifestar do nada. Uma aglomeração pode se tornar multidão em segundos, e em seguida transformar-se em turba. Exemplo clássico foi o aumento da passagem de coletivos no Rio de Janeiro, anúncio feito nos pontos de ônibus após o expediente de trabalho sem que a população aglomerada nas diversas paradas o soubesse de antemão. O efeito foi como relâmpago descendo e atingindo a todos ao mesmo tempo, e as aglomerações distintas se tornaram multidão motivada pela indignação, e, ato contínuo, emergiu uma turbamulta que transformou o Centro do Rio num inferno. O fato ocorreu na década de 80 e jamais será esquecido, pois a PMERJ, sem ter sido nem mesmo remotamente comunicada que havia a possibilidade da inconsequente sentença judicial, não se preparou conter o evento turbulento. Sem coerção suficiente, a turbamulta incendiou ônibus, depredou lojas e agrediu motorista e trocadores; enfim, parecia estouro da boiada.
O ser humano não está livre de se tornar irracional, tanto individual como coletivamente. São incontáveis os exemplos de turbamulta e inúmeros os seus motivos, não cabendo aqui a necessidade de enumerá-los. Mas podemos dizer que algumas aglomerações podem ser induzidas a se tornar multidões por líderes que as influenciam fortemente, assim como podem alcançar o estágio de turbamulta a partir dessas influências. Por outro lado, fatores inesperados, como os desastres naturais ou artificiais, podem produzir turbamultas e resultar mortes coletivas por pisoteio e outros acidentes. O pânico que às vezes surge do curto-circuito numa fiação elétrica e o espocar do transformador numa rua apinhada de gente podem ser suficientes para fazer com que uma aglomeração vá direto à turbamulta, aos saques, ao pisoteio de pessoas, sem a consideração de que muitas dessas pessoas são crianças. Não importa, a turbamulta é cega, surda, muda e violenta!
Havia uma multidão de bombeiros-militares e de policiais-militares se manifestando pela enésima vez sem receber qualquer aceno por parte do governo. Desde que surgiu o movimento da PEC 300, esse movimento alcançou o patamar da multidão entoando o slogan “Fora Cabral!”, o que deveria ser suficiente para manter a inteligência da segurança pública de olhos abertos. Em especial, a inteligência da PMERJ deveria estar acompanhando cada passo dessa multidão de fardados, especialmente por se tratar de homens com o direito de portar armas. Em princípio, a manifestação dessa multidão de militares estaduais se manteve pacífica, com os homens desarmados e acompanhados da família.
Não houve grave incidente em nenhuma manifestação (foram centenas) em que os participantes apelassem para o uso de armas de fogo nem com a intenção de intimidação. Contudo, se havia uma multidão capaz de se tornar turbamulta era essa, pois o sentimento coletivo de revolta aflorava a olhos vistos. E o descaso governamental em vista dos anseios da multidão a fez tornar-se mais acelerada a ponto de invadir o Quartel Central e ocupar o pátio. Mas até ali não se caracterizara a turbamulta, nem pelo fato de derrubarem o portão de entrada para a ocupação do pátio do aquartelamento. É certo que houve excessos isolados, mas a manifestação se manteve com características de multidão. Porém, a invasão do Quartel Central pelo BOPE acendeu o rastilho da pólvora, e poderia, aí sim, ter havido uma incontrolável explosão no confronto entre duas turbamultas, tal como os exércitos antigos se arrojavam uns contra os outros em combates sangrentos que não raro dizimavam ambos os lados.
A verdade é que a invasão do BOPE poderia ter reeditado o resultado nefasto de Carandiru, pois a turbamulta pode eclodir entre anjos e demônios, a cegueira é a mesma. Para tanto, bastaria que os bombeiros-militares perdessem coletivamente a razão (não aconteceu) e um bombeiro, somente um, disparasse um só tiro alvejando algum integrante do BOPE. Não é demais conceber a hipótese. Afinal, eram centenas de bombeiros-militares se manifestando como multidão e a quebra do portão não a caracterizou como turbamulta porque não houve uma sucessão de quebras-quebras no interior do aquartelamento. Mas a invasão encetada pelo BOPE poderia ter sido o fósforo que faltava a acender o rastilho da pólvora aquietada (multidão é barril de pólvora em repouso e turbamulta é sua explosão). E desse confronto de turbamultas irmãs, em total privação coletiva dos sentidos, emergiria o desastre e o vermelho do sangue de PMs e BMs mancharia para sempre o solo sagrado do Quartel Central, o solo sagrado dos salvadores de vidas e bens alheios. Eis como terminaria o estouro da boiada...



ESTOURO DA BOIADA / ANTÔNIO MIRANDA FERNANDES

Foi numa tarde junina de sol suado!
Vinha emergindo a boiada profusa...
Surgindo sobre passos arrastados,
Despontando da poeira ocre difusa.

Saía a boiama confusa e cadenciada
Ruminando e olhando para o chão...
E de sinos dispersos, as badaladas,
Iam tocando a massa em procissão.

Em balada profética de triste agouro...
Com pegadas de sofrimento no sertão,
Caminhando resignada ao matadouro
Mugindo! Entoando, estranha oração.

Por vezes...Uma rês, cheirava o vento
Com olhar incendiado de condenado,
Bramia profundo e mórbido lamento
Mas ía, indiferente ao destino traçado...

Volvia à marcha da sorte derradeira...
Entrecortando a lamentação chorada
Tangida pelo “tocador” da bandeira;
Vermelha...Manchada e esfarrapada!

E os chocalhos na poeira dispersos...
Entoavam canto lúgubre e intrigante!
Desalentos, de uma nota só, em verso,
Mais tristes com o tanger do berrante.

Do peão que com esporas prateadas,
Montava cavalo de suor e salgado olhar
Que escorria pó pelas ventas molhadas
E ferraduras faiscando fagulhas no ar...

Quando quebrou em instante preciso
O galho de árvore que cai estalando...
Em cima de uma rês que...sem aviso,
É assustada e escoiceia disparando...

Outras que mugem, tropeçam e rolam;
Alando chispas braseiras num clarão!
Cabeças e chifres confusos se tocam...
O sangue jorra vermelho para o chão!

Chifram entranhas e solo encarnado,
Quente. Portas do inferno apartando...
Cavalos e bois de olhos arregalados
Que se chocam e os ossos estalando.

Cheiro de sangue, excremento e suor;
Corpos jogados no ar se contorcem!...
Bulício de cães feridos ganindo de dor
E, de mugidos ruminantes que morrem.

Homens que deixam viúvas distantes;
Fica frágil o valente, entregue à sorte...
O destino silencia mais um berrante!...
O forte sabe quando é hora da morte.

Filhos que vão crescer órfãos de pai...
Da desgraça farão história de valentia!
O mundo gira... Sob patas... E não cai
Com certeza, serão boiadeiros um dia!

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Fica aí o alerta muito bem elaborado em prosa e verso por quem entende do riscado. Cabe às autoridades dos escalões superiores ficarem bastante ligadas quanto à possibilidade de um novo entrevero. Quem nos garante que não haverá? E se houver com certeza não será como dantes no quartel de Abrantes. Alguem já disse certa vez que até a formiga tem seu dia de ira!