sábado, 18 de setembro de 2010

Sobre o atentado contra PMs nesta última semana


Vou transcrever um texto do meu romance Cidadela Contemporânea, escrito em 2001 e editado em 2003. O texto completo está disponível para leitura e impressão no meu site (www.emirlarangeira.com.br). Cheguei, na época, a fazer uma referência de última hora, que depois decidi não acrescentar para não parecer demagogia, embora a minha vontade fosse a de consignar o registro histórico da morte (real) de uma criança por bala perdida, tal como ocorreu recentemente com o menino Wesley. Ou seja, interessa-me demonstrar, mais uma vez, que os problemas de hoje são os mesmos de ontem. Fiz o mesmo no meu livro de contos intitulado Bairro de Lata (também disponível no site), cuja abertura é uma crônica (ficção) narrando a morte do menino Honório no seu primeiro dia de aula.



Uma referência de última hora a Jane Tito dos Santos, 32 anos, mãe de Nicolau Yan dos Santos Xavier, criança de três anos fatalmente atingida na cabeça por bala perdida, em 05/02/2003, no Complexo do Jacarezinho, durante confronto entre policiais e traficantes. Que fique você, Jane, nesta página, como símbolo do sofrimento de todas as mães faveladas que, como você, perderam seus filhos de modo tão brutal! E que seu rosto em pranto de mãe desesperada, retratado no Jornal EXTRA de 06/02/2003, seja exemplo do quanto a sociedade é cínica.

Eis o texto extraído do romance:

– Olha aí, pessoal, num vou engolir essa dos vermes matar meus parceiros. Vou quebrar um montão deles e foda-se o resto! Porra, quem eles pensam que é Pimentinha? Sou rei de dois morros e nunca me arreguei pra polícia! E num vai ser agora! Viciado também num pode ficar esperando enquanto a gente enterra defunto. As filas tão enormes, vamos logo despachar essa turma! E você, Topete, recrute aqueles dez pivetes bons de dedo pra sair comigo hoje, numa blitz que vou fazer na cidade. Esses putos vão ver só quem é Pimentinha!
Naquela mesma noite parte do Morro do Arroz-Doce o Bonde do Mal, – dois carros roubados, cada qual com quatro cabeças insanas, – em direção às primeiras vítimas. Enquanto isso, outros dois carros igualmente roubados se posicionam em lugar adrede escolhido. Astuciosamente, Pimentinha busca um local bem distante para agir, de modo que o que irá fazer não se lhe vincule e aos morros que domina com mão de ferro, pois é certo que o Pimentinha de outrora dera lugar a outro exclusivamente sanguinário


Surge a radiopatrulha, alvo aleatório dos bandidos, e dois milicianos são barbaramente metralhados sem qualquer chance de defesa. Logo depois, os facínoras se escafedem, não dando tempo de serem vistos; em seguida, rendem dois indefesos motoristas, tomam-lhes os carros e disparam em direção aos que os esperam em local distante, com os comparsas já prontos para a partida; embarcam e retornam velozmente à favela. Nada demais, chegam e dormem tranqüilos, como se acabassem de assistir a uma sessão de cinema.
A violência das mortes surpreende e enfurece a polícia, que, entretanto, não consegue qualquer pista esclarecedora do bárbaro crime. Daí é que surgem especulações de toda ordem, fato que tumultua sobremaneira as investigações. Enfim, a polícia fica pior que cego em tiroteio, até que na semana seguinte os assassinatos se repetem: mais quatro policiais são alcançados pela ira de Pimentinha. E, na favela, seu comportamento já começa a ser discutido surdamente pelos cantos, com alguns traficantes entendendo que o líder desparafusara definitivamente os neurônios. Assim acontece o primeiro racha entre eles, porém sem o conhecimento de Pimentinha, quando então Topete é chamado pelo grande fornecedor do asfalto:

– Topete, nós vamos tirar Pimentinha de circulação, prepare-se para assumir!
– Pô, você tá me pedindo pra matar Pimentinha? – reage Topete.
– Não, não é isso! Mas, quando descobrirem tudo, vocês é que vão morrer. Ou você acha que os tiras vão escolher cara?
– Pô, amizade, já pensei nisso! Mas ninguém tá sabendo que quem mata é Pimentinha.
– Ora, Topete, você se esquece de uma coisa: nosso negócio é tráfico, não é matança. Sabemos que é tudo obra dele. Queremos resolver nós mesmos o problema ou seremos obrigados a entregar a informação à polícia e vocês todos vão pagar o pato. Aliás, até que você decida fazer o que queremos, não segue nada pra favela!... Nem adianta tentar outro fornecedor, que nós trabalhamos por território. E vocês nos pertencem!
– Tá certo, amizade, tudo bem, mas por que você fala sempre nós?
– Ora, Topete, somos tubarões e vocês, sardinhas; vocês só existem porque nós mandamos o produto. Se não for mais nada pra lá, vocês vão ter de vender picolés pra viver ou então sair pra assaltar e botar o cu na reta, sem falar em outras providências que podemos tomar... Por acaso, você já viu cardume de sardinha comer tubarão, mesmo que seja apenas um?... Ora, Topete, vá por mim, faça o que eu mando e fique liderando! A não ser que não queira... – ameaça o chefão do asfalto.

Topete pensa rápido. Sabe que, se não aceitar o jogo, um outro o aceitará e ele não estará mais neste mundo para conhecer o sucessor de Pimentinha. Então, que seja ele próprio a assumir os negócios.

– Mas, que tenho de fazer?
– Pouca coisa, apenas me avisar quando ele sair sozinho pra namorar. Você sabe pra onde ele vai, não sabe?
– Sei. É pra encontrar mesmo com a amante. Mas muda sempre de lugar, cada vez marca com ela num novo ponto e vai pra motéis diferentes.
– Mas sai sempre na hora que você sabe e no carro que você pode detalhar pra gente. É só o que precisamos. O resto já está montado, não se preocupe.
– Vocês vão matar ele?
– Não. A idéia é ele ser preso. Junto da namorada, ele não deve reagir. Mas, se reagir, aí não tem saída...

Pimentinha está quase completando vinte e seis anos e já matou nos últimos dois meses oito policiais. E, desde que Topete fora chamado pelo chefão do asfalto, em nenhum momento Pimentinha se insinuara no sentido de rever a namorada. Mas como o destino tem mais paciência que Penélope, eis que o líder finalmente convoca Topete e lhe comunica uma escapulida. Diz, enfim, que sairá sozinho, o que é bastante para Topete: é o encontro com Lívia. De imediato, Topete telefona e dá o aviso ao chefão do asfalto, como estava combinado. E cai em profunda depressão, embora saiba que não há mais como contornar problema tão sério.



O pedaço de texto objetivou, na época, alertar para uma cultura passada, que ainda se fazia presente no ambiente social, e que se projetaria ao futuro (ao hoje), como é fácil constatar, bastando pesquisar ano a ano o fenômeno. Ora, o assassinato de policiais-militares e policiais civis da forma como vem há anos ocorrendo, nada mais é que atentado terrorista banalizado como crime comum pela mídia e por uma sociedade que, unidas no cinismo, não aceitam a morte de bandidos por policiais, questionando o tempo todos os autos de resistência e cobrando punição severa para as falhas policiais. Por outro lado, rapidamente esquecem os atentados que vitimam fatalmente policiais, que são vários e aterrorizantes, adrede estabelecendo que qualquer reação pode ser por eles (imprensa e sociedade) entendida como ato de “vingança”, como se o policial não tivesse o direito nem de se indignar como ser humano e se obrigar a enterrar seus companheiros como se fossem ovelhas devoradas pelo lobo mau.
Não me há dúvida de que a sociedade, infectada por discursos do tipo “limpar a polícia”, último dos estigmas inventado por um candidato ao Governo do RJ que nem de concordância verbal entende e dispara suas baboseiras a rodo nesta campanha. Não registro o nome dele para não ter que desinfetá-lo; mas reconheço que o neologismo “limpar a polícia” parece ter entrado em moda; e muitos devem estar gostando de ver a polícia ser “limpa” pela simples eliminação física dos seus membros por assassinos de toca ninja, comportamento típico de terrorista mundo afora: mania de totalitarismo (fanatismo fica mais bem posto) de esquerda, atraso na consolidação do Estado Democrático de Direito, pois é certo que esse revanchismo se reporta aos tempos do aprendizado na ilha Grande e na motivação dos inúmeros exemplos de atentados terroristas que ficam impunes.
A verdade é que não lidamos com bandidos comuns, mas com milhares jovens revoltados e facilmente influenciados pela impunidade e pelo anonimato, como, aliás, denunciou o prócer do Comando Vermelho William da Silva Lima. O bandido, apelidado de “Professor”, deu entrevista a um policial civil retratada no livro do jornalista Carlos Amorim (Comando Vermelho – a história secreta do crime organizado), que não é ficção, mas realidade de uma pesquisa de doze anos, como ele afirma na abertura do livro (vide Google).
Mas essa explanação me exige o retorno à obra de Carlos Amorim, um livro que precisa ser lido por todos os cidadãos que desejam construir uma democracia no Brasil de forma transparente e sem conluios desastrosos. Ao lançar o seu livro, em julho de 1993, Carlos Amorim salienta que "todos os nomes e locais são verdadeiros". E surge a primeira e grave denúncia no prefácio escrito pelo Jornalista Jorge Pontual, uma "palavra de leitor":

(...). O Comando Vermelho pôde parodiar impunemente as organizações de esquerda da luta armada, seu jargão, suas táticas de guerrilha urbana, sua rígida linha de comando. E o que é pior: com sucesso.

William da Silva Lima chegou a escrever um livro (Quatrocentos contra um- uma história do Comando Vermelho), publicado pela Ed. VOZES com o apoio da Pastoral Penal, do antropólogo Rubem Cesar Fernandes (que fez a apresentação), e da ABI, em cuja sede foi lançado com pompas de obra produzida por "gênio literário", segundo nos informa Carlos Amorim:

O livro de William da silva Lima foi lançado no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no dia 05 de abril de 1991, durante seminário sobre criminalidade dirigido pelo Instituto de Estudos de Religião, de orientação católica. O texto final foi copidescado por César Queiroz Benjamim, um ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que trabalhou sobre um original de mais de quatrocentas páginas.

Carlos Amorim, diante das constatações que fez em sua pesquisa, afirma que:

As palavras do Professor dão bem a idéia do quanto ele se desenvolveu nos contatos que manteve na cadeia. Dizem que, ao contrário da maioria dos militantes da esquerda, ele leu O CAPITAL – conhecimento que ainda hoje falta a muito comunista de carreira.


Com efeito, a história costuma encaixar as idéias e os fatos delas decorrentes, como num "quebra-cabeça" cujas peças espalhadas custam a encontrar seu lugar no tabuleiro. Mas acabam se encaixando e formando o desenho final que fora anteriormente determinado:


Duas semanas após o lançamento, no dia 19 de abril, o fundador do Comando Vermelho, com autorização do DESIPE, manteve um encontro com jornalistas estrangeiros no Hospital Penitenciário. Esta foi a segunda vez na história do sistema penal brasileiro que um preso comum deu entrevista coletiva à imprensa. Na noite de autógrafos na ABI, quem assinava os livros era a mulher dele, Simone Barros Corrêa Menezes.


Somente para aguçar a curiosidade e a reflexão daqueles que tiverem acesso à leitura deste texto, informa ainda Carlos Amorim a respeito desse personagem do CV alçado à condição de "gênio literário":


William da Silva Lima, um pernambucano de cinquenta anos, se considera um guerrilheiro, (...) Hoje ele está preso em BANGU I.


E emerge no livro de Carlos Amorim a mais impressionante revelação de William da Silva Lima, gravada pelo Detetive João Pereira Neto, da Divisão Anti-Seqüestro do Rio:


William comenta que alguns intelectuais pretendiam usar o Comando Vermelho na luta política. (...). Alguns deles, pequeno-burgueses, pretendiam usar nossas comunidades e nossa organização com finalidades políticas. – À medida que não deixamos usar, comprovamos, sem soberba, que conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu, o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente elas serão três milhões de adolescentes que matarão vocês (a polícia) nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas? Quantos BANGU I, II, III, IV, V... terão que ser construídos para encarcerar essa massa?”


Enfim, é o que efetivamente vem ocorrendo nesses últimos anos e alcança os dias de hoje, e toda essa poeirada tem sido enfiada debaixo de grossos tapetes governamentais e societários, até que um dia o caldo entorne, e entornará, sem dúvida. Porque desde ontem, e até então, todas as medidas de segurança publica no país são parciais, ideologizadas e tendentes ao fracasso por carência de meios e pela falta de boas leis penais que valorizem a vida do policial. Com efeito, a vida do policial está mais desvalorizada que a de pulgas (Xenopsylla cheopis) de Rattus rattus (ratos-pretos) empesteados pela bactéria Yersinia pestis. Tanto faz, portanto, que o policial morra em cada esquina da cidade e sua morte banal se superponha a outras muitas mortes esquecidas até pelos colegas que não olham para trás para contar suas baixas letais. Não percebem claramente quão perigosa e incerta é a profissão que abraçaram, demais de desmoralizada a ponto de o discurso midiático de cobrança é o de “limpar a polícia”, como se essa mídia que recebe polpudas verbas publicitárias governamentais fosse ascética e pudesse fazer de seus jornais o “papel higiênico” do dia seguinte, em vez de embrulhar peixe...




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