quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A lógica (irracional) do militarismo estadual

Não sou dono da verdade, mas exageros devem ter limites; portanto, arrisco-me a alertar os militares estaduais do RJ para o anacronismo do regime disciplinar a que são submetidos. Fosse qualificar a cultura reinante, eu decerto diria: “Absurda!”
São várias e profundas contradições que enodoam o regime disciplinar nas instituições militares estaduais. São tantas, na verdade, que se torna complicado escolher alguma para começar. Há, porém, uma deveras aberrante: a transferência do CBMERJ para a Secretaria de Saúde.
Ora, é inconfundível a Carta Magna: os Corpos de Bombeiros Militares são organismos de segurança pública, tais como o são as Polícias Militares. Portanto, nesta condição especial o CBMERJ deve se subordinar à estrutura de segurança pública, pois assim a conjuntura constitucional prescreveu. No entanto, o atual governo estadual optou pelo deslocamento desta corporação para uma secretaria estranha à sua missão constitucional. Se a bizarria pega, amanhã a PMERJ poderá estar subordinada à Secretaria de Obras ou à Casa Civil... Enfim, desrespeito à Lei Maior e à Carta Estadual à revelia do Ministério Público e da Justiça – guardiões da legalidade. Ainda São?...
Esta anomia vem gerando situações esdrúxulas; porque civis e bombeiros militares estão embolados em teratogênicas estruturas (por exemplo, no SAMU), perturbando deveras uma cultura militarista que em si já é anômala. Deste modo, hoje é possível supor um militar estadual recebendo ordens de alguns apaniguados civis temporariamente contratados por meio de cooperativas terceirizadas. A lógica, neste caso, é a do puxa-saquismo de militares estaduais a eventuais apadrinhados políticos, gerando inconsequências disciplinares terríveis. É a reedição da Torre de Babel...
No vácuo da inegável anomia as absurdas contradições sobressaem, como, por exemplo, usualmente constar dos textos punitivos de oficiais e praças a indefectível expressão “faltar com a verdade”. Ora, quando há alguma acusação de transgressão disciplinar, o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) é desencadeado a partir de um Libelo Acusatório cujo teor deve ser objetivo. Não o sendo, o acusado não pode contraditar absolutamente nada. Mas, quando ele se defende, a lógica predominante entre as autoridades punitivas é a de que o acusado é “mentiroso”, deliberação que anula de pronto a ampla defesa e o contraditório em decisão desgraçadamente subjetiva.
É comum, sim, o texto punitivo afirmar que o acusado “mentiu”, argumento suficiente para configurar a pretendida transgressão disciplinar seguida da punição. Esse artifício abre caminho para os enquadramentos seguintes, sem chance de os acusados se defenderem de imputações muitas vezes, elas sim, mentirosas e injustas, porém referendadas por quem pune sem nada apurar. Resume-se tudo à crença na “fé de ofício” daquele que assina (superior) a denúncia, sempre constando a indefectível e subjetiva afirmação de que o punido (inferior) “teve direito à ampla defesa e ao contraditório”. Contudo, quando ocorre contrário (subordinado denunciando ou se queixando de superior), a razão se inverte naturalmente: no militarismo estadual do RJ o superior sempre tem razão...
Talvez, dentre o rol de injustiças disciplinares, o argumento oficial do “faltar com a verdade” só perca para outro igualmente corriqueiro: o “tudo levando a crer”, sucedâneo do famigerado “consta que”... Ora, qualquer punição, seja penal ou administrativa, se sujeita ao regramento constitucional. E ambos dependem da apresentação, por quem acusa, de prova ou de indícios suficientes à iniciação do PAD. Contudo, para punir, a prova há de ser substancial, concreta, invencível. Em havendo dúvida, livra-se da punição o acusado, situação que não passa de miragem... Punir por “levar a crer” (“consta que”) é simplesmente absurdo! Mas acontece corriqueiramente, mesmo que essa interpretação subjetiva esteja travestida em expressões semelhantes a ocultar malícias endereçadas a subordinados.
A falta de critério e a tendência de o sistema de cobrança contra as injustiças não funcionar têm levado ao infortúnio muitos militares estaduais, mormente praças. Mais grave: a base de sustentação das acusações são leis e regulamentos que se reportam ao passado distante, ignorando-se em descaramento os novos ditames constitucionais. O Estatuto dos Militares Estaduais, tanto faz se da PMERJ ou do CBMERJ, é cópia deformada do Estatuto do Exército, escrito em período próximo ou anterior à II Grande Guerra. Os regulamentos disciplinares, idem...
Claro que não há nenhum interesse dessas instituições estaduais em modernizar seus regimes disciplinares sabidamente tacanhos. O que lhes importa é tratar seus integrantes como rebanhos destinados ao abate. No fim de contas, a reposição é fácil e rápida: a porta de entrada é tão larga como a porta de saída. Tanto que, por mais que se incluam novos efetivos, a quantidade total pouco aumenta em relação ao efetivo de anos passados.
Assim o tempo passa e as injustiças se acumulam intramuros dessas instituições, ignorando o Ministério Público da AJMERJ a sua função fiscalizadora da hierarquia e da disciplina (Art. 55 do CPPM: “Cabe ao Ministério Público fiscalizar o cumprimento da lei penal militar, tendo em atenção especial o resguardo das normas de hierarquia e disciplina, como bases da organização das Forças Armadas.”). Aqui, vale lembrar o princípio da analogia consagrado no direito pátrio, o que permite conceber igual tratamento por parte do Ministério Público estadual para as Forças Auxiliares do Exército: Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares.
Ora, “o resguardo das normas de hierarquia e disciplina” diz respeito também à cobrança de maus-tratos de superiores impunemente endereçados a subordinados (Art. 174 do CPM: “Exceder a faculdade de punir o subordinado, fazendo-o com rigor não permitido, ou ofendendo-o por palavra, ato ou escrito. Pena: suspensão do exercício do posto, por dois a seis meses, se o fato não constitui crime mais grave.”). Mas o que ocorre na prática resume-se ao ouvido mouco do MP e à punição de cima para baixo batendo como a borduna do bugre na cabeça de quem não pode se defender sozinho. E, enquanto a cobrança dos maus-tratos de superiores contra subordinados permanecer nula em função do compadrio corporativista intramuros entre os primeiros, a disciplina e a hierarquia nas instituições militares estaduais no RJ não passarão de piada de mau gosto.




5 comentários:

Paulo Xavier disse...

Tema bastante complexo. Já testemunhei o fato de Praças no bom comportamento, pegarm 30 dias por motivo fútil e sumariamente serem excluídos. Já vi também Oficiais e Praças enlameados até o pescoço, envolvidos com toda sorte de crime e contravenção, ostentam bens imcompatíveis com seus salários e nada acontece, às vezes são tratados até com deferência e reverência.
Cel, um dia nós vamos conversar sobre o meu caso. Graças a Deus dei a volta por cima, trabalho a mais de 20 anos para a Petrobras em empresa contratada (multinacional) tenho uma boa profissão e um bom salário e o que mais ouvi após a minha exclusão da PM foi: Que covardia cara, fizeram com você. Poxa Paulo, que bando de canalhas esses oficias. Te excluíram na maior crocodilagem, essas coisas assim.
Reergui-me sim, mas quantos tiveram a mesma sorte, quantos não partiram para a vida do crime, quantos se autodestruíram nos vícios?
Deixei muitos amigos na caserna e alguns conservo até os dias de hoje, que viram a minha luta.
Parabens Cel pela preocupação com esse tema, como já disse, polêmico. A maioria dos Oficiais da PM que conheci só se preocupam com seu próprio umbigo. Um afetuoso abraço. Paulo Xavier

Anônimo disse...

Tenho medo de comentar, para não ser punido...

#VAL# disse...

NÃO TENHO MEDO E MUITO MENOS TEMEROSIDADE AO DECLARAR QUE A ESTUPIDEZ ARCAICA E COVARDE DE UM REGULAMENTO, FAÇA COM QUE MUITOS MILITARES SE SUBMETAM A HUMILHAÇÕES, CONSTRANGIMENTOS, ABUSO DE PODER E MUITAS OUTRAS FORMAS DE COAÇÃO. INFELIZMENTE NOSSOS MILITARES AINDA NÃO APRENDERAM QUE EXISTE A "JUSTIÇA" , MESMO QUE AINDA ELA NÃO SE FAÇA A VALER COMO DEVERIA. DIGO-LHES: NÃO CUSTA NADA VIR A ACREDITAR QUE TEREMOS UMA RESPOSTA APLAUÍSIVEL DO NOSSO SUPOSTO DIREITO EM EXIGIR RESPEITO E DIGNADE EM NOSSAS CORPORAÇÕES MILITARES.

#VAL# CBMERJ 3.8

Neide disse...

Tenho um filho de 17 anos que sempre me diz que enquanto a voz não se fizer ouvir e a mesma se deixar amedrontar seja por que motivo for, nunca poderemos nos olhar no espelho sem o medo da nossa própria imagem nos baizar a cabeça não em respeito mas sim de vergonha até mesmo porque o respeito não nos faz baixar e sim erguer nossa cabeça para olhar o outro nos olhos sem medo ou vergonha. Sabem de uma coisa, tenho orgulho desse jovem que por uma dádiva divina me usou para introduzí-lo neste mundo que ainda acredito que tenha jeito, pois, é com a sua juventude e visão aberta que as mudanças serão realizadas. Não podemos nos calar. Uma frase que minha falecida mãe sempre me dizia era que: pela verdade sempre se luta e nunca se desiste. E ela, apesar de não ter estudo, tinha a sapiência de uma mãe lutadora e incansável guerreira mesmo após ter perdido dois filhos de farda. Ela teria todo o motivo do mundo para desistir e se calar, já que nada fora feito em questão de justiça e reparação em relação ao ocorrido. Sempre dizia que lutássemos por um mundo onde fatos como aqueles não voltassem a acontecer com outras mães. A palavra é e sempre será o nosso refúgio, arma e instrumento de luta, basta não desistirmos.

Paulo Xavier disse...

Parabéns à Neide e ao Cb BM Val pelos comentários lúcidos e oportunos, ainda existem pessoas corajosas, mas infelizmente vejo que ainda existem pessoas com receio de expressarem o que sentem, com medo da verdade. São os "covardes anônimos" Conheço vários deles e estou passando de banda por essa raça, tenho medo de me contaminar.