quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Enxurrada


A chuva torrencial bate no telhado de latas enferrujadas. Parece que o céu descarrega sua metralhadora aquática de pesado calibre. Dentro do barraco simples, mãe e filho choram. Não sabem se o casebre resistirá ou deslizará junto com a lama pondo fim à vida difícil. O desespero e o choro são, porém, inúteis. Em havendo o deslizamento da encosta, – onde o barraco se agarra malmente ao chão, – nada dele restará e a morte virá na certa. Mas, de súbito, entra o pai, nervoso e enlameado. Pega a mulher e o filho e os retiram rapidamente dali. Como um raio cortando o horizonte, eles disparam por uma viela cavada na cota do morro e se afastam do perigo. Mais à frente, veem a inclinada rua de paralelepípedos entortados pelo tempo; sua má construção, porém, suporta o aguaceiro que encachoeira morro abaixo. É a “rua principal” da favela... O desnível das pedras, que torna a rua intransitável na seca, contém o furor das águas – um paradoxo... Porém a calçada, com suas rachaduras impertinentes e providencial aspereza, está livre e segura. E os três, – a família, – e os três, – abraçados ou agarrados entre si, – descem velozmente a rua e ganham a liberdade e a vida no asfalto fora do morro, no seu sopé, a primeira cota do lixo plano a caminho do lixo montanhoso. É tudo lixo...
O asfalto também está inundado e sujo, mas nele a água escorre mansamente; não como o aguaceiro que desce em furor titânico. Aos favelados ocupantes do asfalto não mais lhes importam esses detalhes, eles estão a salvo. Olham o morro totalmente escuro da luz que falta e não conseguem ver seus barracos. Mas ouvem o barulho ensurdecedor do lamaçal que se desgruda e arrasta as moradias simples. De súbito a chuva, – como que recebendo ordens divinas, – fecha suas torneiras nos céus e estanca a sua fúria demoníaca. “Milagre!”, gritam em uníssono os resignados favelados. Surgem algumas estrelas fugidias, a lua tenta vencer as últimas nuvens plúmbeas, ainda ameaçadoras, e finalmente o dia amanhece e o brilho do sol reflete nos olhos favelados a tristonha imagem da destruição.
Ela, a imagem, é desoladora. O dia é bem-vindo, sim, mas escancara toda a sujeira despejada morro abaixo: o lixo favelado que ocupa o morro e as ruas periféricas. O morro tem a cidade a seus pés?... Mentira poética! Há tábuas e pedaços de zinco misturados à lama; há móveis velhos, utensílios amassados, fogões e geladeiras enferrujados, lixo feiíssimo que antes enfeitava os barracos simples e agora quedam na destruição irreversível. Parodiando o conto machadiano, há no “Belchior” favelado muitas “panelas sem tampa e tampas sem panelas”... Prejuízo total, desabrigo de muitos, porém nenhuma vida perdida. Sorte... Costume do cachimbo... Houvera tempo de os favelados debandarem antes do desastre. Passado o perigo, agora só lhes resta reconstruir tudo, recompor o tudo ou o nada perdido. É curiosa a vida do pobre: não possui nada, e, quando atingido por calamidade, perde tudo. Como pode perder tudo se não tem nada?... Piadinha antiga e de mau gosto, esta... Que fazer? É o retrato fiel do homem urbano pauperizado, favelado sem eira nem beira, arraia-miúda, povoléu etc.
Questão de valores... A vida comunitária é forjada na simplicidade orgânica, na emoção, no ser que cada um representa, sem a necessidade de certidões, ou notas fiscais, ou documentos; sem a necessidade de ter... A vida comunitária é próxima do homem natural de Rousseau, do ser quase que despido, nu, como vem ao mundo, inocente como um anjo-criança. O tudo que possui é seu corpo maltratado; o mais são seus parentes e amigos do morro, vínculos afetivos que envolvem a miséria dando-lhe a cor da solidariedade.
É difícil entender a vida comunitária; e não é somente o que se comenta aqui – a calamidade natural associada à miséria. A esta desgraça comunitária se acrescem as tragédias artificiosas do banditismo, dos tiroteios, das balas perdidas, das doenças sem remédio ou médico, da morte precoce et cetera. Mas há a compensação: quando a enxurrada vem, os bandidos se tornam seres comuns, a polícia desaparece e a calmaria acontece – um paradoxo. Que preferir?... A seca em meio a tiroteios mortais ou a terrível tempestade em meio à calmaria dos confrontos adiados?...
Assim é a vida favelada, a vida de muitos que, apesar dos pesares, é glamourizada e fingidamente aplaudida pelo asfalto societário, que leva os turistas para conhecer de perto a miséria exclusiva da favela, nome que nasceu da planta vinda do nordeste, trazida pelos soldados de Canudos para o morro primeiro: Providência. Lá, todavia, a providência divina não chegou. Esqueceu-se de todos, de muitas gerações empurradas morro acima pelo governante ascético e inimigo das cabeças de porco. Sim, porque Cândido Barata Ribeiro, primeiro prefeito do Distrito Federal, médico, exterminou com os cortiços como se fossem nichos geradores de doença e ganhou o senado como prêmio societário.
E assim, como bactéria cultivada em iogurte, a favela proliferou nas baixadas periféricas, hoje assoreadas, e nos morros florestados, hoje sem vegetação e apinhados de barracos. Mas as favelas oferecem mão-de-obra para o asfalto chique, incluindo-se entre os miseráveis favelados e periféricos os policiais militares, e os bombeiros militares, e os policiais civis, e os agentes penitenciários e semelhantes servidores a atacarem seus irmãos em infortúnio: o grande rebanho destinado ao abate. E as ovelhas se entregam ao lobo mau, que deveriam ser cães pastores a protegê-las da engorda e do abate promovido pelas elites monárquicas que desde a Corte, – a medo dos napoleônicos exércitos, – deram com seus costados na terrinha tupiniquim e se instalaram na “sociedade”. E aqui, tão longe do pedaço português conquistador-conquistado, ainda pagamos o pato da colonização e da escravatura pensando que somos “gentes finas”... Na Europa, eles foram perdedores, e aqui, vencedores de índios e negros... São os vencidos daqui pelos derrotados de lá! São “sobras de etnia”, como disse o poeta Salgado Maranhão. São o lixo que não se enfiou debaixo dos tapetes. São “comunidade” e assim morrem hoje e morrerão amanhã: na enxurrada das águas, da lama e dos tiros...
Mas a família favelada resiste a tudo e todos. A família, – João, Maria e José, reedição da Sacra Família na esperança religiosa, – a família tem no varão um mestre de obras experiente. Vai ele então reconstruir o barraco. Limpa a sujeira de seus seis metros quadrados e, na base do improviso, vai prendendo os pedaços de pau e zinco agora sem dono. Caprichoso, logo termina o labor, não sem a ajuda dos vizinhos em infortúnio, aos quais empresta a sua experiência, e muitos barracos ressurgem como a fênix da metáfora, com as tábuas e os zincos trocando de lugar sem ninguém notar: é tudo tábua, é tudo zinco, é tudo lixo... Quando então as autoridades chegam, depois da desgraça pronta e acabada, para atender à excitada mídia e oferecer aos desgraçados casas novas, conjuntos habitacionais e outras cascatas imediatas; e povo societário fica feliz, sob o olhar silencioso dos favelados, que conhecem o seu destino de abandono pelo Poder Público. O silêncio é eloquente, mas ignorado como se fora som de uma só mão batendo palmas...
... Com efeito, nada muda, a rotina da miséria impressiona até os turistas. O visual de alguns morros de frente para o mar vale dinheiro. Mas naquele morro desgraçado o visual é voltado para outras favelas e casarios periféricos: o bairro proletariado. É favela paupérrima, que somente conhece a periferia onde está plantada, ou seja, a miséria dentro da miséria; e, como eu disse antes, assim morrem hoje e morrerão amanhã: na enxurrada das águas, da lama e dos tiros...

Um comentário:

paulo fontes disse...

Meu caro amigo Larangeira,
Tem toda razão o texto habilmente escrito.
O morro não é mais aquele que Herivelto Martins descreveu na sua obra maior "Ave Maria no Morro".
Também não é mais o morro que Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito cantaram em "Folhas Secas".
E infelizmente também não é mais aquele que Elton Medeiros canta em "Sei Lá Não sei".
Culpa de quem?
Talvez o morro seja hoje o que Jorge Benjor anunciou magistralmente em Charles Anjo 45 de 1969-"Muita queima de fogos e saraivada de balas pro ar", e a sociedade não deu muita bola e agora paga caro e o preço de ver bandidos pés de chinelo, armados até os dentes, praticando as maiores atrocidades e banalizando o mal como já dizia a filósofa judia Hannah Arendt.
Um grande abraço
Fontes