sexta-feira, 19 de junho de 2009

Sobre o militarismo na atividade policial

Uma teoria medalhística




“A autoridade racional baseia-se na competência, e ajuda a pessoa que nela se ampara a crescer. A autoridade irracional baseia-se na força e serve para explorar a pessoa sujeita a ela.” (Erich Fromm)


Há quem condene o militarismo nas Polícias Militares alegando-o deformado por práticas draconianas mui distantes do que as Forças Armadas denominam “disciplina consciente”, e existe uma ponta de verdade na condenação. Porque muitos reduzem os preceitos disciplinares intramuros dos quartéis à subserviência dos mais fracos (subordinados) em contraposição à arrogância dos mais fortes (superiores). Ressalvados os exageros da crítica, não se deve negar que isto efetivamente ocorre devido a vários fatores, mas o predominante é a cultura errônea de uma tropa com funções ambivalentes: ora policial, ora militar, exigindo de seus integrantes uma flexibilidade emocional às vezes impossível até para os mais instruídos.
É sabido que o militarismo surgiu no mundo remoto em virtude da necessidade de defesa de povos ameaçados, ou para atender à ambição de conquistadores. Desde Sun Tzu até os dias de hoje, o sistema de tropa militar é usado como meio de dissuasão ou concretizado nas guerras. Também não é difícil compreender o acirramento dos paradigmas disciplinares e hierárquicos durante os conflitos bélicos, situações em que a pena de morte destinada aos recalcitrantes no cumprimento de ordens perigosas vai do papel à prática. A questão crucial do militarismo, no entanto, está na preparação para a guerra em época de paz, exigindo treinamentos bem próximos da realidade a enfrentar: a guerra em si. E se durante a guerra há a Corte Marcial, na paz há os Conselhos Disciplinares, e assim por diante...
A vida na caserna não é simples. Demais das exigências regulamentares, em especial as garantidoras da hierarquia e da disciplina, o treinamento é rigoroso mesmo em tempo de paz. Neste ponto, emerge a controvertida obrigatoriedade do serviço militar. Há quem não se incomode com a obrigação e há os que a detestam por não possuírem o pendor das armas. No Brasil, por enquanto, o serviço militar é assim. Na prática, porém, são poucos os convocados em vista do ônus aos cofres públicos se se cumprisse à risca a obrigatoriedade. Nas Polícias Militares, o cidadão opta livremente pelo seu ingresso como um emprego definitivo, não se sabendo se por necessidade ou vocação; o mercado de trabalho que o diga.
A verdade é que as Polícias Militares vivenciam a dupla condição (policial e militar) em situações tão diversificadas que, numa alegoria, poder-se-ia compará-las ao jogador de futebol tentando chutar uma bola com os dois pés simultaneamente. Até chuta, mas se desequilibra e cai. Mais ainda se torna paradoxal a profissão por carecer de quadro administrativo, o que provoca a esdrúxula situação de um oficial alçar o último posto da hierarquia sem jamais ter pisado a rua em policiamento ou comandado unidade operacional a enfrentar criminosos armados e perigosos. Sem esta vivência profissional, seus julgamentos podem ser injustos, por serem imprecisos em seu espírito restritamente burocrático. Seria como um clínico geral operar coração sem jamais ter realizado cirurgia nem para extirpar verruga.
Essa teratogenia funcional impera em muitas Polícias Militares, não sei em que grau de absurdidade. Aqui na PMERJ, todavia, é fácil concluir que se trata de cultura enraizada e geralmente despercebida pelos destinatários dos serviços extramuros dos quartéis, que costumam aplaudir a alardeada eficiência punitiva da corporação. Com efeito, os tacanhos regulamentos garantem o sucesso da hierarquia e da disciplina fundadas na legalidade imposta do topo para a base, mesmo que o punidor não passe de um “General Albernaz”.
Não se trata de questionar nossa meritocracia militarizada; mas seus paramentos pimpões são capazes de igualar sábios a asnos. Refiro-me ao uniforme e seus enfeites a projetarem a imagem do “alferes” machadiano. A beleza do invólucro obscurece a bula e o conteúdo. Com efeito, extraídos os paramentos, defrontamo-nos com pessoas diferenciadas em cursos de formação, aperfeiçoamento e especialização. Essa capacitação meritocrática resulta em medalhas de mérito nem sempre ostentadas pelos sábios. Ah, já as outras, típicas do apadrinhado “medalhão” machadiano, haja peito garboso a pendurá-las!...



A banalização da simbologia do mérito, – confundindo-a com o demérito, – faz a competência reduzir-se ao mero “enfeite”, expondo em desigualdade de condições quem “é” competente (“autoridade racional”) e quem “tem” competência (“autoridade irracional”). Deste modo, a pessoa a ocupar um alto cargo é aparentemente a “mais competente”, pois, além de distribuir medalhas a torto e a direito, condecora-se a si próprio e reforça o seu ilusório medalhamento a ponto de produzir suspiros de admiração nos leigos em medalhística... Mais que isso, a alta autoridade pode medalhar o peito de personalidades civis, encantando-as em solenidades pomposas e exclusivas do militarismo. Não há quem resista! Ó vaidade!...
Tornando à realidade das ruas, onde morrem diariamente muitos policiais militares sem-medalha (não há luto na PMERJ por morte de PM), o solene militarismo é soberano nas festas e aprofunda a ambivalência no espírito do PM. Sim, ele, o PM, o mesmo que garbosamente marcha, e depois, assustadiço, parte a policiar as ruas e logradouros ignorando o bandido para ficar de olho vivo na supervisão. Pois, no quartel, lá está o PM, em formação castrense, recebendo ordens e ameaças várias; nas ruas, o assustado militar dá lugar ao policial, mas sem tirar da mente as regras duríssimas que antes ouviu e que deverá cumprir para não se enrolar e perder abruptamente o emprego. E vivencia o seu dilema diário durante o serviço: se agir e falhar, cadeia e rua; se não agir, é omissão, cadeia e rua. Eis o mérito da base da pirâmide militarizada: nenhum. A não ser que seja fácil conceber discernimento, justiça e equilíbrio no espírito de quem vivencia profissão tão insólita.
A questão do militarismo, portanto, não reside no modelo milenar de defesa e ataque dos multivariados exércitos formados ao longo da História das Sociedades. Trata-se de avaliação da estrutura militarizada de polícia dos dias de hoje em vista dos fins do Estado em relação à violência e ao crime. Atualmente, por exemplo, a ciência e a tecnologia mudaram o conceito da guerra, e, em especial, tornaram obsoletos os exércitos massificados de tropa com prevalência da quantidade. Mas este é o nosso modelo: um oscilante exército de conscritos gerados pelo serviço militar obrigatório; também é o modelo das Polícias Militares, estruturadas à imagem e semelhança do Exército Brasileiro. Tudo como dantes, embora o turbulento ambiente social hodierno exija um repensar estrutural profundo em se tratando do controle de uma criminalidade sofisticada e cada vez mais sanguissedenta. Pois é o que as Polícias Militares enfrentam. Mas, enquanto a sociedade não despertar do seu “berço esplêndido”, a polícia brasileira continuará a engarrafar fumaça e a enterrar seus mortos. Claro que sem abandonar as festas e a farta distribuição de medalhas. Afinal, enterro de PM é também solenidade militar, e, como nos alerta o mestre Machado de Assis: “Os mortos ficam bem onde caem.”



Um comentário:

Iko disse...

Haja peito meu nobre amigo... tanto para ser o que somos, PM's, quanto para um desabafo tão oportuno!!!

Muito bom!!!

Igo Vinícius.