domingo, 14 de junho de 2009

Sobre a vida do PM

Para deleite e reflexão

01- O velho PM: uma história antiga


Sou do século passado, disso tenho certeza. Venci os anos e vi muita coisa em mais de 120 primaveras que hoje conto. Tive também a felicidade de conviver com meus antepassados, todos vindo de longe no tempo, porém hoje já mortos, como também meus irmãos e irmãs, que ficaram no corte da cana e depois foram enterrados debaixo de algum verdejante canavial tornando a terra mais feraz. Não importa, “os mortos ficam bem onde caem”, disse um dia o mais importante mestre das letras pátrias...
Muitas coisas meus ancestrais viram e sentiram, e a mim me contaram antes da partida definitiva de seus espíritos para as planícies da África e para a liberdade. Mas eu nasci nas planícies dos índios goitacases, em meio ao trabalho árduo de muitos negros, como eu, no corte da cana-de-açúcar. Sim, trabalho duro, suado, escravo, a jararaca e a coral ameaçando-me os pés, o pico e a morte, a morte de muitos escravos e de seus descendentes na tenra idade ou em qualquer tempo de uma vida quase selvagem, mordidos por cobras traiçoeiras serpenteando nervosas nos canaviais à procura de gente para matar, bastando nelas pisar. Muitas, porém, morreram sob os pés negros e calejados no atrito da carne bruta no chão, pés nus que pisavam direto e amassavam até os mais duros espinhos.
Assim era a planície dos índios então afastados pelos brancos para dar lugar à ganância, com muitos caminhos riscando as passagens entre os imensos canaviais que se perdiam no horizonte infinito, suas pontas roçando o céu campista. Tudo muito verde, até que o fogo surgisse queimando os quadrantes da cana no ponto do corte e matando as cobras, os colmos enegrecidos da fuligem caindo aos montes no talho de amolados facões, muitos facões, alguns tão gastos que vinham do tempo da escravidão.
A escravidão acabara, sim, mas o trabalho sistemático do corte da cana e das moendas nem parecia tomar conhecimento da mudança. No fim de contas, nada mais havia a fazer, nem ontem e nem hoje, além de decepar a cana e transformá-la em riquezas da casa-grande. Pois a abolição não mandara ninguém de volta à única liberdade que almejavam: os campos da África. Como antes, ficaram todos fecundando as mulheres e o chão, e plantando mudas da doce gramínea, e procriando mais filhos, e roçando o canavial, e alimentando os rebentos, e decepando a cana, e enfeixando-a, e carregando no range-range do carro de boi o bagaço verde ou no silencioso bangüê os cadáveres, e enterrando escravos e fazendo a gramínea crescer indiferente aos corpos que cobria de quando em quando.
Mas antes os negros eram muitos, e cortavam a cana-de-açúcar sem parar. Batiam os primeiros e frios raios solares na terra úmida e lá estavam eles, ainda em silhuetas tristonhas, no vaivém e no sobe e desce dos fios amolados e ferozes ceifando a base da plantação. E comiam lá mesmo a ração: a farinha, a rapadura e a carne-seca; comiam também as cobras e as caças pequenas; comiam os peixes pescados em riachos, muitos deles apanhados nas locas por mãos experimentadas. Sobreviviam assim, pensando na África, lembrando os antepassados, sonhando com a liberdade perdida.
Aos 16 anos, creio eu, rumei para outros mundos. Saí da roça a caminho de Niterói, a capital da Província Fluminense. Vim vencendo caminhos distantes, eu e minha mula cansada, meu valente animal. De passagem, vi a Mata Atlântica ainda perene e colada ao céu azul; vi a liberdade e a esperança em busca de outra vida em lugar melhor; vi o povo sofrido, do mato, pegando as mesmas trilhas a buscar a cidade grande e o trabalho, na coragem férrea rumo ao incerto futuro. Eu era um deles, também trilhando na incerteza e saindo do nada para o desconhecido.
Finalmente cheguei, passei defronte do quartel da Guarda Policial da Província Fluminense e ouvi a corneta. Meu coração disparou, e pensei: “A farda cáqui, os botões, as guarnições de couro, os bonés enfeitando os soldados. Seria eu um deles?” Sim, vendi a mula, entrei e não mais saí daquele quartel. Assentei praça ainda no tempo do laço caçando milicianos. Fui olhado nos dentes e no corpo como se fosse um cavalo, como se estivessem assim medindo a minha idade. Mas eu era jovem e forte, criado na caça, na pesca, no melado, na farinha e na rapadura; nadava no rio Paraíba, tinha ombros largos, braços e pernas fortes; comia o robalo pescado na isca da aletria. Se eu fosse um cavalo, seria um corredor de grandes distâncias. E veio o sargento que me fitou e disse:
— Vosmecê é homem forte. Será bom soldado.
Cheguei no ano de 1900, bem depois da Guerra do Paraguai. Mas no quartel ainda contavam os feitos heróicos do 12º de Voluntários da Pátria nas terras alienígenas, nos idos de 1865 a 1870. Eu ouvia as falas, curioso; quem me contava era um deles, o velho sargento Cedro. Ele foi àquela guerra na viagem de navio e depois em lombos de burros socando o chão, seco ou molhado, os acampamentos no caminho, uma tropa de guerreiros improvisados. Eram homens do mato e escravos, todos acostumados à luta de sobreviver na natureza. Nada sentiam, eram fortes. E cada homem ia com o embornal cheio de balas, o fuzil no ombro, a baioneta armada. E havia a boiada e as prostitutas e o facão a ceifar vidas inimigas... E não havia aristocratas...
Ninguém pensava morrer; pensava só nas batalhas, nas vitórias e nas mentiras. Aos vencedores, as honrarias e os créditos, até aos mais mentirosos (“ao vencedor as batatas”). E o sargento Cedro era um honrado defensor da pátria e vencedor da guerra. Eu o ouvia. Se eu fosse à guerra, também medo não teria. Mas nem soube dela...




Entrosado ao militarismo, veio o meu nome de guerra, o do batismo, herdado do nhonhô da casa-grande campista da cana-de-açúcar: Silva, meu batizado na farda. Anotaram o meu nome, Sebastião da Silva. Eu dizia, somente dizia, porque certidão eu não tinha, documentos eu não tinha, mas apenas um papel do nhonhô que ficou patrão do pai ao fim da escravidão.
As batalhas da guerra, o sargento Cedro contava, tinham sido infernais. Ceifaram vidas e vidas, não deixaram paraguaios adultos de pé, muitos meninos morreram, até as mulheres morreram, a maioria depois de violentadas. Guerra infernal, batalhas terríveis, em Curuzu, Curupaiti, Corrientes, Lomas Valentinas, Humaitá, Itororó, Angostura, e, finalmente, Cerro Corá, onde tombou morto Solano López, não sem antes ver um exército de pobres e negros invadindo Assunção. Nessas terríveis batalhas, muitos corpos caíram com as vísceras expostas a talho de baioneta ou de facão, o mesmo que antes cortava a cana. O facão era a alma daquelas gentes simples tornadas soldados.
Sangue, muito sangue nas águas dos rios e riachos tingindo-as em vermelho. Mas, depois de avanços e recuos, veio a vitória; suada e sangrenta, sim, porém a vitória, e o heróico retorno da tropa nos braços da glória, a promoção a sargento, a mancha do dedo no papel era a sua assinatura, e assim o miliciano Cedro chegou a sargento, no heroísmo, com muitas medalhas enfeitando a farda. Eu tudo ouvia, fascinado.
No quartel, fiquei de cavalariço do comandante. Seu cavalo, um crioulo dos pampas rio-grandenses-do-sul, baio e forte, era o melhor de todos. Mas havia o medo das ruas, das gentes que passavam em vaivéns operosos; eu olhava, ressabiado, e sentia saudade do mato, da vida selvagem, dos parentes distantes. O quartel era meu refúgio, ali eu ficava sem quase sair. Saí sim, depois de um tempo, em busca de aventuras, de moças que se mostravam e deitavam a dinheiro. Mas eu logo voltava, e o tempo passava, moroso...
Assim, em lentidão, muitos milicianos eu vi passar, sentado no mesmo banco do quartel, de onde nunca precisei sair para saber de muitas batalhas fratricidas havidas em solo pátrio: novidades assustadoras. Mas hoje, na reserva da tropa, descanso, não mais saio do quartel. Antes, eu ajudava na faina diária, superiores agradados, vício de escravo. Na virada do século, muito depois de passada a República, eu vi intentonas, revoluções e outras comoções intestinas, tudo entre irmãos. E ouvi dizer das guerras mundiais que eu não entendia. Sim, porque o meu lugar era o quartel de Niterói e as pessoas de dentro que pude observar por anos e anos, muitas iguais a mim. E vários episódios alegres, alguns jocosos, e outros dramáticos, eu também os vi. E tragédias.
Os sinais da mudança dos tempos, entretanto, surgiam me atordoando a cabeça já branca, porém num corpo teimosamente saudável. Foi vontade de Deus a minha longa duração na vida terrena. Assim cheguei ao hoje, mas não gosto; e me volto ao dia em que adentrei o portal do quartel pela primeira vez. O corpo tremia no temor de um mundo estranho diante de mim, e o quartel foi meu refúgio.
Eu era um caso raro, voluntário em meio aos caçados a pau e corda, gente de toda a lonjura e de todos os naipes, porém miseráveis e sem destino. A milícia era a mãe gentil que surgia na hora da luta pela vida que começava no isolamento do mundo familiar, que começava e terminava no quartel. E ali eu vivi, como os meus antepassados africanos e campistas, esperando a morte chegar e meu espírito viajar nas asas da liberdade para os campos da África de meus ancestrais. Afinal, são apenas corpos mortos, e “os mortos ficam bem onde caem”...



02- PM da velha-guarda





Sou PM, sim, senhor!
Da velha-guarda, sou sim!
Dos tempos idos e vividos
Do tresoitão, da escopeta
Da metralhadora emperrada
Do fuzil, da baioneta.

Sou PM, sim, senhor!
Dos tempos românticos, sou sim!
Da camaradagem sadia
Do soldado sendo gente
Do amigo coronel
Do abraço em alegria.

Sou PM, sim, senhor!
Guardo em mim boas lembranças
Da corneta e do clarim
Da marcha batida em orgulho
Da farda que não era fardo
Da corporação dentro de mim.

Sou PM, sim, senhor!
Ontem, hoje e amanhã
Canto o hino e a canção
Bato no peito e proclamo:
Morro por minha pátria
E vivo com muita razão!

Sou PM, sim, senhor!
Hoje mui desalentado...
Por ver morrerem os novatos
Como patos na caçada
Sem direito de defesa
Morrendo a troco de nada.




03 - O recruta de ontem e hoje






É ainda madrugada. O irritante tilintar do despertador fere-me os tímpanos e faz o martelo bater forte na bigorna. Irra!... Levanto-me rápido, vou ao banheiro, escovo os dentes, faço a barba, “reflito” e retorno ao quarto. Visto-me correndo e saio, ainda no lusco-fusco, até a parada do ônibus. Chove. Não tenho guarda-chuva, mas lá vou eu assim mesmo. Na parada, a ansiedade da falta do ônibus, que está atrasado. Sempre atrasado... A chuva aperta; a minha afobação também, pois o maldito não desponta no fim da rua roncando seu velho motor e oscilando ao passar pelos enormes buracos alagados.




Nada posso fazer, só tem ele, que finalmente surge, espirrando lama nas pessoas, e como se não tivesse nenhum compromisso comigo. Estico o braço, agitado, afasto-me da lama aérea e ele para. Entro e me vou esfregando, molhado, nas pessoas que se apinham num apertado espaço. Ninguém quer perder o único ônibus, nem a hora, nem o emprego, por chegar atrasado. Nem eu, que espero castigo maior. E sou obrigado a ouvir, em incômoda quietude, as imprecações dos passageiros que inadvertidamente molhei com minha roupa molhada. É o nervosismo, o cansaço antecipado dos trabalhadores logo na primeira hora, e antes de se iniciarem na faina, ainda no crepúsculo de um alvorecer que nem começou.
O ônibus roda e para muitas vezes, sem pressa. A pressa está dentro de mim, que não posso sair na véspera. E, no dia, só há aquele maldito meio de transporte. Em cada parada, entram e saem passageiros afobados. Minha parada final está longe, e não chega, e a hora passa, e me atormenta a idéia do atraso. Mas, como tudo tem um fim, chego ao meu destino. E salto, e corro, e entro no quartel atabalhoadamente, e vou ao alojamento, e me fardo, e me disparo à formatura na quadra coberta ainda debaixo de chuva.
Entro na quadra, a tropa está formada, o sargento conta os homens. Vou até ele e lhe peço permissão para me incluir entre aqueles soldados formados, sou um deles, mas um retardatário, por culpa de circunstâncias alheias a minha vontade. O sargento sorri, e me diz que cheguei atrasado, e me diz que ficarei no castigo de pernoitamento em quartel, e me diz que estou muito mais molhado do que realmente estou, e me diz que por isso também serei dobrado no serviço de fim de semana. Abaixo a cabeça enquanto me encaminho ao meu lugar na formatura. Noto meus companheiros solidários comigo. São todos como eu, recrutas. Mas eu cheguei um minuto atrasado...




04- o PM de hoje





Sou PM já formado, sim, senhor. Saio de casa, no subúrbio, ainda no lusco-fusco do amanhecer, como nos tempos de recruta; fui acordado, antes do tilintar do despertador, pelo impertinente cantar do galo no quintal do vizinho. “Ainda mato esse galo!”, penso raivosamente, enquanto pulo da cama, travo o despertador, sigo a rotina e ando até o ponto do ônibus. Na banca de jornal, logo vejo as manchetes e me aborreço: “PM mata!”, “PM morre!”, “PM é preso!”... É sempre assim. Embarco no ônibus cheio de gente e ouço os comentários daqueles que não sabem quem sou: “PM tem mais é que se fornicar!”
No princípio, eu reagia, me identificava, discutia com o inadvertido e dele discordava. Ou então lhe dava uma peitada de polícia, mesmo, e o fazia calar na marra. Em torno de mim, porém, via todos me odiando em quietude incômoda. “Ah, que se danem!”, eu pensava. Afinal, sei que quem gosta de PM é família e poucos amigos, mas alguns apenas por interesse. Incrível é que, embora socialmente insignificante, nós, PMs, ainda temos prestígio pra quebrar um ou outro galho, pequeno, é lógico. E talvez PM goste de PM; porém, nem sempre...
Esta é minha “nobre” profissão. Chego ao quartel e me dirijo ao alojamento. O banheiro fede, mas todos estão lá, ou defecando ou tomando banho em algaravia nervosa. Os narizes não se afetam. Não há papo comum, cada um pensa em si e por si. No máximo, pode haver algum grupo conversando em sintonia, o que é raro. Geralmente esses papos sintonizados não ocorrem em alojamentos nem em banheiros: são espaços perigosos, há amigos e inimigos, as paredes têm ouvidos...
Mas começo a vestir a farda, exercício que faço desconfortavelmente sentado em cama beliche, com a de cima me obrigando a curvar a espinha, mesmo assim buscando ser rápido. Agora é hora de calçar os botins, o pior momento, um peso a mais a estourar as varizes e a feder os pés no suor de um dia de trabalho.
Os superiores dizem que é mais barato calçar soldado com botim do que com sapato. Bem prático, é verdade, mas que se danem os PMs que detestam o botim, como eu, é assim que pensam os superiores e fim! E quando se trabalha de capacete? Ai, meu Todo-Poderoso, que merda! O capacete é feio, incômodo, é provoca dor de cabeça, mas nada disso importa, cabeça de PM nada vale, sei disso.
Olho a barba. Está boa. Hoje é dia de formatura geral. Estou em dia de folga, mas folga de PM é vontade de superior, e esta é a de realizar a formatura geral pra discursar o que já sabemos. Geralmente é pra anunciar punição ou serviço extra. E depois, claro, a ordem-unida pra “cimentar a disciplina militar”, conforme diz o regulamento, não sei qual. Mas, sabendo ou não, marcha-se pra lá e pra cá, num vaivém em pátio apertado que nem dá pra andar ou correr ou marchar. Mas vem o comando e todos saem batendo o botim no chão em impoluta docilidade, os superiores olhando a tropa pra ver quem está enrolando na marcha, hora boa de punir.
É tempo de ouvir a escala do serviço extra, é almoço, meio-dia perdido. Há, então, o toque de rancho, nova formatura, agora um pouco bagunçada, dependendo do oficial-de-dia. Às vezes é um tenente chato. Pior ainda quando é subtenente, que fica nervoso e aperta demais a gente.
E a comida? Simples, temperada, quantidade boa, mas com aspecto de comida de porco. E daí?... Nós somos meio porcos, mesmo! O que interessa é comer, encher a pança, lamber os beiços e buscar um canto pra descansar enquanto não há o anúncio do serviço. Mas já temos idéia do que seja, é sexta-feira e domingo tem Fla-Flu no Maraca, final de campeonato. É isso.
De tarde, sai finalmente a escala do policiamento extra. Era o que se pensava, o Maraca cheio de gente e nós, de costas pro jogo, olhando aquele mundão de torcedores vibrando. Dá inveja, dá vontade de arriar a porrada neles e nos superiores. Não poderiam pelo menos revezar os babacas dos PMs, a metade vendo o jogo enquanto a outra vê a torcida? Depois, é só inverter. Mas, não. Fica é todo mundo sem ver nada, com raiva de tudo e saudade dos filhos. Eu sou Flamengo e tenho de ver meu timaço de costas, porra!
Vai finalmente todo mundo embora. Há assalto do lado de fora e um torcedor é morto, baleado. Mas é torcedor do Fluminense, então foda-se! Eu quero é me mandar pra casa e pelo menos pegar um rango melhor com a patroa. Mas, custa-se a sair, a noite começa a esfriar, chove fino. Até chegar ao quartel e ser liberado leva um penoso tempo, isto sem falar naquela preleção do garoto oficial-de-dia, que me enche o saco. Ó vida! Puta que a pariu! Mas, finalmente, sou liberado, e o relógio do quartel bate lentamente 22 horas... Que domingo!...
Pego um ônibus de pessoas cansadas. Olho bem se há suspeitos, minha carteira está dentro do sapato, bem camuflada. Mas o meu revólver 38 está afiado na cinta. Sento-me lá atrás pra não ser surpreendido, porém nem sempre há lugar e tenho de me arriscar e ocupar qualquer um. Ainda fico de olho em quem embarca no caminho. Se entrar galera esquisita, pulo fora e pego outro ônibus, melhor não arriscar.
Não é mole, não! Mas, enfim, chego a casa. Passa das 23 horas. Tudo apagado, abro a porta devagar e vejo a patroa dormitando na poltrona, a tevê desligada. Ela está num sono profundo, eu a acordo cuidadosamente. Mesmo assim, há o sobressalto e o reclamo, que logo passam. Ela sabe que estou com os meus nervos à flor da pele, e, carinhosamente, diz que me esperava pra jantar. E vai à cozinha...
Vou ao banho quente pra descontrair; visto um calção velho e ponho as chinelas nos pés doloridos. Sinto-me bem, vou à cozinha. A mesa está posta, tudo simples, arrumadinho. Há carinho, sem dúvida, fito a patroa retribuindo. Sentamos e comemos sem conversa. Há cansaço em ambos. A comida traz o sono. Ainda tentamos resistir e nos acariciamos buscando o sexo. Impossível, só dou por mim no dia seguinte, ao repetitivo cantar do galo trazendo o lusco-fusco de um novo alvorecer. Não sei se a patroa apagou antes de mim. Pulo fora da cama e corro à cozinha pra fazer café. Faço-o, engulo-o com uns biscoitos e me mando à rua. Tenho de andar rápido e pegar o ônibus sempre perigoso, estou de serviço a partir das oito. Sim, senhor, eu sou PM.





05 - A farda do PM




A farda do PM não deveria ser um fardo, e, sim, motivo de orgulho. Como outrora, em que o PM era um “bom partido” e as meninas o rodeavam nas ruas... Hoje, não mais... Hoje, a farda do PM significa vida pauperizada, risco de morte e desgaste moral.
Muitas vezes a farda do PM envergonha seus familiares nos bairros, ruas e escolas. Basta a falha de um PM que esteja dentro da farda, por azar ou desídia, não importa, a culpa será de todos.
Hoje, a farda do PM equivale ao pecado e à desconfiança; já até foi considerada, por um jornalista malicioso, uma “prisão onde só cabe um ladrão”.
E não falta quem não queira engrossar a fileira dos que detestam a farda do PM e odeiam indistintamente quem está dentro dela.
Não lhes importam o corpo e a alma do anônimo que veste o seu fardo hodierno, como traduziu o poeta Salgado Maranhão (sic), prêmio Jabuti de Poesia (Câmara Brasileira do Livro, 1999):



Farda

Melhor se se chamasse fardo,
em vez de farda, – esse travel
cheque para o sacrifício –
a defender o indefensável.

Melhor se se chamasse alvo:
mural da ira acusadora
contra os próprios personagens
que lhe julgam protetora.

São, normalmente, pretos, pardos,
Pobres, sobras de etnias:
gente fabricada em série,
que ao perder, tira se outra via.

E prossegue o ritual
desse espetáculo de horrores,
de Caim matando Abel
numa guerra sem vencedores.

E prossegue essa torrente
do sangue que não socorre,
o drama de ser ver morrer,
do lado de onde sempre morre.

(Sepultamento do Tenente PM Alexandre Alves de Lima, 24 anos, e do Sargento PM Ítalo Patrício da Silva Leal, 33 anos, mortos por traficantes na Favela da Maré em junho de 2009)

6 comentários:

paulo fontes disse...

Caro amigo Larangeira,

Cada vez que entro no blog sinto prazer, saudade e tristeza.

Porque o fino trato que você dá à Língua Portuguesa, última "flor do lácio inculta e bela", transforma a leitura do texto em prazeroso lazer.

Sinto saudade porque você sabe como poucos evocar os acontecimentos pretéritos com muita sutileza e sensibilidade.

Finalmente fico triste por saber que nada mudou na PMERJ ao longo desses anos e a história é a mesma só mudando os personagens.

Um grande abraço do
Ten Cel Fontes.

Emir Larangeira disse...

É verdade, amigo!

Mas pior ainda é ignorarmos e não tentarmos mudar isto. Não é fácil, somos parte de uma cultura de Brasil Colônia, Império e "Republiqueta" acumulando todos os vícios dos períodos anteriores; e são poucas as virtudes a comemorar. Você, como eu, deve lembrar do tempo em que ir às ruas fardado dava-nos orgulho. Hoje, além da farda feia, o PM nem carteira pode portar, se quiser sobreviver. Vivemos num ambiente absurdo e quase que o consideramos normal. Quem conhece países civilizados sabe a diferença. Que fazer?

Obrigado pelo incentivo.

Um afetuoso abraço.

Anônimo disse...

• AS PMM ESTÃO EM CRISE? ENTÃO VIVA AS PMM DO BRASIL!


• POR QUE A CRISE?

• Aprendemos com Fayol, Taylor e outros timoneiros da Administração, que é através da divisão do trabalho, do incentivo à produtividade ou mesmo pela expectativa de papéis que o trabalhador se identifica, se firma e se afirma como tal, colaborando de forma evidente, até se confundir como parte inerente da Firma, Empresa ou Instituição!
• Por outro lado, sabemos também que foi a Administração Militar (Administração Vertical) - uma grande vertente, para que muitos Setores Produtivos se espelhassem naquele modelo de Gerenciamento Centralizador!
• Ora, da Pré-História, História Medieval, Contemporânea, Moderna e Pós-Moderna, muitos avanços rumo à modernidade foram consolidados.
• As Empresas que adotaram àquela postura militar, isto é, a hierarquização e maximização nos ganhos e lucros respectivamente versus disciplina e produção - somente lograram êxito até a Revolução Industrial. De lá para cá - e mais de perto:
• - Consolidação das Leis do Trabalho;
• - Carta Magna de 1988;
• -Leis, Súmulas, Acórdãos, Jurisprudências, Cláusulas Pétreas, entre outros Direitos Consagrados na Constituição Federal.
• Todos os Segmentos Administrativos tiveram que adotar mudanças importantes, tanto na Administração Pública como no Setor Privado. E aí sim, consolidando os Justos Direitos de todas as Categorias; de todos os Trabalhadores e Trabalhadoras inclusive!
• Foi o início de um novo tempo - acordos passaram a ser firmados entre a Classe Trabalhadora e os Empresários daquela época, até nossos dias!
• Hoje por fim, todas as Categorias de Operários de um modo geral, respiram o ar da Liberdade, pois têm seus Direitos respeitados, conquanto promotores do desenvolvimento Produtivo, Econômico e Social!

• ONDE ESTÁ A CRISE?

• A Crise ainda está na Administração Militar! Pois não Floresceu! Não Sobreviveu! E ainda contrasta com os ditames da Nova Ordem Mundial.
• Aí está, pois, o cerne da Crise nas PMM! Tidas e havidas como Organizações de Policiais Profissionais, gerenciadas sob a égide da Administração Militar- que ainda insiste em aplicar um Regulamento Concentrador - uma Disciplina Severa, sem acenar, nem mesmo de longe, para uma Administração Participativa, Interativa, Descentralizada, de Parceria, Cidadã.
• Portanto,
• AS PMM ESTÃO EM CRISE? ENTÃO VIVA AS PMM DO BRASIL!






• Viva as PMM, por seus componentes terem dado o primeiro dos muitos passos na grande jornada rumo ao Estado de Direito do também Cidadão Militar!
• Uma Grande Maratona sempre começa com apenas um passo, já afirmava um grande pensador!
• Viva as PMM, pelos aguerridos militares terem inspirados na Sociedade, um Sentimento de Cidadania ao apoiar Solidariamente o Movimento Militar!
• Viva as PMM, pelos seus membros não se deixarem amedrontar ou até abandonar a nau, como camundongos de porão, às vésperas de uma tempestade !
• Viva as PMM, por nenhum dos seus se render nem se vender ou mesmo calar, frente aos atos truculentos e insanos dos que se dizem Senhores do Poder e Homens cumpridores do Dever - capitaneados uns, pelos ignóbeis rasputin’s palatinos e/ou deslumbrados pelos seus fidelíssimos bobos da corte e outros, enlevados por ambíguos motivos ou até mesmo,movidos pela empáfia do Poder pelo Poder!
• Viva as PMM, por virar as páginas de uma história de subserviência, de cegueira cívica - do Capitalismo Selvagem - e abrir um novo Capítulo de uma Nova Era - não mais como simples espectadores, mas doravante como Personagens Principais na Construção de uma Nova Ordem Mundial - parafraseando o grande Poeta ¬ - Caetano Veloso!
• Viva as PMM, por comportar em seus Círculos, o verdadeiro Soldado Cidadão, o Militar Autêntico, e acima de tudo, o Homem Cristão!
• Parabéns nobres homens da Farda (não ao fardo) que reluz pelo seu próprio brilho, mais até que o ouro – que não fulgura mais, vez que foi mareado pela cobiça do homem e/ou ofuscado pela cegueira do tempo!
• AS PMM ESTÃO EM CRISE? ENTÃO VIVA AS PMM DO BRASIL!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Vamos fazer uma homenagem aos PMs que invadem as casas de moradores de comunidades carentes atrás de drogas e armas sem a mínima educação ou respeito, por achar que todos que estão na favela apoiam a criminalidade.
A todos que quando abordam (em blitz ou não) motoqueiros que estão em motos de baixa cilindradas (300cc ou menos) chegam falando: Ta com droga, ta com armas, tem "passagem". Se tiver com alguma coisa e você não me falar eu vou te esculachar vagabundo. As vezes nem pede os documentos.


Agora vamos ver o outro lado da moeda.

Se você mora em uma casa fora de comunidade a abordagem é outra:
"Com licença boa tarde, foi feita uma reclamação (ou denúncia), será que eu poderia verificar se procede?"

Se você tem um veículo de presença e esta bem vestido a abordagem:
Bom dia (tarde ou noite) cidadão, o senhor poderia me fornecer o seu documento e o documento do veículo? Posso dar uma olhadinha no seu porta malas?
Isso quando é parado, pq na maioria das vezes, deixa passar.

Eu sei disso pq já estive nos dois lados dessa mesma moeda.

Não adianta ngm aqui vir com demagogia dizendo, que isso são casos isolados, que se aplica a um pequeno percentual da corporação.

Do jeito que esta, pra melhorar tem que mudar muito ou então tornar a PM atual uma força auxiliar e abrir um novo concurso para uma nova polícia militar, pois pra melhorar a "estrutura desse edifício" é melhor derrubar de vez e fazer um novo mais moderno.

Emir Larangeira disse...

A crítica do anônimo é dura, mas pertinente em uitos pontos. Creio que todo PM deva refletir sobre ela, especialmente aqueles PMs que almejam respeitar sempre, e indistintamente, o cidadão, seja rico ou pobretão.
Agradeço ao anônimo.