quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Livre-arbítrio

“A liberdade é mais importante do que o pão.”
(Nelson Rodrigues)


Se tomarmos a expressão do preceito bíblico, vemo-la no Primeiro Livro de Moisés (Gênesis) funcionando como quebra de regra, ou seja, o livre-arbítrio como discernimento entre o Bem e o Mal. Postos ante Adão e Eva, ela optou pelo Mal, comeu o fruto da árvore proibida e sugeriu a Adão cometer o mesmo pecado. Enfim, para haver o pecado, antes houve a proibição... Mas, se se considerar que o planeta Terra emergiu de uma bola de fogo a esfriar ao longo de cinco bilhões de anos, e que o surgimento da vida se deu num contexto evolutivo da mãe-natureza, aí sobreleva a impossibilidade de discernir sobre o livre-arbítrio. Ou então devemos concebê-lo a partir da existência do homo sapiens, rubrica antropológica iniciada com seres antropomorfos adquirindo gradualmente a inteligência e se transformando no que hoje denominamos “seres racionais”. Bem... aceitemos o livre-arbítrio como um aspecto inelutável da condição humana.
Verdade ou não, lá no início remoto dos grupos sociais já havia uma espécie de confronto entre livres-arbítrios, que, em síntese, resumem-se aos racionais decidindo por livre vontade e conseqüentemente se contrapondo à vontade de outros. E se avaliarmos o arbítrio humano deparamo-nos com exteriorizações várias; mas vamos optar pela manifestação de opinião, que se pretende livre, mas geralmente é contida em regras, o que delimita a liberdade de discernir sobre coisas, fatos, fenômenos, pessoas etc. Daí haver tantos duelos entre os pensantes, com a suposta verdade pertencendo ao vencedor.
Mas também a aterrorizante influência dos fenômenos naturais sobre o espírito humano instituiu as primícias da supremacia de poucos sobre muitos. Destacam-se, nesta fase, os oráculos e adivinhos, desempatadores de divergências por meio de “poderes sobrenaturais”. Eis, pois, o arbítrio humano já nem tão livre assim... E tempos depois, tomando o juízo de valor de terceira pessoa (árbitro), reduziu-se ainda mais o livre-arbítrio, ou, como diriam os psicólogos sociais, o livre-arbítrio restringiu-se a atitudes não-observáveis negando-se a se consolidar em comportamentos visíveis e quiçá puníveis. Eis como se inicia o conformismo: toda prudência era pouca...
Assim chegamos ao hoje, ao livre-arbítrio como hipótese, posto que, a mais e mais contido em conceitos, leis e regras, transformou-se em figura jurídica, em simples retórica jurisprudencial, impraticável em sua plenitude individualizada. Pois é certo que o ser humano, vivendo em comunidades artificiosamente regradas, não dispõe de alvedrio; comporta-se segundo arbitragens calcadas em princípios éticos (ou não-éticos) vigentes numa sociedade; ou, como assegura o renomado professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Finalmente, o fundamento axiológico da Ordem Pública são as vigência éticas da sociedade: o direito, o costume e a moral (sic).” (José Cretella Júnior et alii. Direito Administrativo da Ordem Pública. Forense. 3ª ed. Rio de Janeiro, 1998. Grifo do autor). Enfim, artifícios subjetivos...
Neste ponto, não há como evitar contrapor o livre-arbítrio ao poder do Estado, sendo evidente que este último, desde os remotos tempos até aos sistemas de poder hodiernos, se vem sobrepondo a todos os valores naturais que informam a convivência social, pior é que em nome deles. Isto porque, na realidade, a dominação de poucos sobre muitos tem sido a regra da vida coletiva. Daí é que o binômio poder-saber preponderava e ainda prepondera sobre a coletividade, conforme ensina Michel Foucault em “Vigiar e Punir” (Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Editora Vozes, 24ª edição, Petrópolis, 2001).
Não é o caso, todavia, de mergulhar fundo no campo complexo da filosofia ou das religiões para reconhecer que as sociedades ocidentais privilegiam desde ontem e ainda hoje, – com a adesão quase que total dos orientais, – os meios de produção capitalistas. Assim o homem se vem transformando de artesão e agricultor em “máquina” rigidamente controlada a serviço do capital. Ou seja, tornou-se escravo a trabalhar sem pensar, destituído do direito ao livre exercício da vontade. Sim, este era o modelo de ontem (feudalismo); este é o modelo de hoje (capitalismo). Portanto, resta pouco ou nenhum argumento para se garantir o livre-arbítrio entre os seres humanos. Ele é, em última análise, mera utopia. Pois o poder do Estado se submete ao capital – o poder maior (“A liberdade é o direito de fazer tudo que as leis consentem.” – Montesquieu in “O Espírito das Leis”).
Por outro lado, uma reflexão leiga sobre o livre-arbítrio obriga-nos a retomar, não sem temor, o complexo e por vezes incompreensível campo da filosofia, especialmente focando o individualismo e a diferença entre os racionais. No tocante ao individualismo, devemos pensar no ser humano agindo no extremo de sua livre vontade, sem, porém, perder de vista o respeito ao seu semelhante (o ideal). Igual situação, – e talvez mais problemática, – é a diferença, cujo conceito filosófico é complicado e ainda hoje aberto a especulações e contradições várias.
Na verdade, quando se pensa em livre-arbítrio, não há como não vislumbrar no campo prático da vida coletiva a predeterminação de modelos racionais de convivência (conceitos e preconceitos), de modo que a rebeldia não descambe para o descontrole anárquico. A questão, pois, é saber em que ponto está o equilíbrio entre o individualismo – direito natural do indivíduo, mais importante que sociedade e estado – e a razão aceitando-o, porém tornando quase inacessível o livre-arbítrio. É o que vemos e sentimos no mundo prático em que o individualismo e a diferença jamais venceram ou vencerão as razões que comandam o viver individual e coletivo: as razões de Estado e de Governo submissas ao Capital, ou decorrentes da Tirania...
Em outras palavras, livre-arbítrio é concepção virtual, na medida em que não se conhece – talvez nem mesmo na vida natural dos clãs mais remotos – a prevalência do indivíduo sobre o grupo social. Pois o individualismo esbarra na diferença e no conflito entre seres humanos no seu íntimo incorporal. Enfim: corpos iguais, mentes diferentes (a verdadeira igualdade é o direito de ser diferente). Ajustar tal situação não tem sido possível nem mesmo aos que detêm o máximo poder, tanto em meio à convivência rudimentar das tribos como nas complexas sociedades formadas ao longo dos tempos. Prevalece, então, o interesse do mais forte...
A livre vontade pode, entretanto, ser admitida no campo da abstração filosófica em que conceitos servem para inovar a reflexão por meio, inclusive, de contradições (teses e antíteses) que caminham em busca de uma síntese, que logo será tese e encontrará, por sua vez, algum pensamento dessemelhante (antítese), e assim por diante... É o ser humano na eterna busca da verdade existencial, evoluindo no sentido da abstrata compreensão do mistério da vida e da morte. Aí sim, pode-se supor que o livre-arbítrio funcione como manifestação individual, livre, diferente, porém não exteriorizada, e assim o será até que o mistério se desvele, ou por conta da razão ou quando o conhecimento incorpóreo tornar-se efetivamente acessível. Considerando-se essas limitações humanas, que cada indivíduo então escolha, entre tantos caminhos diferentes, o que melhor lhe convier ao espírito. E depois responda ou não por isso no plano espiritual e, principalmente, no material – o plano de quem manda mais...

2 comentários:

Mário Sérgio de Brito Duarte disse...

Nómos e physis, onde a verdade?
Há existência de um mundo exterior, fora da relação sujeito-objeto?
Creio que a chave para a compreensão do livre-arbítrio está na resposta a essa questão.
De minha parte creio na hipótese de um mundo exterior, um mundo fora da apreensão humana e, aí, sua inexorabilidade para o não-livre-arbítrio, uma existência não cultural, dos que não abstraem (animais, plantas, minerais).
Mas creio também no mundo da norma: humana, reflexiva e feita com algumas escolhas possíveis, a escolha dos eleitos para representação dos eleitores.
Por fim, creio nesse livre-arbítrio de se poder respeitar a physis e a norma, a cultura e os sistemas, os métodos e as crenças, ou, repudiar a todos, em qualquer situação com suas conseqüências.
Está meio-Caetano-Veloso, mas esse vosso texto é imperdível de se comentar.
Muito bom!

Emir Larangeira disse...

Prezado Cel Mário Sérgio

Permita-me chamá-lo mestre! Obrigado pela bela crítica. Ah, quem me dera conhecer esse mundo exterior fora do sujeito-objeto: a revelação.
Concordo com a norma. Creio que o limite do livre-arbítrio está no respeito ao outro. Também creio no voto, ainda mais agora que assisto em maravilhoso espanto um negro assumir a presidência da maior potência do Orbe... PELO VOTO!
Você me fez lembrar o Professor Darcy Ribeiro, que se dizia ateu, mas próximo da morte falou que sentia inveja da fé que a mãe dele tinha em Deus. Creio que ele se safou na última hora e está no céu, se é que existe céu. E merece! Hehehe.
Por falar em Caetano Veloso, sugiro ao amigo adquirir o DVD do Caetano e do Roberto Carlos interpretando Tom Jobim. Confesso que me vi ante uma obra de arte musical há muito devida pelos dois gênios da música aos brasileiros. Mas o Caetano (Nossa Senhora!), está simplesmente divinal. Depois me conte.
Mais uma vez obrigado.