As calamidades brasileiras sempre se caracterizaram por água de mais ou de menos. Sobre a seca nordestina, nada há a comentar, é histórica, sabida por todos e até então incurável, demais de ter enriquecido muita gente. Já as enchentes, geralmente acompanhadas de deslizamentos de encostas e soterramento de pessoas, costumam ser surpreendentes e fatais, embora muitas delas possam ser prevenidas. A tragédia de Santa Catarina, talvez fosse possível prevê-la e minimizar seus danos. Afinal, é possível supor que muitas das áreas afetadas fossem originalmente tomadas por florestas, e o desmatamento sistemático para a formação de pasto ou plantio costuma produzir efeitos danosos no futuro. De resto, nem mesmo as chuvas de hoje podem ser classificadas como naturais. O descontrole ambiental é mundial e o aquecimento global vem provocando tragédias sucessivas.
Os desastres artificiais, conseqüentes de atentados terroristas ou de falhas humanas, completam um quadro calamitoso que se acentua com as guerras e revoluções mundo afora. Pintam-se ainda no rol das calamidades naturais e artificiais as endemias e epidemias, muitas delas relembrando tragédias remotas a dizimarem milhões e milhões de seres vivos (humanos e animais). Eis a síntese do que a humanidade decidiu nomear como calamidade. Mas esta síntese é pouca. Hoje não é demais acrescentar no catálogo das tragédias a violência generalizada e transnacional produzida pelo crime, sublinhando-se em importância o tráfico de drogas e de armas e muitos crimes de sangue a eles conexos. Também não se pode deixar de computar o contrabando e o descaminho de tudo que é animal ou coisa, tornando o planeta um autêntico “queijo suíço”.
Enfim, a calamidade é problema mundial, é um imenso sistema gerador de desgraças por meio de seus infindáveis subsistemas. Poderíamos, numa alegoria, imaginar a calamidade como a ação de Lúcifer e seus diabinhos a destruírem a obra de Deus, mas com a ajuda daqueles que se dizem feitos à Sua imagem e semelhança... O resultado disso é o processo entrópico que ataca o planeta e o encaminha à destruição total. É questão de tempo, talvez mais curto do que imaginamos em nossa insanidade: tempo de tragédias que estamos insensivelmente legando às futuras gerações.
Tornando ao Brasil e às calamidades tupiniquins, somos obrigados a afundar no movediço lugar-comum dos fenômenos calamitosos naturais e artificiais tão sobejamente conhecidos como descaradamente ignorados. Vivenciamos inúmeras calamidades naturais e sociais: seca, enchentes, acidentes de trânsito, fome, banditismo urbano e rural, epidemias da dengue e outras doenças crônicas a ceifarem silenciosamente muitas vidas. Mas no país do otimismo não há lugar para maiores preocupações, exceto quando ocorre uma tragédia como a de Santa Catarina, que ora recebe a atenção e a solidariedade geral da mídia e jorram movimentos de arrecadação de donativos nesta sua fase aguda. Ocorre que, tão logo o tempo escorra e a chuva sossegue, a solidariedade diminuirá, os voluntários desaparecerão como por encanto e só ficarão os aleatórios organismos estatais e algumas abnegadas ONGs socorrendo a população afetada. De resto, cada um dos atingidos que se vire e reconstrua a sua vida familiar e social, e ninguém jamais saberá se esse esforço culminou bem-sucedido.
Quando se aborda a calamidade, emerge a sua contrapartida: um sistema de defesa com regras próprias e internacionalmente denominado “defesa civil”. Surgida na II Grande Guerra, a defesa civil resumia-se à proteção dos ingleses em vista dos ataques aéreos alemães. A importância desse sistema pode ser resumida na frase histórica de Sir Winston Churchil: “A defesa civil é uma obrigação para com a humanidade, que não pode ser abdicada por nenhuma nação, comunidade ou indivíduo.” Se não bastasse, desponta de outro berço da defesa civil (Centro de Treinamento Internacional de Defesa Civil – Genebra) uma recomendação: “A defesa civil é necessária na calamidade, imprescindível na guerra e útil todos os dias.”
Sem dúvida, a defesa civil é primeiramente um sistema com métodos e técnicas peculiares. É estrutura com finalidades amplas e complexas, que vão desde a prevenção às calamidades até a restauração completa das comunidades por elas atingidas. Não se trata, portanto, de atividade menor e desimportante. Não se resume ao socorro das vítimas e à contagem dos mortos. É sistema grandioso em todos os sentidos e deve estar organizado de tal modo que possa desencadear ações coordenadas e simultâneas de vários de sistemas governamentais e particulares para prevenir adversidades naturais ou artificiais e solucioná-las em fases posteriores de socorro e recuperação, quando a prevenção for insuficiente.
Esta é a síntese das fases, que se desdobram em subgrupos flexíveis e em planejamentos dinâmicos, o que aqui não importa aprofundar. Importa, sim, esclarecer que a defesa civil deve ser vislumbrada como um só sistema (internacional, nacional, regional e local) interligado a subsistemas capazes de atuar racionalmente ante uma calamidade, abolindo-se as ações aleatórias e emocionais, boas para a mídia, mas desastrosas para as vítimas. Pois não é a solidariedade que solucionará o problema, mas a administração dela no contexto da obrigatoriedade governamental com a defesa civil em todos os seus níveis de poder: federal, estadual e municipal.
A defesa civil é, sem dúvida, grandiosa. É processo de antecipação à calamidade para evitá-la ou minimizá-la. E empunha a bandeira branca da paz: um bom sistema de defesa civil pode unir até países antagônicos em prol de causas humanitárias. Para tanto, porém, o sistema deve ser reconhecido no âmbito restrito de uma nação, de modo a servir de modelo aos seus Estados Federados e Municípios, todos formando subsistemas de um só sistema de amplitude nacional. Aí sim, a nação atenderá aos conselhos de Sir Winston Churchil e do Centro de Treinamento Internacional de Defesa Civil. Não é nosso caso! A defesa civil consta na Carta Magna como atividade subsidiária às atribuições dos bombeiros, nos ridículos termos do § 5º do Inciso IV do Art. 144: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.”
Ante esse absurdo constitucional, é possível concluir que a ignorância do legislador constituinte tornou-se estupidez. Chega a ser hilariante incumbir aos Corpos de Bombeiros a “execução de atividades de defesa civil”. Ora, a abrangência da defesa civil é tão tamanhona que esta incumbência constitucional é impraticável. Pois os integrantes dos Corpos de Bombeiros, muitos deles ainda subordinados às Polícias Militares, não são preparados para o exercício de coordenação das atividades de defesa civil, estas que envolvem planejamentos dinâmicos a partir de reuniões periódicas de grupos formados por representantes de todas as estruturas federais, estaduais e municipais, além das estruturas particulares nacionais e internacionais. Para tanto, são imprescindíveis diagnósticos e ações que muitas vezes não mantêm qualquer relação com as nobres atribuições dos bombeiros, incluindo-se operações militares envolvendo grandes contingentes das Forças Armadas. O princípio de funcionamento da defesa civil é o da cooperação e da racionalização de recursos governamentais e particulares, tanto para as atividades preventivas como para o atendimento de ocorrências tão multivariadas que não cabem aqui.
Os Corpos de Bombeiros atuam, sim, nas calamidades, executam, sim, atividades de defesa civil, mas restritos às suas atribuições, tanto como diversos organismos estatais e particulares cujas atribuições não guardam qualquer relação com as dos bombeiros militares. Portanto, afirmar na Carta Magna que aos Corpos de Bombeiros incumbe secundariamente a execução de atividades de defesa civil é uma imperdoável redundância, é uma inovação estúpida, com prejuízos ao perfeito entendimento da complexa e abrangente função da defesa civil.
Na verdade, a atuação da defesa civil no Brasil (infelizmente só reconhecida durante as calamidades), resulta em puro aleatorismo dos organismos empenhados no socorro de populações atingidas, malgrado a boa vontade de todos e o heroísmo de alguns. A nada disso se nega valor. Mas a defesa civil é muito mais que isto; é, sobretudo, prevenção, que envolve uma gama de procedimentos a partir da avaliação de cada ambiente e da detecção das possibilidades de ocorrências desastrosas. Para tanto, muitos profissionais de diferentes áreas de conhecimento e atuação devem se reunir periodicamente para traçar o momento seguinte, que não deve ser de reação atabalhoada, mas de ação racional e eficaz. Isto implica relevar o planejamento como um processo muito anterior ao possível problema a enfrentar, e sublinhar a necessidade de uma estrutura permanente e ativa durante os períodos de normalidade, de modo a evitar surpresas trágicas. E não há de ser o Corpo de Bombeiros a comandar esse espetáculo como se a defesa civil fosse mera coadjuvante de suas atribuições constitucionais, embora o sistema possa ser dirigido por bombeiros especialistas em defesa civil, que, aliás, são muitos. Assim termino para que não pensem que tento desmerecer os honrados heróis do fogo. Mas que pelo menos coloquem a defesa civil na Carta Magna emprestando-lhe sua real importância institucional. Afinal de contas, existe uma Secretaria Nacional de Defesa Civil no Ministério da Integração Nacional. Existe?... Sim, por mais incrível que pareça, existe, sim! E há em cada Estado-membro uma Coordenadoria Regional de Defesa Civil (CORDEC). Ah, e também existe o ministério, embora não se ouça falar dele nem durante as secas e enchentes que assolam calamitosamente o território nacional. Mas vale a pena visitar o site do sistema nacional de defesa civil para se ter a certeza de que essas atividades não são, mesmo, subsidiárias de corpos de bombeiros militares, como erroneamente sugere a Carta Magna, o foco do nosso questionamento.
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