sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Combater ou não combater em favelas?

“O crime organizado nada mais é do que uma guerra de guerrilha contra a sociedade.”
(Lyndon Johnson)


A indagação permanece atualíssima, pois o que se via e vê nas operações policiais civis e militares em favelas é combate com todos os ingredientes dos confrontos de forças regulares contra guerrilheiros urbanos. Ocorre, todavia, que não estamos combatendo guerrilha (pelo menos oficialmente, embora os traficantes sejam hoje designados “narcoguerrilheiros”), e não vigora nenhuma situação de exceção legal (estados de defesa ou de sítio); demais disso, as ações policiais são veementemente espinafradas pela mídia em sua retaguarda, algo insólito numa situação de conflito armado em que, para lograr êxito, os combatentes dependem de apoio logístico e moral dos que os impulsionam à linha de frente, incluindo-se, paradoxalmente, aqueles que os espinafram.
Os que condenam o combate (não há como classificar as ações como serviços policiais) geralmente ocupam essas trincheiras por serem jornalistas e acadêmicos ligados às delícias da esquerda, e que, por isso, são preferidos pela grande mídia. Esta, por sua vez, necessita deveras da polêmica para estimular a atenção do público. Sem contrastes não haverá atentos leitores, telespectadores e ouvintes. Afinal, o mundo é feito de contrastes... Já os que aprovam o combate, geralmente sem espaço midiático, reduzem-se à fala isolada do chefe do Poder Executivo, principal impulsionador da força policial ao combate, que os críticos costumam designar em clichê como “política de confronto”. Na verdade, não há nenhuma “política” no sentido do planejamento como processo nas suas diversas fases. Há, sim, decisão política direcionando a polícia às escaramuças. Isto é certo ou errado?...
Muito bem, sou descaradamente favorável ao combate. Negar tal fato me seria o máximo da hipocrisia. Mas ser a favor do combate não significa aceitar seus métodos, e aqui reside a minha angústia, pois não consigo enxergar nas ações policiais nada além de improvisos a colocar em risco o policial e os desesperados residentes em localidades carentes. Sim, os favelados pagam o preço da miséria com a morte, eis a brutal contradição: quem nunca se envolveu com o crime, e ainda vive subjugado por ele, vê-se constantemente entre dois fogos em tiroteios irracionais, mais parecendo distribuição generalizada de balas nas festas dos santos gêmeos. Só que são balas de fuzil ciscando o ar à procura de corpos, e nenhum “PAC” dará fim ao grave problema.


Tocar nesse assunto talvez seja temerário. Afinal, as autoridades públicas locais sempre elogiam as ações policiais e não incluem critérios técnicos em suas avaliações; não sendo especialistas em polícia, partem do pressuposto de que os organismos policiais atuam com presteza e não se incomodam com o custo-benefício dessas ações aparatosas, cujos resultados recebem a elasticidade que convém ao discurso do confronto; e estão invariavelmente com razão, nada demais, a razão pertence ao poder... Ademais, ninguém se há de preocupar em somar as vítimas inocentes (civis) e os policiais mortos em virtude da violência que patrocinam ao agrado das autoridades; nem se contam os companheiros trucidados em vingança nas ruas frias, com o cansaço físico a lhes derrotar a vigília regulamentar, ou quando estão de folga e são identificados como policiais por facínoras sanguinolentos.
Neste ponto, é imperioso lembrar que o tráfico instalado nas favelas do Grande Rio e nos Municípios do RJ não é de agora. Algumas décadas transcorreram, e, embora tenha havido uma espécie de gangorra oscilando entre o confronto e a omissão, dependendo do governante, nos dois casos a criminalidade aumentou e se tornou a mais e mais violenta. Determinar as causas desse acirramento alegando ser a violência policial a causa primeira é absurdo; por outro lado, empurrá-la somente para os bandidos não parece lógico. Admitir, porém, o aumento populacional, a certeza de impunidade dos marginais e a facilidade com que os policiais “justificam” a morte de traficantes como condicionantes da violência não é fator de todo descartável. Igualmente procede a idéia de que os dois principais fatores que contribuem diretamente para a pujança do crime não são locais: o tráfico de drogas e de armas é transnacional, o que desloca o foco das decisões para Brasília.
É claro que o assassinato de muitos policiais reafirma a excessiva violência a partir do alto grau de mobilidade e invisibilidade dos bandidos-guerrilheiros-urbanos. Por si só, isto requer a contrapartida do uso sistemático da força policial e até da força militar federal em ações operativas direcionadas aos seus homizios. Mas, nesses casos, haveria de haver um estado de exceção legal legitimando a supremacia estatal. Trata-se de delicada decisão política, e não me parece que alguma autoridade municipal, estadual ou federal assuma tamanha responsabilidade no campo prático. Todos, porém, admitem a “barbárie” em seus inócuos discursos e não passam disso. É o limite do político “democrático”, e que se danem os policiais, que não podem recuar, pois a ordem é atacar, mesmo que atabalhoadamente! O resto é o estrondoso silêncio constantemente quebrado pelo som da corneta, pela salva de fogos da guarda fúnebre e pelo ronco dos helicópteros policiais jorrando pétalas nos cemitérios. E pelo pranto inconsolável das famílias policiais civis e militares...
É fácil destrinçar o problema explicando como deveria funcionar uma ação operativa nos padrões ideais, porém não há como “acariciar” o assunto, tergiversar não é mais possível. Se sublinharmos, por exemplo, o Complexo do Alemão, a ação operativa naquela localidade (vale para as demais favelas) deveria ser precedida de minuciosa atividade de inteligência e de investigação criminal (a segunda se inclui na primeira) a sustentar a decretação do estado de defesa circunscrito à área do conflito. Montar a operação é o que há de mais fácil. Nos meus bons tempos era denominada “cerco e estrangulamento”. Consistia na formação de círculo abraçando a localidade e avanço lento com varredura total até o ponto central. Mas, para dar certo, é imprescindível apurar a vida pregressa de cada morador e vasculhar casa a casa, da periferia ao interior, utilizando tecnologia para localizar armas enterradas e cães a farejar drogas. O princípio é simples: quem não deve, não teme...

Lembrando que a ação operativa generalizando a suspeita estaria legitimada pelo estado de defesa (não há outro meio), e ainda aventando a hipótese de ela ser acompanhada por promotores de justiça (para evitar excessos), cada passo seria meticuloso. A caminhada levaria o tempo que fosse necessário ao sucesso da empreitada, nesse caso contando com as Forças Armadas formando e fechando o cerco, e as polícias federal, civil e militar vasculhando tudo até se alcançar o centro do círculo. Atiradores de elite cuidariam da reação pontual. Somente eles estariam aptos a atirar contra alvos selecionados. Aí sim, haveria um resultado global a ser avaliado, e não esses resultados parciais a troco de muitas mortes. Quanto ao comando da ação operativa, há lei complementar federal em vigor determinando seus critérios. Portanto, isto não seria problema.

Alguns, com certeza, levantarão a voz para criticar a idéia; outros dirão que reinvento a pólvora; e eu lhes respondo que é melhor do que continuar a enxugar gelo, engarrafar fumaça e tapar o sol com a peneira... Pois eu sei e muitos como eu igualmente sabem que a ação operativa tenderá à reedição do sucesso em situações de combate em zonas urbanizadas. Que fique bem claro: não há nenhuma necessidade de ocupação. Basta repetir a ação operativa quantas vezes ela for necessária, para assim desestabilizar o poderio dos facínoras. O pressuposto é simples: os bandidos sempre existiram e sempre existirão em qualquer lugar. É característica histórica e indiscutível a existência do crime na tessitura social. O que não se pode aceitar é o Poder Público permitindo a supremacia do Poder Marginal.
Creio que todos perceberam o foco crítico deste artigo. Prende-se, na verdade, à indecisão política federal (epicentro decisório insubstituível) quanto ao desencadeamento de ação dessa envergadura. Todavia, imaginar políticos “democratas” assumindo o ônus de um estado de defesa é como crer em Papai Noel... Ah, Papai Noel não existe, é ilusão; então ficaremos nós a chorar os policiais mortos e a ignorar os miseráveis não-bandidos a morrerem de fome, doença e tiro. Pois o combate aleatório é a tônica do momento, e nos parece imutável. Entra governo, sai governo, e a gangorra não pára de oscilar, tanto que é possível prever a futura disputa pela cadeira do Poder Executivo: contará com candidatos a endemoninhar quem combate sem assumir diretamente a omissão, em contraposição ao defensor do combate parcial, aleatório e inconseqüente, mas dissimulado em eficiente e eficaz quando acertam um pequeno alvo e o ampliam perante a opinião pública com bons discursos. Enfim, ouviremos novamente as falas ambíguas, e o majoritário voto favelado mais uma vez nos dará a resposta. Qual será?... Ora bem, o vencedor não emergirá de nenhuma favela e o perdedor (também do asfalto) não haverá de visitá-la para chorar a derrota; estará em algum endereço luxuoso afogando suas mágoas num uísque de primeiríssima... Porque, para os milhões de pés-de-chinelo eleitores tangíveis pelo fuzil dos traficantes-mores basta o discurso longínquo, o acerto financeiro e nada mais...

Um comentário:

José Ricardo disse...

Muitos policiais tombaram nesse combate contra o narcotráfico. Qual foi o resultado de tantas mortes de milicianos, os únicos que verdadeiramente se lançam de corpo e alma nessa empreitada?
Também sou favorável ao combate, desde que os facínoras fiquem presos, e que as ações dos policiais sejam respaldadas, seja por "estado de defesa", "de sítio", ou que for!
O que eu não agüento mais é ficar "enxugando gelo", colocando em risco minha vida e a dos meus companheiros para nada! Prendo hoje e, dois dias depois, o marginal já está nas ruas novamente, reassumindo as bocas-de-fumo e o domínio sobre a comunidade. Morrer pra isso eu não quero, e acho que que não compensa.
Como dizia um professor de técnica policial: "Seja quente ou seja frio! Se você for morno, eu te vomito!".