sábado, 15 de novembro de 2008

Academicismo 1

O Título V da Constituição Federal








Uma das características fundamentais do ser pensante é a capacidade de se comunicar. Vencidas as dificuldades dos símbolos e signos e democratizadas as comunicações, estas passaram ao centro de tudo que existe, num processo de interlocução que, no seu âmago, traduz invariavelmente a intenção de influenciar. Essa intenção faz-se presente em qualquer discurso oral ou escrito e em tudo que é tentativa de comunicação. Sem a intenção de influenciar, praticamente não há comunicação. E como esse fenômeno afeta um ser igualmente tomado por emoções, os meios utilizados para produzir reações esperadas são ilimitados: vão desde a sugestão pura e simples aos métodos mais ortodoxos de imposição de idéias pela coação, pela “lavagem cerebral”, por meio da tortura, e, por fim, pela eliminação dos racionalmente teimosos.
Num sistema de liberdade plena, a arte não é tão atingida por essa lógica cruel da propaganda e da contrapropaganda. O artista é um ser individualizado no seu máximo, embora exista a intertextualidade para explicar exemplos maravilhosos de adaptação de obras originais. Isto ocorre na literatura, mas se reflete nas artes em geral, com os discípulos admitindo a influência de seus mestres. Eis como se formam as “escolas”, incluindo-se a filosofia, que, embora reaja à idéia da influência, não nega a existência de correntes aglutinando mestres e discípulos. Claro que, neste parágrafo, cuidamos da criatividade num sistema de liberdade, esta, bem maior do artista e do cidadão comum. Sem liberdade, não há arte nem vida. Mas a liberdade não dispensa a manipulação das massas mediante métodos subliminares de convencimento que dispensam maiores comentários.
Seja o que seja, todos nós nos comunicamos sempre com a intenção de influenciar. Daí é que um texto às vezes indica a que veio já no seu título. O título é uma prévia do futuro, como também o comunicador, dependendo do seu grau de notoriedade ou poder, só por isso se impõe e a platéia ocupa seus lugares seguindo a velha tendência do “gado de rebanho”. Deste modo é que surgem os “idealistas” e os “líderes carismáticos” capazes de neutralizar multidões em passividade absoluta ou levá-las às revoluções e guerras de conquista. Eis, portanto, a “individualidade” do ser pensante: na maioria dos casos ele não pensa, não produz receitas, não as questiona, apenas absorve em conformismo as formulações que lhe vêm prontas e acabadas.
A digressão é para chegarmos ao Título V da CRFB: “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”. E permanecer refletindo sobre a intenção do legislador constituinte ou sobre as pressões que ocorreram para o absurdo título se impor na nova ordem constitucional. Ele diz tudo, pois o que dele se infere é que o cidadão e a sociedade são meros coadjuvantes de um sistema de segurança que existe para servir precipuamente ao Estado (Polícia do Estado) e secundariamente à sociedade. Numa alegoria, e considerando a gradação natural das ocorrências sociais, o título funciona como pirâmide equilibrada pelo pico. Ou seja, para conseguir tal proeza é necessário “forçar a barra”. Caso contrário, a pirâmide desabará.
É fácil perceber as “escoras”: os Conselhos da República e de Defesa Nacional e as exceções legais (restrições) representadas pelos Estados de Defesa e de Sítio, que deveriam emergir como possibilidades últimas, mas são as primeiras. Pois assim se desdobra o título em Capítulo I e Seções e Artigos seguintes. Conforme a lógica invertida são ainda “escoras” as Forças Armadas e a tal “garantia da lei e da ordem” (Capítulo II). Por fim (Capítulo III), surge a Segurança Pública, base da pirâmide a forçar o desequilíbrio, porque nela se insere a garantia maior: a tranqüilidade e o bem-estar dos cidadãos e da sociedade (a segurança pública entendida como o somatório globalístico das seguranças individual e comunitária).
Quando se fala em “defesa do estado”, depreende-se o quê?... Ora, só se pode depreender ser ele próprio se defendendo. Mas, de quê e de quem? Quais são as ameaças contra o Estado que poderíamos listar como possibilidades prementes? E quanto às “instituições democráticas”? Que será isto? Por acaso existem instituições “não-democráticas”? Essas instituições são as mesmas do período ditatorial? Os burocratas não seriam os mesmos, pelo menos boa parte deles? Ora bem, vivenciamos um “Estado Democrático de Direito”, como nos informa a Carta Magna – o nosso “Contrato Social”. Num regime assim, sem conflito social a nos assustar e com o predomínio do consenso, é plausível assegurar que as instituições estatais existam para prestar serviço ao povo ordeiro, e há de ser o melhor serviço. Não como está: a segurança pública firmada na CRFB como um direito do cidadão, mas cobrando-lhe responsabilidade simultânea, uma ambigüidade, pois não se sabe o que predomina, se o direito, se a responsabilidade...
Que seja o direito acompanhado da responsabilidade, sim! Mas, qual seria a contrapartida? A desconfiança?... Não seria mais justo situar o cidadão como o primeiro destinatário da segurança pública, relevando-o como ente de corpo e alma a ser precipuamente protegido, já que foi ele quem delegou ao Estado o seu poder representativo em troca da garantia de sua incolumidade física e do seu patrimônio? Não seria mais apropriado materializar a garantia do cidadão desde o Município (princípios do “dever” e da “responsabilidade”), dando-lhe suficiente autonomia para gerir em primeiro plano a segurança pública, e dele, do Município, cobrando maior empenho conforme suas possibilidades materiais, demais de apoiá-lo? Não seria mais legítimo situar o Estado-membro e a União como protetores do cidadão e da comunidade, deste modo interagindo com os Municípios num sistema integrado de defesa pública? Não seria mais adequado ao Estado Democrático de Direito ter a exceção legal e o uso da força como alternativa última e extrema? Não seria mais lógico se pensar em serviços policiais em vez de forças policiais, sobrelevando o “direito” do cidadão como regra e a “responsabilidade” como exceção?...
Ora, o título constitucional guarda em si uma espécie de ameaça latente do uso da força. Pois a CRFB sublinha o Estado (e suas “instituições democráticas”) como destinado à autodefesa, priorizando um sistema de forças armadas em detrimento de um sistema de serviços policiais voltados para a proteção dos cidadãos. Num regime ditatorial, vá! Mas num Estado Democrático de Direito, – grafado nesta ordem para que se entenda a democracia garantida pelo direito e seus sistemas de serviço e força (as instituições democráticas), – o cidadão é (ou deveria ser) o principal ator social; ou então não há como conceber esse sistema como real e útil ao povo. Afinal, democracia pressupõe governo do povo para o povo, e não um governo do Estado para o Estado e suas instituições, como sugere a Carta Magna!
Pode parecer irrelevante, mas como as palavras postas nas leis possuem inconfundível hierarquia, e é o meio de comunicação oficial e extra-oficial, devo repisar que o título V da CRFB está a sugerir que os burocratas ludibriaram o legislador constituinte. Isto na melhor hipótese, pois é possível, sim, ter havido pressão para consagrar tão abominável título constitucional, anacrônico e draconiano em todos os sentidos. Porque, sob o manto desse título, agrilhoaram a segurança pública em último lugar e seus organismos foram cristalizados em corporativismos doentios, deste modo impedindo quaisquer mudanças estruturais conforme as necessidades difusas da sociedade e de seus cidadãos.



É de se lamentar que cientistas sociais gastem tanta tinta e papel com sugestões legalmente impraticáveis, e não se esforcem no sentido de reescrever o título V e artigos afins da CRFB (o Inciso XXI do Art. 22, por exemplo), que determinam ainda hoje a estagnação do sistema de segurança pública (tudo como dantes...). Creio que não faltam brasileiros capazes de cumprir tal desiderato. Nesse caso, inclusive, pode-se-ia pensar em aglutinar tendências ideológicas, pois a todos, exceto aos extremistas, interessa redesenhar um sistema com flexibilidade capaz de promover a verdadeira paz social a partir de sua célula social mais importante: o cidadão. Sem mudar a CRFB, os discursos, mesmo que eruditos e convincentes, terão um só destino: o monturo das coisas inúteis.

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