sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Maldita Tradição!

O militarismo na PMERJ



"A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível."
(Albert Camus)



Dizem que a vida militar exige poucas idéias; eu afirmo que também exagera nas siglas, e, neste caso, trataremos de um emaranhado delas... Ora bem, em intertextualidade de mim mesmo, insisto no tema; não me cabe, todavia, avaliar o militarismo das demais Polícias Militares (PPMM) nem pretendo focar o modelo das Forças Armadas (FFAA). Prender-me-ei ao manu militari duma corporação sui generis (PMERJ), conseqüente da junção de duas instituições aparentemente semelhantes, mas intrinsecamente diferentes, por conta e risco da Fusão do Estado do Rio de Janeiro (RJ/PMRJ) com o Estado da Guanabara (GB/PMEG), esta última já traumatizada por graves rupturas quando da transferência da Capital Federal para Brasília (1960). Na ocasião, vários oficiais e praças optaram pela Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), porém com direito ao retorno caso não se adaptassem ao Planalto Central. Daí é que, em voltando, alguns dos inadaptados abocanharam a melhor fatia do poder interno (eram mais antigos), frustrando os oficiais que permaneceram no igualmente novato Estado da Guanabara. Esses últimos, de repente, tornaram ao fim da fila: a euforia transformou-se em frustração, isto no mínimo...
Já nesse péssimo ambiente interno emergiu, em 15/03/1975, a PMERJ, outro terremoto político a parturir uma geração de oficiais, – sem identidade nem tradição, – forcejando por cultuar história alheia em vez de inaugurar uma nova trajetória... Enfim, formou-se uma baderna de “azulões” e “joões-de-barro”, num clima organizacional caracterizado por acirradas disputas entre facções, em antiético vale-tudo capitaneado por ex-cadetes geralmente da mesma turma, todos unidos em busca do poder maior: o comando-geral. Parodiando o mestre Zuenir Ventura e sua “Cidade Partida”, há de se concluir que dela cuida, ou descuida, uma “Polícia Militar Estilhaçada”...
Negar o fato é tapar o sol com a peneira. Pois os conflituosos quadros de oficiais, com seus integrantes (PMDF, PMRJ, PMEG e PMERJ) embolados como num saco de gatos, fizeram florescer o espinhoso ambiente de relações hipócritas e de inimizades dissimuladas em biocos de cortesia e virtudes que atualmente predominam no trato entre pares, superiores e subordinados. Claro que manter o poder e fazê-lo funcionar num clima tão disparatado demanda mão firme, pulso forte, rigor excessivo e exigência da hierarquia e da disciplina como um fim, não apenas como um meio dentre os inúmeros paradigmas presentes no militarismo (“o excesso em tudo é um defeito”). Neste ponto, não posso deixar de sublinhar o significado da facção, escorando-me no historicista e cientista político Moisés I. Finley, em sua obra "Democracia Antiga e Moderna (Ed. Graw Ltda, 1988, RJ):

"(...) A facção é o maior mal e o perigo mais comum. Facção é a tradução convencional da palavra grega stasis, uma das mais extraordinárias que podem ser encontradas em qualquer língua. Sua raiz significa colocação, montagem, estatura, estação. Sua gama de significados políticos pode ser mais bem ilustrada apenas pela relação de definições dicionarizadas que pode ser encontrada: partido, partido formado com fins sediciosos, facção, sedição, discórdia, divisão, dissenção...”

Ocorre que esses antagonismos intramuros vêm desde muito tempo ignorando a violência e o crime extramuros, em especial a partir de 1982, ano em que aconteceram as primeiras eleições para governador pós-ditadura e a PMERJ passou a ser comandada por coronéis da corporação. Como se era de esperar, tomaram o poder interno os oficiais que retornaram de Brasília e se instalaram num “Quadro Especial” (QE), com um deles já antes ocupando a segunda posição de mando (Chefia do EM) enquanto a PMERJ era ainda comandada por oficiais do Exército Brasileiro (... -1982). Assim os “QE”, – com esse chefe do EM alçado por Brizola ao cargo de comandante-geral, cumulativamente com o de Secretário de Estado de Polícia Militar, – assim os “QE” passaram a se exercitar em todos os altos cargos da corporação.
Coincidentemente, o governante eleito adotou uma nebulosa política de direitos humanos e agrilhoou a polícia às suas idiossincrasias gauchescas; e o modelo militar da PMERJ permitiu ao então comandante-geral, primeiro PM a tomar assento na tão cobiçada cadeira, tornar a corporação inerme e inerte ante a criminalidade violenta, conforme denuncia o jornalista Carlos Amorim em sua obra “Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado” (Ed. Record, 1994, RJ):

"Os limites impostos à ação policial nos morros da cidade permitiram o enraizamento das quadrilhas (...). A paz no morro é sinônimo de estabilidade nos negócios. (...). Mas o respeito ao eleitor favelado - que decide eleições no Grande Rio - ajudou indiretamente na implantação das bases de operação do banditismo organizado. (...). Estava determinado a consolidar a base política que se apoiava enfaticamente nos setores pauperizados. Na eleição de 82, pesou o apoio da Federação das Favelas (FAFERJ) e da Federação das Associações de Moradores (FAMERJ). Mas o fato é: o crime organizado usou tudo isso para crescer. (...). O desenvolvimento do Comando Vermelho foi o subproduto de uma Administração que respeitou o cidadão".

É inegável o envolvimento do brizolismo com o CV, como se infere da supracitada obra, que o autor assegura ser fruto de doze anos de pesquisa e que não se trata de ficção (ibidem):

"Anunciou uma política de preservação dos direitos humanos, numa cidade onde os grupos de extermínio agem abertamente. Colocou na Secretaria de Justiça um ex-perseguido político e companheiro de partido, Vivaldo Barbosa. (...). Brizola chega a nomear um ex-preso político da Ilha Grande, José Carlos Tórtima, Diretor de Presídio. O crime organizado explorou com habilidade cada uma dessas demonstrações de civilidade do governo estadual".

Com um ex-preso político egresso da Ilha Grande dirigindo presídio, instituiu-se uma estranha relação entre dois lados que se deveriam antagonizar, como se pode observar noutro trecho (ibidem):

"Na Ilha Grande, diante de toda a imprensa, um acontecimento insólito: a autoridade pública é recebida por um dos Vermelhos, um dos novos xerifes da prisão, Rogério Lengruber, o Bagulhão. O representante do Comando Vermelho veste bermudas, camiseta e sandálias havaianas. Mete o dedo na cara do Secretário de justiça e comunica a ele que os presos estão cansados de ouvir o blábláblá do governo. Esperam medidas concretas e imediatas".

Eis o caldo político no qual a PMERJ, pela vez primeira comandada por “prata-da-casa”, viria a mimeticamente se adaptar. Claro que, a partir do fato de a cúpula da corporação afinar-se com o discurso do caudilho, internamente o cisma alastrou-se, boa hora para fazer valer a o militarismo no seu extremo. Pois é certo que ninguém queria perder o poder. Como dito, o poder interno estava ocupado por coronel PM que era o chefe do EM e fora nomeado comandante-geral, manobra inteligente do caudilho para não submeter novos nomes ao crivo do Exército Brasileiro, demais de transformar a Polícia Militar em Secretaria de Estado, assim como o fez com a Polícia Civil, extinguindo a Secretaria de Segurança Pública. Deste modo, abraçou e conduziu a cabresto curto as duas instituições, neutralizando-as.
É fácil imaginar o que ocorreu daí em diante. A cada quatro anos oscilaria a gangorra ora para a repressão, ora para a omissão. Em seguida ao caudilho (omissão), veio Moreira Franco (repressão); e retornou o caudilho (omissão); em seguida, assumiu Marcelo Alencar (repressão). Mais quatro anos e se iniciou a era Garotinho (Anthony e Rosinha – oito anos), que conseguiu a proeza de manter a garrafa meio cheia ou meio vazia: ora omissão, ora repressão, em insuportável ambigüidade. E, finalmente, assume Sérgio Cabral Filho, nitidamente favorável à repressão ao estilo Moreira Franco ou Marcelo Alencar. Esclarecendo que também sou contra a omissão, mesmo assim não posso negar que a PMERJ “dança conforme a música”, o que é ruim para a tropa.
Não se trata de criticar esse ou aquele dirigente político ou comandante-geral, mas apenas fixar a realidade de que os demais Estados-membros não enfrentaram nada semelhante. Daí a afirmação que faço de ser a PMERJ sui generis. Mas, para manter sob controle modelo tão incerto de comportamento operacional, nem é preciso dizer que os regulamentos militares representaram e ainda representam a “salvação da lavoura”: a tropa é tangida a ponta de lança para qualquer lado, como um rebanho destinado ao corte. Sim, o predomínio é o da “autoridade do ter”, tão bem denunciada por Erich Fromm em sua obra “Ter ou Ser?” (Livros Técnicos e Científicos Editora S. A. – Rio de Janeiro, 1987):

“(...). Até mesmo uma pessoa de medíocre inteligência e capacidade pode facilmente governar um Estado uma vez que esteja no poder (...). O método burocrático pode ser definido como aquele que administra os seres humanos como se fossem coisas (...). Os burocratas têm medo da responsabilidade pessoal e procuram refúgio atrás das regras; sua segurança e orgulho jazem em sua lealdade às normas, e não em sua lealdade às leis do sentimento humano (...). Desde que o ser humano seja reduzido a um número, os verdadeiros burocratas podem cometer atos de completa crueldade, não porque sejam levados pela crueldade de magnitude comparável com seus atos, mas devido a que não sentem atração humana alguma por aqueles que lhes estão sujeitos.”

Considerando-se que falamos do Estado do Rio de Janeiro e de uma capital que faz ressoar no mundo seus acontecimentos, marcando sobremodo o sentimento do turista, inclusive do turista pátrio, creio que interessa a todos os brasileiros, em especial aos que lidam com a segurança pública, conhecer parte desse drama por que passa o aparelho de segurança pública no RJ. Não focalizo aqui a PCERJ porque há muitos policiais civis habilitados a desenvolver estudos críticos da evolução da coirmã ante os mesmo problemas descritos. A questão crucial é saber se esse diagnóstico deve ser capitaneado pelos próprios policiais ou por equipes interdisciplinares (de dentro e de fora), para buscar uma solução que elimine os conflitos conseqüentes dessa barafunda político-institucional que se instalou particularmente na PMERJ.
Não se trata de alarmismo, mas todos hão de reconhecer que o acirramento da violência no Rio de Janeiro decorre desses e de muitos outros fatores que precisam ser tratados com seriedade. Porque hoje só se ouvem discursos prosélitos, anúncios de rigorosa apuração de falhas policiais, demissão de centenas deles sempre acompanhada do indefectível anúncio do “aumento de efetivo”, da compra de viaturas e armas, enfim, do investimento em “coisas”, dentre elas o ser humano arrepanhado e tornado PM em seu desespero pela falta de mercado de trabalho, evidentemente que todos alegando “vocação”. E são excluídos em massa, e morrem às pencas nos embates aleatórios contra traficantes instalados nas favelas como autênticos guerrilheiros urbanos. A indagação que fica é a seguinte: como isto terminará?...
Não sei. Mas sei que o manu militari na PMERJ vem assim funcionando, e, aos olhos dos que estão de fora, os graves conflitos intramuros não emergem como realidade dramática. Parece que tudo está “sob controle”... Para as demais Polícias Militares, a nossa situação serve de exemplo a ser evitado. Sei que turbulência igual não atingiu nenhuma delas. Por isso, muitas coirmãs evoluíram e justificam suas existências com bons serviços prestados ao povo brasileiro. Já a PMERJ não pode afirmar o mesmo. Pode, sim, vangloriar-se de ser a que mais expurga o “mau policial”, a que mais mata e a que mais morre, olvidando o fato de que ou são “maus policiais” porque foram mal escolhidos ou são “maus policiais” porque o militarismo praticado pela PMERJ os molda erradamente.
A realidade se resume numa dissensão interna sobremodo perigosa para a sociedade: os oficiais gerados pela nova PMERJ não assumem sua teratogênese no sentido de extirpá-la do organismo corporativo. E se entregam à maldita tradição! Pois o militarismo aqui exercitado está longe de ser espelhado nos bons valores castrenses. Aqui é um jardim de lírios dissimulando a lama fedegosa que está por baixo. Aqui está como insinua o provérbio alemão: “As árvores impedem de ver a floresta”. Aqui os de fora só vêem as árvores frondosas, reduzidas ao desmedido militarismo a ocultar entre as ramagens verdejantes os seus frutos podres...

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