sexta-feira, 5 de setembro de 2008

A eternidade do crime

Reflexão Primeira


Dentre os preciosos ensinamentos do jurista espanhol Manuel Lopez-Rey sobre a criminalidade, resultantes de exaustiva pesquisa por ele conduzida em muitos países sob os auspícios da ONU, releva considerar que o crime é inerente ao ser humano, não se incluindo como capazes de praticá-lo, por óbvio, os animais, embora ainda existam bestas-feras no ecossistema a nos assustar. Mas estas limitam sua agressividade à luta pela sobrevivência. Não vão além da necessidade instintiva. Contudo, e em se tratando do “animal racional”, não seria demais assegurar que sua tendência à agressividade sem justificativa predomina a ponto de se poder afirmar que o crime é uma espécie de sentimento a dominar a raça humana, e nenhum sistema punitivo formal ou informal conseguiu, desde os primórdios dos tempos até hoje, eliminar da convivência social a sua prática, com destaque para os crimes de sangue, muitos dos quais sem motivação ou com motivação torpe. Há muitos fatores condicionantes da criminalidade, não se tratando, porém, de causalidades a lhe resultar (é temerário, em se tratando de crime, estabelecer relações generalizadas de causa-efeito). Seja como for, os crimes ocorrem ao largo das ameaças de punição, por mais extremas que o sejam. Por que é assim?
Aceitar a realidade de que o ser humano guarda em si uma tendência à violência e ao crime, tal como é propenso ao amor, parece meio brutal e surrealista. Mas os exemplos concretos da crueldade humana ao longo da História da Humanidade não permitem nenhuma dúvida de que esse mau sentimento se sobrepõe sem pejo ao respeito à vida, nosso bem maior. Nada vale mais do que a vida e o direito de vivê-la em plenitude de felicidade. Quando os “racionais” decidiram ou foram impelidos por circunstâncias várias a viver em coletividade, mais ainda se preocuparam em criar instrumentos garantidores da segurança individual e comunitária, resumida como garantia contra antivalores e riscos à integridade física e ao patrimônio. Mas a vida em sociedade, em muitos lugares do mundo, só tem servido para demonstrar a prevalência da insensatez humana.
Lopez-Rey, em sua profunda sapiência, conclui ser o crime algo inevitável. Pois nenhuma sociedade logrou extirpá-lo do seu meio. As instituições fomentadoras da boa conduta humana (o lar, a escola, as religiões etc.) não conseguiram mudar atitudes e comportamentos individuais e coletivos no sentido evitar a ocorrência de crimes. Em muitas ocasiões e lugares, algumas instituições até contribuíram para ampliar os malefícios da violência e do crime em nome de dogmas e ideologias. Enfim, todos os modelos de controle da violência e do crime fracassaram; os instrumentos estatais destinados a vigiar e punir criminosos nasceram predestinados à falência. E o que temos hoje, em cada sociedade, é o resultado do fracasso: a macrocriminalidade globalizada, sutil ou feroz, sem temor de punições, algumas até impressionantes, como o “castigo-espetáculo” das torturas e execuções do passado, ou como as ações espalhafatosas que se vêem atualmente nas telinhas da tevê. Tudo inócuo.

Segundo o experimentado autor, não adianta culpar as transformações e as desigualdades sociais nem quaisquer outros desequilíbrios presentes na vida em coletividade. Para ele, o controle da criminalidade é fenômeno sociopolítico, e assim deve ser tratado, ou seja, cabe à representatividade política rotular os crimes e as respectivas punições, mas não num processo estático e unívoco. Antes de tudo, a determinação do que seja crime ou contravenção deve ser uma exigência dinâmica da sociedade, e ao político tão-somente caberá ouvi-la para apresentar os projetos de lei criminalizando novas condutas e descriminalizando algumas outras superadas pela mudança de atitudes e comportamentos sociais e por sua aceitação como normais. Essa dinâmica é importante, pois coloca a sociedade como real mandatária das ações estatais, o que implica, todavia, ser o corpo social bastante participativo e menos clientelista. Eis aí o ponto nevrálgico do problema, em especial num país como o nosso, caracterizado pelo excesso de intervencionismo estatal e pela contrapartida do clientelismo de uma sociedade vivendo em exagerado conformismo. Num modelo como esse, – no nosso caso é extremado, – a sociedade sofre com o descaso da maquinaria governamental, que se torna monstruosa, um Leviatã a serviço da elite que luta pelo poder apenas para dele desfrutar, não fazendo diferença se as ideologias dos grupos que o disputam são diferenciadas (esquerda, centro ou direita). Todos usam a mesma máquina estatal e abusam do proselitismo a engrupir o “rebanho social”. Ambiente tão propício à proliferação de crimes não existe, pois muitos deles são praticados sob o manto do poder estatal, ficando o cidadão como um ente de segunda categoria, sem piso nem teto, sem garantia de nada, nem da vida.
Nesse modelo intervencionista predomina a preocupação com a sobrevivência das instituições, que se dizem democráticas, mas não o são. O excesso de poder e a garantia de impunidade dos burocratas, cujas irresponsabilidades são muitas vezes transferidas para o Estado, permitem os abusos contra os cidadãos. Nesse ambiente de suposta democracia, os crimes de fraude e sangue encontram o meio de cultura ideal à sua proliferação multifacetada e complexa. Novas modalidades de crime surgem quase que diariamente, tornando difícil, para não se dizer impossível, a ação punitiva contra os criminosos, muitos deles jamais alcançados, incluindo-se os infiltrados na própria maquinaria governamental a praticar impunemente seus delitos individuais e associados. Creio que nem precisa exemplificar, bastando citar as fraudes milionárias na saúde, na previdência social, no sistema financeiro e demais maracutaias a dilapidar o erário público, ações criminosas ininteligíveis ao cidadão comum. E nem precisa falar que os resultados alcançados pelas ações policiais, ministeriais e judiciais contra esses criminosos de “colarinho branco” representam um estupendo nada em relação ao todo ainda desconhecido.
Sobra, então, o lugar-comum do crime, a sua parte mais feiosa e brutal, a criminalidade pé-de-chinelo, esta sim, visível e rudimentar. E embora simploriamente organizada, interessa à elite designar em estardalhaço ser esta criminalidade esfarrapada o famigerado “crime organizado”. Numa alegoria, poder-se-ia imaginar uma equipe de engenheiros, arquitetos, físicos e outros baluartes projetando um complexo de edifícios e orientando a distância sua execução por milhares de peões eventuais, cada qual no seu trabalho mecânico, sem a mínima noção do todo que emergirá do seu esforço, e depois se dizer que esse trabalho de ponta é o mais importante. Ora, a organização real está no topo! A base é apenas massa de manobra. Descartável. E assim acontece com o crime na base da tessitura social: é aleatório, por mais que afirmem ser ele “organizado”.

A realidade é a de que o crime hodierno é multinacional, empresarial e invisível no topo e no meio. É possível supor, em virtude da movimentação de trilhões de dólares/ano só no tráfico de drogas e de armas, que essa macrocriminalidade nem possua líderes marcantes, mas apenas lideranças de facções mafiosas que gravitam no submundo desde muitos anos e atualmente contam com tecnologia sofisticada e atuam “on line” com a mesma desenvoltura do mundo oficializado, servindo-se deste sem muito esforço ou gasto. Com efeito, não existem líderes, existem negócios, e as engrenagens dessa maquinaria transnacional do crime estão rodando azeitadas em todas as camadas das sociedades ocidentais e orientais. Não há mais distinção entre essas sociedades em se tratando de conexões criminosas que movimentam trilhões de dólares ao redor do mundo, até chegar à ponta da linha... E cá estamos nós...
Sim, cá estamos nós a discutir frações locais, como se isto fosse “salvar a pátria”. Cá estamos nós achando que Fernandinho Beira-Mar é um ilustre mandatário do crime organizado. Com efeito, precisamos de um vilão a escudar o resto que lhe está acima. Precisamos de “caveirões” e fuzis de guerra para distribuir chumbo nos pés-de-chinelo das favelas; precisamos assistir na telinha da tevê, ler nos jornais e ouvir nas rádios que mais um grupelho de traficantes favelados foi preso ou morto pela polícia. Dá uma sensação de grandeza, afaga egos, surgem heróis-policiais, porém logo transformados em vilões quando falham na ação seguinte. Para a imprensa que precisa vender notícia aos conformados, tem de haver ação. Daí as pressões midiáticas indicando o caminho do combate, mas deixando o espaço aberto aos críticos de plantão para gerar a necessária polêmica. Posto que, sem opiniões divididas, sem trincheiras antagônicas, não há o que noticiar. Tudo se torna morno ou frio e desinteressa ao público consumidor, da base da pirâmide social, que faz jorrar diariamente os seus míseros tostões sem perceber que, somados a outros, está amontoando milhões nas algibeiras do topo capitalista.

Nesse mundo pós-moderno, somos tangidos pela mass media. Recebemos diariamente as notícias fracionadas e necessitamos dela para não sairmos da roda das discussões em botequins e esquinas. Ah, a reflexão coletiva está despedaçada e as mentiras tornam-se verdades em segundos! Os políticos mentem descaradamente em suas campanhas; prometem absurdos e conseguem a proeza de criticar aquilo que não fizeram como donos do poder. É cara-de-pau demais! Cá pra nós, não há exceção, isto é regra geral. E nós, bobos, ainda somos obrigados a votar, se não... Ah!... Ai de quem faltar e não justificar presença no piquete eleitoral! E que alívio sentimos após cumprir com a obrigação da urna! Saímos rebolando e nos sentindo “cidadãos livres”. E anunciamos a importância do voto sem nem mesmo saber em quem votamos, ou votando a cabresto do temor da morte: eis o “voto comunitário”!...
Digressões à parte, devemos reconhecer, não sem agonia, que a solução para a criminalidade aqui e algures está, no mínimo, em Brasília, e na criação de um Sistema Nacional de Segurança Pública (nem se deve falar em reformulação, porque inexiste um sistema que mereça a designação). Para tanto, é imperativo diagnosticar o problema a enfrentar e os subsistemas que existem com este fim, a começar por definir o papel de cada um, em especial das Forças Armadas e mais especificamente do Exército Brasileiro. Esse diagnóstico deve ser profundo e buscar as motivações que determinaram a distribuição do poder estatal na segurança pública, tendo em conta que não devem ser ignoradas as situações mais graves de segurança interna e de segurança externa no contexto da segurança nacional. Enfim, é indispensável abandonar os preconceitos ideológicos e semânticos e tratar de uma Doutrina que atenda aos interesses de uma nação que vivencia um Estado Democrático de Direito e não pretende outra coisa que progredir sob a égide da democracia plena. Hoje, tal anseio está longe de ser real. É apenas virtual.
A sociedade brasileira vivencia um regime de desconfiança. Isto, sem dúvida, é um óbice político avassalador, cujo marco poderia ser o Estado Novo, que nos deixou como herança uma classe política tão deturpada em valores que quase que abraça por aqui um comunismo que não engana ninguém, só existe como ilusão de ótica a sustentar uma esquerda igualzinha à direita. Sim todos querem o mesmo: benefícios pessoais. O regime militar aprofundou a cultura da desconfiança e até hoje há resíduos desse período na legislação pátria e na prática de absurdos. A Carta Magna foi promulgada como “constituição cidadã”, mas de “cidadã” nada tem, é colcha de retalhos, um rol volumoso de ajustes de interesses mui distantes da realidade brasileira e do Estado Democrático de Direito que propõe no seu início. A representatividade política mantém-se fiel ao coronelismo de direita e de “centro-conveniência”, e as esquerdas deitam e rolam lambuzadas no erário público, como quem nunca comeu melado, perdoadas por uma imprensa que por muitíssimo menos derrubou Fernando Collor. Este é o quadro atual em que prolifera a criminalidade no país, com ministros grampeando ministros e uma disseminação de futricarias jamais imaginada. Os bandidos do topo e da base morrem de rir. E nós, brasileiros, discutimos abobrinhas fracionadas, típicas do pós-modernismo que nasceu doente. Estamos, assim, na moda, enquanto os crimes de fraude e de sangue nos exaurem a mais e mais.
Eis o que poderia ser o frontispício de um diagnóstico com o fim de instituir uma estrutura nacional de segurança em todos os seus patamares, porém começando do zero, literalmente do zero, posto que hoje a Carta Magna inicia o seu modelo com o pomposo título “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, e daí pra frente surge um emaranhado de ambigüidades impraticáveis, tal é a burocracia político-institucional desdobrada em “Conselho da República” e “Conselho de Defesa nacional”, que até se reunirem, deliberarem e permitirem alguma ação, em razão de situação emergencial, o desastre já terá ocorrido. E a solução deliberada há de ser em tempo urgente, como se tudo fosse ficção romanceada. Nem romance, talvez conto. Nem conto, talvez crônica. Nem crônica, talvez um poema em quatro versos e olhe lá. Depois de amarrar os estados de exceção legal (Estado de Defesa e Estado de Sítio), emerge uma “garantia da lei e da ordem” tão imprecisa que vem dando nó górdio nos chefes militares e produzindo leis complementares, aparentemente inconstitucionais, que falam em preparo e emprego das Forças Armadas na “garantia da lei e da ordem”, sem ninguém assumir que essa “ordem” só pode ser substitutiva da “ordem interna”, cuja garantia é a “Segurança Interna”. Mas esta se tornou um palavrão perigoso de se mencionar, embora a desordem pública (perturbação da ordem pública) preceda a desordem interna (grave perturbação da ordem), ficando a primeira a cargo dos organismos de segurança pública dos estados e federais e a segunda indo além desses meios estaduais e federais de segurança pública, impondo, assim, a participação direta das Forças Armadas no comando das ações para a “garantia da lei e da ordem”. Claro que da ordem interna. Nesta situação, pode haver a necessidade de ações operativas imediatas, e aqui jaz uma indagação como lápide tumular: os tais Conselhos da República e de Defesa reunir-se-ão e deliberarão a tempo, ou as FFAA entrarão em ação atropelando a Carta Magna? Ganha um doce quem acertar...
Ora bem, reconheço que é pessimismo em demasia... Será?... Afinal, em que patamar de gravidade anda a criminalidade no Brasil? Seria uma situação, ainda, de mera perturbação da ordem pública, ou já estaríamos em alguns lugares enfrentando uma grave perturbação da ordem pública? E os movimentos baderneiros dos “sem-isso” e “sem-aquilo”? E os escândalos institucionais? Será que o Presidente da República seria capaz de reunir esses colegiados para avaliar a situação de banditismo urbano e rural a perturbar a ordem interna? Assumiria ele tal fracasso governamental e conseqüentemente político? Será que alguém de alto talante da República seria capaz de provocar tal crise institucional?... Bem, se se considerar o fato isolado da Raposa da Serra do Sol, estamos literalmente “pagando pra ver”!...
O pessimismo traçado objetiva alcançar o otimismo. Pois não interessa aos brasileiros nenhum regime fechado, nem de direita nem de esquerda. Interessa-nos a democracia, e esta somente será alcançada se o Estado Democrático de Direito for garantido pela sociedade e pelas instituições estatais. Portanto, não é demais admitir que o assunto mereça prioridade e que urge a necessidade de se traçar um modelo estrutural e conjuntural que atenda a esses objetivos sem a necessidade de colocar sobre os ombros do Presidente da República toda a responsabilidade, dos pequenos aos grandes problemas. Sob o império de boas leis, e de uma doutrina clara e precisa, a segurança pública pode e deve ser praticada em novos moldes. E também a segurança interna deve ser considerada sem paranóias. Que se danem as malditas tradições corporativas! Que se afaste o medo! Mas que a criminalidade seja tratada como problema gravíssimo e de impossível erradicação. E que, pelo menos, os brasileiros consigam torná-la tolerável! Se não, em breve estaremos vivenciando a eternidade do crime.

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