segunda-feira, 3 de abril de 2017

AFINAL, QUEM FOI WILLIAM DA SILVA LIMA – “O PROFESSOR”?

E quem é Cesar Benjamin, secretário municipal do Rio que se insurgiu contra a PMERJ antes de a balística confirmar quem matou a adolescentes na escola municipal.








Quem da geração policial recente, – ou da sociedade jovem, – conhece a história do Comando Vermelho e seus conluios com algumas facções políticas de esquerda? É certo misturar ideologias políticas, tanto faz se de direita ou de esquerda, com uma criminalidade protagonizada por facínoras contumazes? Afinal, os fins justificam todos os meios, até os mais escusos?... Talvez poucas gentes saibam que esta excrescência ocorreu no RJ. Demais disso, o tempo passou e os acontecimentos ontem veiculados embrulharam o peixe no dia seguinte levando-os ao esquecimento, o que implica a necessidade de relembrá-los... E como na vida tudo é contexto, – nem tudo é jornal imediatista e fragmentado (ao contrário, os acontecimentos são sistêmicos, mantendo uma relação permanente de causa e efeito), e como eu me preocupo com a questão da criminalidade no ambiente social do RJ, lar dos meus entes queridos, – como na vida tudo é contexto eu devo expor o polêmico tema às gerações de agora e às vindouras num mínimo de minúcia que se possa comprovar. É o que venho fazendo nos últimos dias e não hesitarei em perseverar, pois sei que enquanto alguns rechaçarão o meu esforço por preconceito ou preguiça, outros refletirão seriamente e poderão aprofundar o estudo do crime organizado no RJ com o foco na sua histórica promiscuidade com importantes segmentos do estado e da sociedade. Esperando, portanto, que o futuro seja mais sadio, vamos prosseguir na nossa trilha cheia de espinhos e pedras e nenhuma flor...



Na sequência do raciocínio que venho desenvolvendo sobre a violência no RJ, devo agora sublinhar William da Silva Lima, prócer do CV, um dos personagens daquele discurso em tom de cobrança feito na Ilha Grande aos representantes do PDT que com os líderes do CV se reuniram para tratar de inconfessos interesses comuns... Eis o homem do discurso na Ilha Grande a que o jornalista e escritor Carlos Amorim se reporta nos termos grafados nos capítulos anteriores deste retrospecto sobre a violência no RJ. Afinal, sobre esse personagem há muito que contar a partir dele próprio, focalizando primeiramente uma declaração que ele deu a um policial civil (Detetive João Pereira Neto, da antiga Divisão Antissequestro – DAS – da PCERJ), resgatada por Carlos Amorim, e que poderia ser designada sem erro como profecia


William comenta que alguns intelectuais pretendiam usar o Comando Vermelho na luta política. (...). ‘Alguns deles, pequeno-burgueses, pretendiam usar nossas comunidades e nossa organização com finalidades políticas. À medida que não deixamos usar, comprovamos, sem soberba, que conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu, o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente elas serão três milhões de adolescentes que matarão vocês (a polícia) nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas? Quantos BANGU I, II, III, IV, V... terão que ser construídos para encarcerar essa massa?...’


Há muitas referências ao prócer do CV na obra de Carlos Amorim, mas interessa fechar sobre ele o zoom a partir do título do seu badalado livro Quatrocentos Contra Um – Uma História do Comando Vermelho. O título não surgiu ao acaso, trata-se de homenagem ao facínora tornado ícone do CV: Zé Bigode (José Jorge Saldanha). Um dos fundadores do CV, Zé Bigode foi morto em 03 de abril de 1981 durante intenso tiroteio que sustentou contra 400 policiais civis e militares na Ilha do Governador. O episódio inspirador do título do livro de William da Silva Lima tornou-se filme que retrata mais ou menos como se deu a aproximação e o contágio de presos políticos e bandidos comuns no Instituto Penal Cândido Mendes (IPCM), na Ilha Grande. Enfim, o livro em foco representa uma incrível badalação do Comando Vermelho apoiada pela sociedade, por suas representatividades políticas e por ONGs sustentadas pelo erário público.

As imagens do confronto que pôs fim ao bandido Zé Bigode são impressionantes e merecem destaque para inspirar esta reflexão:

É domínio público que o facínora Zé Bigode possuía vasta folha penal, ressaltando-se que sua especialidade era assalto a banco, constando pelo menos doze em sua carreira de crimes. Ele estava homiziado no Conjunto dos Bancários, na Ilha do Governador, exatamente por ser um dos apartamentos local de reunião dos quadrilheiros e de guarda do material bélico que eles usavam nos assaltos. Apanhado de surpresa, Zé Bigode fez uso do arsenal por quase um dia e uma noite, até ser abatido pelo BPOPE, não sem antes ferir vários policiais, alguns mortalmente.

Este era o ídolo de William da Silva Lima, autor do livro 400 contra Um – Uma História do Comando Vermelho, que mereceu glamour típico de grandes escritores, só lhe faltando dar autógrafo em Bienal neste país que mais parece a “República dos Bruzundangas”.

A militância de William da Silva Lima no crime e na política realmente lhe empresta o direito à fama, na qual muitas gentes importantes (ainda hoje) pegaram carona. E talvez por isso algumas dessas gentes sejam ainda hoje importantes, menos o bandido, claro, que sempre se ferrou e assim permanecerá até queimar no inferno.

Como antes anunciei, e para dar consistência à história, repiso alguns trechos do livro de Carlos Amorim (Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado):

Sobre isso há um depoimento inquestionável: o primeiro e mais importante líder do Comando Vermelho, William da Silva Lima o Professor , diz que leu muitos livros na cadeia. Como nessa história todo mundo escreveu memórias, William não ia ficar de fora. O fundador do Comando Vermelho publicou QUATROCENTOS CONTRA UM UMA HISTÓRIA DO COMANDO VERMELHO, pela Editora Vozes.

Carlos Amorim reporta-se a alguns trechos do livro de William da Silva Lima: 


(...). Quando os presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo, deixaram na cadeia presos comuns politizados, questionadores das causas de delinquência e conhecedores dos ideais do socialismo. Essas pessoas, por sua vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suas informações adiante (...). Na década de 60 ainda se encontrava presos assim, que passavam de mão em mão, entre si, artigos e livros que falavam de revolução (...). O entrosamento já era grande, e 1968 batia às portas. (...) Repercutiam fortemente na prisão os movimentos de massa contra a ditadura, e chegavam notícias da preparação da luta armada. Agora, Che Guevara e Régis Debray eram lidos. Não tardaria contatos com grupos guerrilheiros em vias de criação.


Palavras de Carlos Amorim:


 (...) O livro de William da silva Lima foi lançado no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no dia 05 de abril de 1991, durante seminário sobre criminalidade dirigido pelo Instituto de Estudos de Religião, de orientação católica. O texto final foi copidescado por César Queiroz Benjamim, um ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que trabalhou sobre um original de mais de quatrocentas páginas.


Nota-se a perplexidade de Carlos Amorim diante das constatações que fez em sua pesquisa de doze anos, o que torna sua obra a única no gênero. Ele ainda afirma sobre o livro do prócer do CV, prefaciado pelo cientista social e filósofo Rubem César Fernandes, presidente da ONG VIVA RIO:


As palavras do Professor dão bem a ideia do quanto ele se desenvolveu nos contatos que manteve na cadeia. Dizem que, ao contrário da maioria dos militantes da esquerda, ele leu O CAPITAL – conhecimento que ainda hoje falta a muito comunista de carreira. (...) Duas semanas após o lançamento, no dia 19 de abril, o fundador do Comando Vermelho, com autorização do DESIPE, manteve um encontro com jornalistas estrangeiros no Hospital Penitenciário. Esta foi a segunda vez na história do sistema penal brasileiro que um preso comum deu entrevista coletiva à imprensa. Na noite de autógrafos na ABI, quem assinava os livros era a mulher dele, Simone Barros Corrêa Menezes. (...) William da Silva Lima, um pernambucano de cinquenta anos, se considera um guerrilheiro, (...) Hoje ele está preso em BANGU I. (...) Na Ilha Grande, diante de toda a imprensa, um acontecimento insólito: a autoridade pública é recebida por um dos Vermelhos, um dos novos xerifes da prisão, Rogério Lemgruber, o Bagulhão. O representante do Comando Vermelho veste bermudas, camisetas e sandálias havaianas. Mete o dedo na cara do Secretário de Justiça e comunica a ele que os presos estão cansados de ouvir o blábláblá do governo... Esperam medidas concretas e imediatas. A visita ao "Caldeirão do Diabo" é cheia de incidentes. Os presos desfiam um rosário de críticas e reivindicações. William da Silva Lima faz um discurso de vinte minutos, interrompendo o promotor e deputado estadual Leôncio Aguiar de Vasconcelos, que acompanhava o secretário de Justiça. O Professor é aplaudido em delírio pelos presos. A coisa chega a ficar tão tensa que o diretor do presídio cochicha no ouvido de Vivaldo Barbosa uma advertência: – Se isso continuar assim, vamos acabar como reféns.

Lembrando que foi no ano de 1982 que ocorreu o inusitado encontro no Presídio da Ilha Grande, creio ser a síntese acima bastante para demonstrar a importância que deram ao bandido comum tornado “político” por um sistema de interesses da esquerda nacional, curiosamente por culpa da direita, que juntou bandidos com presos políticos numa só caldeirada. Por outro lado, se é que o texto do livro do “Professor” realmente saiu de sua mente à caneta que o escreveu, trata-se de importante registro histórico. Mas, se não saiu, ou se somente uma parte a ele pertence, vale especular se o livro foi cláusula de acordo entre sem-vergonhas da política e bandidos do CV. De um modo ou de outro, o livro é poderoso carimbo autenticador do conluio do PDT com o CV, envolvendo ainda outras personalidades cooptadas, algumas engolindo ingenuamente a isca e outras, por óbvio, em troco de fama, dinheiro e votos. Contudo, como vale o que está escrito e assinado, fica aqui ajustado que houve o conluio para a conquista eleitoral e houve o pagamento posterior com a inação da polícia contra o CV, este que prosperou como nunca, aquecendo o caldeirão da violência até sua explosão em chacinas perpetradas por policiais revoltados ou desviados para o crime em função da mesma anomia beneficiadora do CV.

Vê-se, portanto, que as chacinas nada mais representam que a luta do roto contra o esfarrapado, e as retaliações consequentes aumentaram ainda mais a fama dos que mereciam, na verdade, o demérito por suas más ações. Eu diria que houve um crime perfeito por parte dos ocupantes do sistema situacional composto por burocratas permanentes e políticos eventuais tentando a eternidade do poder. Não foi outra coisa, bastando para a conclusão de que mais uma vez a elite usou a massa e depois a descartou de muitas formas, ou pondo-a em conflitos e confrontos, ou destruindo-a em “castigos-espetáculos” como forma de ampliar a fama punindo supostos protagonistas de chacinas, espetáculo à parte resultante da explosão da panela de pressão social fabricada pelo sistema situacional. E pouco importa se da ralé policial tenham sido erradamente escolhidos os que foram levados aos grilhões, à desonra e à morte, essa turma só tem direito ao vai-volta, não tem voz ativa, é tudo rebanho enfileirado para ser abatido. No caso dos PMs, as fileiras são mais simples, eles são foucaultianos “corpos dóceis”; os demais, civis, não passam de massa de manobra por meio de dogmas e ideologias plantadas através do culto à personalidade e de outros meios de propaganda de massa que dispensam maiores considerações, todos sabem como funciona. Pior é que, mesmo sabendo, se sujeitam!...

Feita a digressão, tornemos ao foco: William da Silva Lima, cuja última prisão, salvo algum reparo na informação por mim recebida, foi típica de bandido decaído: um frustrado assalto a ônibus. Quem diria que o mais inteligente e famoso prócer do CV, assaltante de bancos e sequestrador de primeira linha, mente elevada do CV, cairia em esparrela tão insignificante?... Isto bem demonstra que no mundo do crime o que importa é o poder de retaliação, ficando o romantismo para trás. Vale quem manda mais no atacado do narcotráfico, esquema diferente dos velhos tempos dos assaltos audazes.

Bem, “O Professor” foi superado... Porque hoje o traficante há de ser inteligente e capaz de atender às exigências do mercado de drogas, em especial às dos tubarões do tráfico, que não estão nas favelas, mas nas coberturas de luxo daqui e de outros países. São eles que determinam quem mandará na favela. São eles que traçam o destino dos traficantes-mores, que só são mores porque cumprem com primor as exigências capitalistas do asfalto. E Como somente estes conhecem a fonte do ouro branco e marrom, toda a quadrilha favelada cai a seus pés em submissão. E os que não se submetem, porque não entendem como funciona o jogo pesado do tráfico, simplesmente morrem crivados de bala ou dentro de pneus incendiados, sobrando somente fuligem para contar a história. E como muitos desses incinerados nunca foram registrados ao nascer, e por isso inexistiram no mundo, vão ao além-túmulo sem direito a nenhuma contagem oficial ou extraoficial...

Vamos então ao livro de William da Silva Lima, a começar pelo prefácio de Rubem César Fernandes:

PREFÁCIO

Rubem César Fernandes


A edição deste livro foi tarefa arriscada. Não queríamos fazer a apologia do crime, é evidente, e muito menos da sua organização. Não pretendíamos contribuir para o charme dos bandidos. Foi-se o tempo para esse tipo de inocência. Mas tampouco queríamos nos deixar possuir pelo furor acusatório que tem prevalecido nos meios de comunicação. A reação enfurecida, com as propostas de pena de morte, os esquadrões, as polícias privadas, as invasões armadas dos bairros populares, a imagem diabolizante do ‘bandido padrão’, tudo isso obscurece o problema. A reação enfurecida não é solução, é parte do problema.

O Instituto de Estudos da Religião (ISER) decidiu há alguns anos interessar-se positivamente por esse mundo da marginalidade. Partimos da preocupação pelos direitos humanos, herdada das lutas contra a repressão política nos anos de ditadura, e chegamos a uma nova percepção, mais própria aos dias atuais. A democracia não será confiável enquanto o comum é mais fundamental que o preso político. O desafio maior está nos direitos humanos para as pessoas comuns. O que se nota, no entanto, é a deterioração das relações do sistema penal com a maioria pobre da população e o crescimento das margens desviantes sobre as estruturas normativas. Não pretendemos estar de posso das soluções, mas estamos convencidos de que este é o problema a ser atacado. A organização do crime, de um lado, e as reações enfurecidas, de outro, acirram os ânimos da polarização. Colocam-nos na lógica do apartheid. É contra essa tendência, estranha à cultura brasileira, que situamos o trabalho do ISER, dentro do qual este livro se insere. Buscamos espaços de troca e de comunicação entre a norma e o desvio, na esperança nem sempre vã de que do diálogo, como se diz, nasça a luz. As artes e a literatura são dimensões privilegiadas para esse tipo de exercício.

Que personagem, então, é este que compõe a autoria e o objeto deste livro? Um tipo duro, com certeza, mas curiosamente pouco afeto a bravatas. É como se não precisasse delas. Tampouco faz o gênero messiânico de um lampião, nem passa a imagem de vítima inocente, alvo de uma sorte infeliz ou de um destino maior. Não nasceu tão pobre assim. Não se explica e, o que é mais grave, não se dá a julgamento. Por isso é duro, mas não à maneira de alguém que pretenda estar acima de tudo e de todos. Ao contrário. Faz questão de mostrar que conhece as suas limitações. ‘Não sei quando nasci, nem quando morri’, diz ele ao iniciar sua história.

O público acostumado ao romantismo do bandido-herói recebe uma surpresa. São vinte e tantos anos de submundo penal, relatados em poucas palavras, quase sem adjetivos. Os fatos falam por si. A narrativa se desenvolve retilínea, contida pelas rédeas curtas de uma consciência que não se entrega. Esta vida é dura demais para o romance, o autor-personagem não se permite deslizar para o sentimentalismo.

Além dos fatos, há os valores: o respeito próprio, a lealdade para com os companheiros, a denúncia das incongruências da ordem penal, o sentido da organização, a ação bem pensada. Segundo o autor, a criação do Comando Vermelho representou sobretudo uma mudança de atitude e de comportamento. Deixar de ser barata tonta e afirmar-se como sujeito, senhor de direitos e poderes, mesmo no interior das execráveis prisões brasileiras. No entanto, depois de múltiplas tentativas e de dolorosas punições, quando enfim consegue escapar a primeira coisa que faz é assaltar um banco! E volta à prisão.

O único refresco que o livro nos dá vem de uma relação de amor. Em poucas páginas, com o mesmo pudor orgulhoso que caracteriza o livro inteiro, revela-se a esperança em brasa de uma solução. Ela acredita nele o bastante para se dar e, sendo advogada, percebe ainda, e lhe promete, a possibilidade de uma saída legal. No entanto, é ela, a estagiária de direitos humanos, que passa a viver na clandestinidade. Entre fugas e processos, Nemo agressor nem a defensora da lei conseguem escapar às malhas do sistema. Que sistema é esse?

Em meio à fantasmagoria da violência, Quatrocentos contra um tem algo positivo e diferente a nos dizer; apesar de tudo, é possível não perder a cabeça e a crença no amor e no direito. Sem demagogia, sem cascatas. Parece uma crença absurda, tal a desmoralização que o conceito da Lei tem sofrido entre nós. Mas sem a crença não há lei que se sustente. Vem daí, a meu juízo, a importância deste livro. A transformação do bandido em autor põe em palavras o difícil e contraditório desejo de justiça.



MINHA IMPRESSÃO:



Ora bem, em primeiro lugar se deve reconhecer que o autor do prefácio é homem culto e inteligente, bem acima da média nacional; portanto, quem sou eu para criticar a sua escrita?... Creio, porém, que cada palavra dele recebeu medição atenta. Não seria ele doido a ponto de desandar sua lógica para o elogio puro e simples ao bandido. Até reconheço que o discurso dele, embora pequeno, encerra milhões de conceitos importantes, com os quais concordo. O que me impressiona, porém, é o fato de que o autor do livro fora um famigerado assaltante de bancos e fundador do Comando Vermelho, sigla banhada em sangue de muitos inocentes. Também discordo do prefaciador quando alega ser contrário a dar charme ao bandido. Ora, foi o que ele exatamente fez, e não apenas doando seu renomado nome ao livro, mas também compartindo do pomposo lançamento que só fez dar glamour ao criminoso e ao CV.



Tivesse ele, prefaciador, escrito o seu texto em outro lugar, não me há dúvida de que teria mérito maior. Contudo, ao grafá-lo corroborando as palavras de um marginal da lei, o prefaciador pôs a sua imagem em jogo e se propôs a receber bombardeios vários. Mesmo assim, incluo-me entre os que devem levar a sério o prefácio, lembrando, porém, que se trata de livro suspeitíssimo até quanto à autoria plena. E mesmo que o seja, talvez não coubesse prefácio de tão importante personalidade nacional, malgrado suas cautelas, que mais parecem um apanhado de oximoros em vista do objetivo de cultuar um bandido que feriu a lei por vontade própria e foi justamente punido.



É verdade que o sistema carcerário pátrio era uma vergonha na época em que trancafiava o autor do livro. Culpa da ditadura?... Bem, que o seja! Mas é inegável que hoje, depois de tantos anos da aprovação da “Constituição Cidadã”, o sistema carcerário está como dantes: continua desumano e representa não mais que fábrica de marginais perigosos. E chega a ser hilariante a circunflexão do sistema situacional atual ao transferir para longe de seus homizios os líderes do tráfico em favelas, como se não fossem eles submetidos a alguma inalcançável liderança superior, do asfalto, que dá as cartas na política e no poder. Cá entre nós, a mesma que glamorizou o livro do bandido de todas as formas, envolvendo uma poderosa instituição religiosa (católica – ISER), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o MR-8 e o Poder Público (PDT) na sua confecção e no seu lançamento. Ora!...



Também devo sublinhar a ira do prefaciador contra o sistema policial (“as invasões armadas dos bairros populares”) no bojo de outras reclamações indubitavelmente procedentes, desde que anunciadas por outros meios. Pôr essas opiniões no livro do prócer do CV permite a inferência de que o recado era necessário aos leitores da mesma laia do bandido-autor. No fim de contas, o prefaciador é um dos mais expressivos cientistas sociais pátrios, e filósofo graduado, dentre outras excelências acadêmicas de que é detentor, daí o peso-pesado de suas palavras, pois é certo que o livro seria página em branco, mera resma de papel, sem o seu concurso direto e a badalação do lançamento. Na verdade, o lançamento é mais uma prova da anomia determinada pelo sistema situacional da época, esta que em muito interessava à sigla CV-PDT.



Posso, porém, admitir em favor do prefaciador uma boa intenção levando em conta sua forte história de vida, marcada por perseguições movidas pela ditadura, o exílio, e o fato de que, surpreendentemente, o texto de William da Silva Lima (?), com ressalva de minha dúvida, a meu ver possui inegável qualidade literária. Creio também que a literatura em geral é um poderoso meio de registro histórico desvinculado do poder reinante, este que geralmente faz história pelo muque ou pelo ardil a contaminar com inverdades as gerações futuras. Vejo muitos romances, mesmo apresentados sob o mando da ficção, como mais importante que livros de história devido ao seu compromisso com a realidade, com minhas desculpas aos muitos historiadores que são livres, só não sei em que grau em vista da submissão aos grilhões capitalistas... Como, enfim, confessou o mestre João Ubaldo Ribeiro no título de um de seus livros, mais especificamente de crônicas, “O comendador come”... Eis como compreendo como normal um historiador em circunflexão ante o poder dominante. Mesmo assim, no caso do livro do bandido eu me recuso a achar normal, pois é o avesso de todos os meus princípios. Ademais, tê-lo como obra literária seria total desrespeito aos meus colegas policiais que doaram a vida combatendo o Comando Vermelho. Fico então do lado de cá da trincheira, embora tenha sido também impelido, em cautela, ao exercício de oximoros...



Quanto ao livro do bandido, que reli, devo alinhavar alguns pontos relevantes e depois comentá-los segundo a minha ótica, não sem antes sugerir ao leitor que busque um exemplar nos sebos para lê-lo todo. Em primeiro lugar ressaltam-se as inúmeras citações ao longo da narrativa (grifos e itálicos nossos):



Pág. 12: “Acabou. Nada se perde, nada se cria. Principalmente na prisão, tudo se transforma.”  (...) Longos anos de prisão suprimem, em muitos, o desejo de ser livre. Mas, em outros, aumenta a revolta e a vontade de reconquistar o que se perdeu.”; pág 13: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!”; pág. 19: “(...) Como o operário da música de Chico Buarque, o menino apenas atrapalha o trânsito”; “Brás Cubas não sabia se iniciava suas memórias pela cena de seu nascimento ou a de sua morte.”; pág. 23: “Maus tratos e espancamentos faziam parte do dia-a-dia em Bangu, nivelando carcereiros e massa carcerária numa mesma miséria moral.”; pág. 26: (...) o comando do sistema exerce um papel inibidor sobre os que não se afinam com sua política em cada momento.”; pág. 27/28: “Em 1964 começaram a chegar os primeiros presos políticos atingidos pelo golpe militar (...) Aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu muitas lições no contato havido na década de 1930 com os membros da Aliança Nacional Libertadora encarcerados na Ilha Grande. Quando os presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores das causas da delinquência e conhecedores dos ideais do socialismo. Essas pessoas, por sua vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suas informações adiante. Sua influência não foi desprezível. Na década de 1960 ainda se encontravam presos assim, que passavam de mão em mão, entre si, artigos e livros que falavam de revolução. De vez em quando apareciam publicações do Partido Comunista, então na ilegalidade. (...) Meu amigo Vadinho me passou Os Sertões: – se você quiser conhecer a história do Brasil, não adianta ir à escola. Tem que ler Euclides da Cunha (...) Li cadernos de bispos do Nordeste, diversas cartilhas, Jorge Amado, Osny Duarte Pereira. Adorei Lima Barreto.”; pág. 29: “ Para sobreviver, resolvi assaltar, voltando a trilhar o caminho que me levaria de novo – reincidente – à prisão, com mais seis anos pela frente.”; pág. 30: “O entrosamento já era grande e 1968 batia às portas. Repercutiam fortemente na prisão os movimentos de massa contra a ditadura, e chegavam notícias da preparação da luta armada. Agora, Che Guevara e Régis Debray eram lidos. Não tardariam contatos com esses grupos guerrilheiros em vias de criação.”; pág. 34: Sobre a Ilha Grande: “(...) Há muito tempo o destino do belo lugar esteve associado ao sofrimento dos homens. Faziam-se ali, clandestinamente, desembarques de escravos, mesmo depois da abolição do tráfico (...) para lá foram enviados os sobreviventes da gloriosa Revolta da Armada.”; pág. 36: “(...) Somos , simplesmente, assaltantes. Ou estelionatários. Ou homicidas. Entre os direitos que perdemos se encontra o de sermos conhecidos pela totalidade das nossas ações, boas e más, como qualquer ser humano. (...) Desarticular a personalidade do preso é primeiro – e, talvez, o mais importante, papel do sistema. (...) Piores que os guardas, esses presos violentos eram ali colocados, estrategicamente, por uma administração que tinha todo interesse em cultivar o terror.”; pág. 37: (...) Jogavam, na nossa frente, uns para os outros, o ‘tubarão’ – um pedaço de pau – anunciando assim a morte de mais um companheiro, enterrado informalmente em alguma parte daquela imensa ilha. (...) Era visível um cemitério nos fundos do próprio presídio. Os laudos cadavéricos – eu soube depois – eram assinados por um antigo refugiado nazista que ali encontrara acolhida.”; pág. 39: (...) Embora já tivesse consciência da situação política do país, não pensava em me ligar a nenhuma organização revolucionária. (...) Saí da prisão resolvido a buscar nos bancos, a mão armada, os recursos que não tinha e que não obteria por meio de trabalho comum, meramente escravizante.”; págs. 40/41: (...) fui para o DOPS (...) Na manhã seguinte, escutei passos e logo um rosto muito branco, com cabelos lisos, se mostrou na portinhola, falando de forma amiga. (...) Ficamos amigos (...) Chamava-se Januário Pinto de Almeida Oliveira – Janu – e sua história impressionante merece atenção. (...) Janu e seu irmão Antonio Marcos (...) Ingressaram na Juventude estudantil Católica e, em 1967, começaram a participar do movimento estudantil que então se reorganizava. Em fins de 1969, ficou preso dois meses, acusado de pertencer à Vanguarda Armada RevolucionáriaPalmares (Var-Palmares); pág. 45: (...) Assaltáramos bancos, mas sem vinculação com as organizações armadas, que faziam o mesmo num contexto de luta contra o regime de exceção. (...) todos os rigores da Lei de Segurança Nacional, instrumento de clara inspiração política.”; pág. 47: “(...) Concordei plenamente e assumi o compromisso de apoiar o esforço para manter unidade e evitar qualquer manifestação de individualismo. (...) Nas frequentes reuniões discutiam-se problemas internos e problemas gerais, incluindo aí sessões de leitura coletiva. A história da riqueza do homem e Vietnã; a guerrilha vista por dentro eram dois dos livros que tínhamos lá. Grupos pequenos conseguiam encontrar-se da seguinte maneira: na hora de pegar o café, quando cubículos eram abertos, os companheiros que fossem participar de uma mesma reunião manobravam na fila e entravam todos num mesmo cubículo, previamente combinado, onde permaneciam trancados até o almoço, quando as portas novamente se abriam. A unidade, no entanto, já não ultrapassava mais o portão de ferro que nos separava das organizações armadas: eles não se misturavam, rompendo assim, talvez sem saber, uma velha tradição das cadeias, em que revolucionários e presos comuns, ao compartilharem o mesmo chão e o mesmo pão, cresciam juntos num mesmo ideal. (...) Para esvaziar a luta pela anistia, a ditadura negava a existência de presos políticos no país.”; pág. 54: “(...) O coletivo dos presos políticos nos ajudou a enviar o documento que, divulgado no exterior, levou à punição de diversos guardas penitenciários e integrantes da Polícia Militar. Foi um fato extraordinário, que provocou um acirramento do ódio que os agentes da repressão nutriam contra nós.”; pág. 69: “(...) Lembro-me apenas do que dizia Nelson Rodrigues: sem sorte, você não consegue nem chupar picolé. Imaginem fugir de Água Santa...”; pág. 76: “(...) Em pouco tempo, as regras do antigo Fundão foram sendo adotadas nas cadeias: morte para quem assaltar ou estuprar companheiros. (...) Não era constatação completamente nova para quem lera Euclides da Cunha: as tropas enviadas a Canudos se perdiam no sertão. (...) navegar é preciso, viver não é preciso.”; pág. 79: (...) Nunca deixou de pregar a Bíblia, mas com um sentido de revolução social. (...) Não se pode falar em tomada de consciência política, mas houver organização, ajuda mútua, respeito pelos direitos humanos. Pudemos então permanecer concentrados em nosso ideal: ir embora.” Pág. 82: “(...) Nunca houve tal guerra, nem tal tipo de pacto, nem a anunciada ‘falange’, sua patrocinadora.”; pág. 83: “(...) Na prisão, ‘falange’ quer dizer um grupo de presos organizados em torno de qualquer interesse comum. Daí o apelido de ‘falange da LSN’, logo transformada pela imprensa em ‘Comando Vermelho’. (...) Após os assassinatos de setembro de 1979, quando foi quase totalmente exterminada a Falange do Jacaré, a Falange da LSN ou Comando Vermelho passou a imperar no presídio da Ilha Grande e a comandar o crime organizado intramuros em todo o sistema penitenciário do Rio. Com isso, as outras falanges ficaram oprimidas, passando a acatar ordens da LSN, sob pena de morte.”; pág. 84: (...) Não tardou em chegar mais lenha à fogueira. Nanai, Roberto da Silva e Saldanha (Zé Bigode para a imprensa) fugiram da Ilha em agosto de 1980, pondo em prática um plano lentamente amadurecido.”; pág. 85: “(...) Começamos a nos instalar em favelas, por questão de segurança. Respeitávamos a coletividade e éramos bem-vindos. A imprensa atribuía a nós – Comando Vermelho – todos os assaltos a bancos, e logo o nome caiu em uso comum.” Pág. 86: “(...) O Jornal O Dia não perdeu a oportunidade de apresentar Nanai como ‘o primeiro organizador do Comando Vermelho’.” Pág. 87/88/89/90: (Depois da operação que custou a vida de Nanai, Saldanha tornou-se o homem mais procurado pela Polícia carioca: este antigo guarda de segurança era o principal líder foragido do chamado Comando Vermelho. Começou a ser localizado por acaso, a partir de algumas prisões efetuadas no morro do Adeus, em Bonsucesso, na segunda quinzena de março de 1981, por agentes do serviço secreto do Batalhão de Atividades Especiais (Nota: para quem desconhece, trata-se do atual BOPE). O boato logo começou a circular, levando mais de cem pessoas – jornalistas, policiais, curiosos – a cercar o camburão que no dia 30 de março estacionou em frente ao prédio da Secretaria de Segurança. Lá dentro, dizia-se, estavam diversos integrantes do famigerado comando. Não era verdade. Mas havia fumaça, havia fogo. Os presos foram mantidos em completo isolamento e Deus sabe como foram interrogados. Graças às informações obtidas, a Polícia chegou a uma casa em Realengo, de onde conseguiram fugir, sob intensa fuzilaria, Baianinho e o próprio Zé Saldanha, deixando para trás quatro revólveres, cinco escopetas, uma winchester 44, três granadas de mão, centenas de cartuchos e três automóveis. Mais importante: lá ficou o livro de contabilidade que registrava as entradas e saídas de dinheiro do grupo. (...) Não tardou, porém, a surgir nova pista: o apartamento nº 302 do lote 144, bloco 7 do Conjunto dos Bancários, situado na rua Antinópolis nº 313, na praia da Bandeira, Ilha do Governador. Para lá rumaram, em 3 de abril, os integrantes do chamado Clube do Guri – policiais com aspecto de garotões – para fazer o levantamento, tendo em vista uma possível invasão na mesma noite. A operação foi precipitada porque Jairo Agostinho da Silva (Macarrão) reconheceu um dos detetives e deu o alarme. Conseguiu escapar, mas seu companheiro – que era nada menos que o próprio Saldanha – ficou encurralado no apartamento, com as saías bloqueadas. Seguiram-se intenso tiroteio e chegada de reforços. A estrutura montada para a repressão política estava na época com muita capacidade ociosa, desejosa de encontrar serviço e mostrar-se útil. Só isso explica a desproporção que se viu. (...) 400 policiais e contingentes do Corpo de Bombeiros (...) Parecia que dois exércitos iriam iniciar uma batalha. Na verdade, era mais ou menos isso. Um deles, porém, compunha-se inicialmente de apenas dois homens: Zé Saldanha e João Damiano Neto. Este último não tardou a ser morto. (...) Restaram, nessa batalha sem glória, 400 homens contra um. (...) Às 17:30 horas jazia o corpo de um policial. O encurralado não se rendia, confirmando sua fama. Veio a noite e mais uma madrugada. No raiar de 4 de abril, entraram em ação as bazucas. Às 08:30 horas, finalmente, caiu morto o Saldanha.”; (...) Esse episódio acirrou os ânimos da Polícia contra os foragidos da Ilha Grande, definitivamente transformados em inimigos públicos número um. Embora preso, eu era do grupo. Fiquei oito meses em Água Santa, tendo como companhia dois antigos companheiros e José Lourival Siqueira Rosa, o Mimoso (...). Participara de mais de 20 assaltos, fora condenado a 398 anos (...) Ficara famoso na quinta e mais recente prisão ao ser apresentado por uma delegado:  – A organização Falange Vermelha nasceu da convivência entre assaltantes e presos políticos (...) Mimoso é um dos líderes da Falange (...). – Não sou líder de coisa nenhuma. Esta organização não existe. É invenção da Polícia e da imprensa”.



Não é fácil sintetizar um livro inteiro sem ser enfadonho. O ideal seria sua leitura completa. No entanto, deve-se sublinhar a harmonia dos posteriores discursos dos políticos afirmando veementemente que “o Comando Vermelho não existe”, ou que “é um besteirol”, deste modo reforçando a afirmação de William da Silva Lima no seu livro, tal como sabemos ser usual entre os membros de alguns partidos se referirem a outros partidários como “companheiros”, denotando assim o apego a uma só cultura de solidariedade mútua entre os “companheiros” ideológicos de esquerda e os “companheiros” do CV.



Como eu reconheci desde logo, o livro possui certa dose de verossimilhança em relação ao comportamento de políticos ditos “socialistas”. Porque, embora o prócer do CV negue a existência desta organização criminosa, o seu texto desmente-o literalmente, assim como confirma o interesse político-eleitoral de partidos de esquerda com o CV para a conquista maciça de votos em eleições, como ocorreu em 1982 e se repetiu em 1986, nas duas ocasiões elegendo Brizola Governador do RJ, devendo-se considerar que muitos dos seus partidários dele se desgarraram e em outros partidos alcançaram o poder tal como antes.



Qual será o peso real a ser pago pela sociedade do RJ em vista desse impressionante conluio entre o crime organizado e a política? Em que estágio de bastidores essa contaminação seria hoje apontada? Seria uma contaminação epidêmica ou endêmica? Por que até hoje, nos meios universitários ou jornalísticos, ninguém se arriscou a clarear em pesquisa acadêmica, num só texto histórico, toda essa barafunda da qual muitos políticos ainda hoje tiram proveito sob o manto obscuro dos “direitos humanos”? E, se assim permanecer, qual será a consequência futura dessas causas em pleno andamento?...



Deixo as respostas e outras indagações com os leitores para seguir em frente na minha caminhada contra a hipocrisia social reinante no RJ...


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