terça-feira, 1 de novembro de 2016

VIOLÊNCIA URBANA NO RIO DE JANEIRO – MORRE MAIS UM PM

“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)

 Jornal EXTRA 

31/10/16 20:36 Atualizado em 31/10/16 20:38

Morre PM baleado na cabeça em comunidade da região central do Rio


Morreu, na tarde desta segunda-feira, o policial militar baleado na cabeça nesta manhã, na região central do Rio. Thayson Teixeira Santos, de 25 anos, trabalhava na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Coroa/Fallet/Fogueteiro e foi atingido na localidade conhecida como Caixa D'Água. Segundo colegas de farda, ele se feriu acidentalmente, ao manusear um fuzil. A assessoria de imprensa das UPPs, porém, diz que "as circunstâncias em que ele foi atingido estão sendo apuradas".

O policial foi socorrido para o Hospital Central da Polícia Militar (HCPM), no Estácio, mas não resistiu aos ferimentos. Thayson estava na corporação há 10 meses e tinha apenas duas semanas de formado. Ele deixa esposa e uma filha. Ainda não há informações sobre o enterro do militar.


Desespero dos colegas

Em grupos de WhatsApp de policiais, agentes falavam sobre o momento em que o PM chegou ao hospital. Trechos da conversa demonstram desespero. "Acaba de chegar ao HCPM um policial. Tiro na cabeça de fuzil"; "Todo mundo desesperado"; "Mano, a polícia acabou"; e "Correria no hospital".


MEU COMENTÁRIO

Atuei durante muitos anos, como tenente, na Companhia Escola de Recrutas da extinta PMRJ (início da década de setenta), que corresponderia ao atual CEFAP. Naquela época, a formação do soldado PM era desapressada, densa e profunda. Havia uma grade curricular intensa, os instrutores eram todos tenentes vocacionados, os monitores (sargentos) formavam com os oficiais instrutores uma plêiade de altíssimo nível. Com relação à instrução de tiro, além da teoria era intensivo o treinamento de montagem e desmontagem das armas e prática de tiro ao alvo, complementando-se ao final com treinamentos especiais de tiro instintivo diurno e noturno, em simulações estruturadas em ambientes urbanos e rurais. Enfim, na parte de artes marciais e uso de armas a instrução era de muitas horas-aulas. Também no geral das matérias teóricas os ensinamentos eram de altíssimo padrão, com a utilização de tecnologia de ponta em salas de aula, tais como retroprojetores, projetores de slides, projeção de filmes técnicos ofertados por diversos países através de convênios com seus consulados ou embaixadas. Ao fim e ao cabo, formava-se um soldado PM pronto para o exercício de suas atividades policiais e militares, com predominância do policial discriminativo como regra e do soldado combatente como exceção, dentro da lógica operacional da corporação predominantemente preventiva e excepcionalmente repressiva. Mas... E hoje?

Bem, muita coisa mudou, veio a Fusão em 1975 e houve a embolada cultural de duas corporações que cuidavam de ambientes diferentes e possuíam culturas e valores diferentes, embora fossem, no continente, Polícias Militares distintas. Mas eram tão diferentes como o são as armas do EB. Um artilheiro não é infante e um cavalariano não é nenhum dos dois. Há até um aforismo jocoso no âmbito do EB, que diz mais ou menos o seguinte: “O infante age, o artilheiro pensa, e o cavalariano não age nem pensa.” Mangações à parte entre eles, também as PPMM Brasil afora são iguais no continente, mas diferentes no conteúdo. Supor que sejam iguais ou semelhantes só porque usam farda, se subordinam ao Exército como forças auxiliares, obedecem a regulamentos militares e se destinam à mesma atividade constitucional é extrema estupidez. Isto porque o ambiente, — um dos imperativos destacados pela Teoria Geral da Administração ao lado da tecnologia, — o ambiente é inelutavelmente diferente em sua essência e em sua existência espacial. Supor, portanto, que o ambiente de João Pessoa é idêntico ao de Curitiba, dentre outros multivariados exemplos, é aceitar o inaceitável. Supor também que um ser humano se iguala a outro só porque está em formatura, com a mesma farda, é fantasia.

Vou refletir por esta linha, não sem antes afirmar que no militarismo há uma lógica, que é a dos “corpos dóceis” explicados por Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir. Esta lógica, que se resume na intensidade máxima de movimentos e tempos repetitivos até condicionar o homem a obedecer cegamente às ordens de seus superiores, tem forte razão de ser nas guerras e bem menos na atividade policial. É, sim, uma lógica mortal, pois o homem consegue ser doutrinado ao extremo de aceitar a morte sem recuar ante o inimigo. É como dizia Geraldo Vandré em sua canção Pra não dizer que não falei das flores: “Morrer pela pátria e viver sem razão.” Também lembro René Fülöp-Miller, in Os Santos Que Abalaram o Mundo: “Que as alegres canções dos trovadores eram sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” E para que não pensem que a figura do “soldado de polícia”, como o é o atual “soldado PM”, é invenção pátria e não uma cópia de modelos europeus dos velhos tempos monárquicos e imperiais, vai uma referência grafada por Nicolai Vassílievtch Gógol em seu clássico Almas Mortas, publicado em 1842, tendo como cenário o regime semi-feudal russo, tempos dos servos vivendo em regime de escravidão: “[...] um soldado de polícia qualquer, postado lá longe junto da porta, bem na saída, que jamais sorrira em toda a sua vida, e que ainda um momento antes ameaçara o povo com o punho fechado, até ele, obedecendo à lei do reflexo, deixa transparecer em seu semblante uma espécie de sorriso, embora esse sorriso se pareça mais com o que acontece com quem se prepara para espirrar depois de uma forte pitada de rapé.” (Grifos nossos).


Toda essa digressão deve ser vista como um desabafo. Afinal, segundo se sabe, o PM atirou em si mesmo, acidentalmente, o que indica despreparo no porte e no uso de sua arma (fuzil) ou nervosismo por saber que poderia, também, ser atingido por tiros inimigos. Há alguma coisa mais profunda neste incidente. Arrisco-me a dizer que nos últimos anos a formação dos PMs foi acelerada em função da necessidade de suprir com tropa “sem vícios” as UPPs, providência alardeada pelo sistema situacional em demérito dos PMs antigos, mas questionável em todos os sentidos se se considerar que recruta não possui vivência operacional, mas somente uma ideia dela antes de ser despejado em UPPs, como vem acontecendo faz anos. E depois que inicia a sua trajetória, no caso desse infortunado PM, de 25 anos, tão curta quanto um tiro de fuzil, ele simplesmente morre, deixando esposa e filha menor. Que cada um conclua por si ante esse desabafo que pretende aguçar a atenção para a talvez milenar cultura do “soldado combatente”, que é, com efeito, um “combatente” antes de ser “policial”. Ressalvadas as pequeníssimas diferenças, eis o nosso “soldado PM”, que hoje vive em guerra insana contra bandidos e contra si mesmo. Tal como no passado...

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