“O mundo está perigoso para se viver! Não por
causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta
de que não viram.” (Albert Einstein)
Jornal EXTRA
31/10/16
20:36 Atualizado em 31/10/16 20:38
Morre PM
baleado na cabeça em comunidade da região central do Rio
Morreu, na tarde desta segunda-feira, o policial
militar baleado na cabeça nesta manhã, na região central do Rio. Thayson
Teixeira Santos, de 25 anos, trabalhava na Unidade de Polícia Pacificadora
(UPP) Coroa/Fallet/Fogueteiro e foi atingido na localidade conhecida como Caixa
D'Água. Segundo colegas de farda, ele se feriu acidentalmente, ao manusear um
fuzil. A assessoria de imprensa das UPPs, porém, diz que "as
circunstâncias em que ele foi atingido estão sendo apuradas".
O policial foi socorrido para o Hospital Central da
Polícia Militar (HCPM), no Estácio, mas não resistiu aos ferimentos. Thayson estava na
corporação há 10 meses e tinha apenas duas semanas de formado. Ele
deixa esposa e uma filha. Ainda não há informações sobre o enterro do militar.
Desespero
dos colegas
Em grupos de WhatsApp de policiais, agentes falavam
sobre o momento em que o PM chegou ao hospital. Trechos da conversa demonstram
desespero. "Acaba de chegar ao HCPM um policial. Tiro na cabeça de
fuzil"; "Todo mundo desesperado"; "Mano, a polícia acabou";
e "Correria no hospital".
MEU COMENTÁRIO
Atuei durante muitos anos, como
tenente, na Companhia Escola de Recrutas da extinta PMRJ (início da década de
setenta), que corresponderia ao atual CEFAP. Naquela época, a formação do
soldado PM era desapressada, densa e profunda. Havia uma grade curricular
intensa, os instrutores eram todos tenentes vocacionados, os monitores
(sargentos) formavam com os oficiais instrutores uma plêiade de altíssimo
nível. Com relação à instrução de tiro, além da teoria era intensivo o
treinamento de montagem e desmontagem das armas e prática de tiro ao alvo,
complementando-se ao final com treinamentos especiais de tiro instintivo diurno
e noturno, em simulações estruturadas em ambientes urbanos e rurais. Enfim, na
parte de artes marciais e uso de armas a instrução era de muitas horas-aulas.
Também no geral das matérias teóricas os ensinamentos eram de altíssimo padrão,
com a utilização de tecnologia de ponta em salas de aula, tais como
retroprojetores, projetores de slides, projeção de filmes técnicos ofertados
por diversos países através de convênios com seus consulados ou embaixadas. Ao
fim e ao cabo, formava-se um soldado PM pronto para o exercício de suas
atividades policiais e militares, com predominância do policial discriminativo
como regra e do soldado combatente como exceção, dentro da lógica operacional
da corporação predominantemente preventiva e excepcionalmente repressiva.
Mas... E hoje?
Bem, muita coisa mudou, veio a
Fusão em 1975 e houve a embolada cultural de duas corporações que cuidavam de
ambientes diferentes e possuíam culturas e valores diferentes, embora fossem,
no continente, Polícias Militares distintas. Mas eram tão diferentes como o são
as armas do EB. Um artilheiro não é infante e um cavalariano não é nenhum dos
dois. Há até um aforismo jocoso no âmbito do EB, que diz mais ou menos o
seguinte: “O infante age, o artilheiro pensa, e o cavalariano não age nem
pensa.” Mangações à parte entre eles, também as PPMM Brasil afora são iguais no
continente, mas diferentes no conteúdo. Supor que sejam iguais ou semelhantes
só porque usam farda, se subordinam ao Exército como forças auxiliares, obedecem
a regulamentos militares e se destinam à mesma atividade constitucional é
extrema estupidez. Isto porque o ambiente, — um dos imperativos destacados pela
Teoria Geral da Administração ao lado da tecnologia, — o ambiente é
inelutavelmente diferente em sua essência e em sua existência espacial. Supor,
portanto, que o ambiente de João Pessoa é idêntico ao de Curitiba, dentre outros
multivariados exemplos, é aceitar o inaceitável. Supor também que um ser humano
se iguala a outro só porque está em formatura, com a mesma farda, é fantasia.
Vou refletir por esta linha, não
sem antes afirmar que no militarismo há uma lógica, que é a dos “corpos dóceis”
explicados por Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir. Esta lógica, que se resume na intensidade máxima de
movimentos e tempos repetitivos até condicionar o homem a obedecer cegamente às
ordens de seus superiores, tem forte razão de ser nas guerras e bem menos na
atividade policial. É, sim, uma lógica mortal, pois o homem consegue ser
doutrinado ao extremo de aceitar a morte sem recuar ante o inimigo. É como
dizia Geraldo Vandré em sua canção Pra
não dizer que não falei das flores: “Morrer pela pátria e viver sem razão.”
Também lembro René Fülöp-Miller, in Os
Santos Que Abalaram o Mundo: “Que as alegres canções dos trovadores eram
sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com
tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e
que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo
sino de guerra, para dar suas vidas pela Igreja ou pela coroa, pela honra do
senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” E para que não pensem que a
figura do “soldado de polícia”, como o é o atual “soldado PM”, é invenção
pátria e não uma cópia de modelos europeus dos velhos tempos monárquicos e
imperiais, vai uma referência grafada por Nicolai Vassílievtch Gógol em seu
clássico Almas Mortas, publicado em
1842, tendo como cenário o regime semi-feudal russo, tempos dos servos vivendo
em regime de escravidão: “[...] um soldado
de polícia qualquer, postado lá longe junto da porta, bem na saída, que
jamais sorrira em toda a sua vida, e que ainda um momento antes ameaçara o povo
com o punho fechado, até ele, obedecendo à lei
do reflexo, deixa transparecer em seu semblante uma espécie de sorriso,
embora esse sorriso se pareça mais com o que acontece com quem se prepara para
espirrar depois de uma forte pitada de rapé.” (Grifos nossos).
Toda essa digressão deve ser
vista como um desabafo. Afinal, segundo se sabe, o PM atirou em si mesmo,
acidentalmente, o que indica despreparo no porte e no uso de sua arma (fuzil)
ou nervosismo por saber que poderia, também, ser atingido por tiros inimigos.
Há alguma coisa mais profunda neste incidente. Arrisco-me a dizer que nos
últimos anos a formação dos PMs foi acelerada em função da necessidade de
suprir com tropa “sem vícios” as UPPs, providência alardeada pelo sistema
situacional em demérito dos PMs antigos, mas questionável em todos os sentidos
se se considerar que recruta não possui vivência operacional, mas somente uma
ideia dela antes de ser despejado em UPPs, como vem acontecendo faz anos. E
depois que inicia a sua trajetória, no caso desse infortunado PM, de 25 anos, tão
curta quanto um tiro de fuzil, ele simplesmente morre, deixando esposa e filha
menor. Que cada um conclua por si ante esse desabafo que pretende aguçar a
atenção para a talvez milenar cultura do “soldado combatente”, que é, com
efeito, um “combatente” antes de ser “policial”. Ressalvadas as pequeníssimas
diferenças, eis o nosso “soldado PM”, que hoje vive em guerra insana contra
bandidos e contra si mesmo. Tal como no passado...
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