quinta-feira, 30 de junho de 2016

VIOLÊNCIA URBANA VI – FORÇA DE SEGURANÇA E SERVIÇO DE SEGURANÇA


“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)






Esta dupla condição tem grande utilidade para o estudo da atividade policial-militar na manutenção da ordem pública. Mesmo com outras denominações, esta relação entre força e serviço tem sido objeto de estudo em muitos países, principalmente naqueles que privilegiam o capitalismo e a democracia como sistema de convivência social, e que, por isso, têm de administrar seus conflitos. Para efeito de uma análise mais acurada deste tema, ilimitado na sua complexidade, necessário se faz, inicialmente, estabelecer a ideia semântica mais apropriada dos termos que compõem as expressões em estudo. Antes, porém, devo esclarecer um problema criado pelo dicionário Aurelião, que apresenta o composto “policial militar” (o indivíduo profissional, militar estadual) sem o hífen, contrariando a regra gramatical da junção de dois substantivos, que exige a colocação do hífen. Porque é certo que o “policial” do composto é nítida e inegavelmente substantivo, assim como o “militar” é igualmente substantivo, o que se pode deduzir até mesmo do próprio Aurelião que estabeleceu a contradição, que vejo como erro grotesco. Senão, vejamos:

“policial [De polícia + -al1.]

Adjetivo de dois gêneros.

1.Relativo a, ou próprio da polícia, ou que serve a seus fins:
assuntos policiais; inquérito policial; cão policial. ~ V. cão — e inquérito — militar.

Substantivo de dois gêneros.
2. Indivíduo pertencente a polícia (2); polícia.

Substantivo masculino. 3.Cinol. V. pastor alemão. Policial militar. 1. V. pê-eme.”

“militar1 [Do lat. militare.]

Adjetivo de dois gêneros.

1.Relativo à guerra, às milícias, aos soldados. 2.Relativo às três forças armadas (marinha, exército e aeronáutica): chefes militares; organizações militares; Tribunal Superior Militar. 3.Restr. Relativo ao exército: Academia Mili-tar das Agulhas Negras. ~ V. base —, casa —, gota1 —, hierarquia —, honras — es, inquérito policial-militar, polícia —, região —, serviço —, sorteio —, tambor —testamento —.

Substantivo masculino.

4. Soldado, combatente. 5.Aquele que segue a carreira das armas.”

Tal explicação é para que os que exercitam a profissão de militar estadual não tenham dúvida de como se grafa sua função social. Porque é certo que o policial-militar é uma coisa e também a outra, tal como “couve-flor” ou outro composto de dois substantivos. Diferente de Polícia Militar, onde o vocábulo “militar” (aí sim, adjetivo) qualifica o substantivo “polícia”. E também, para dirimir dúvidas, o composto “policial-militar” pode ser de dois adjetivos (com hífen) quando conjuntamente qualifica algum substantivo: “quartel policial-militar”, “inquérito policial-militar”. Bem, creio que agora podemos adentrar o assunto objeto desta reflaxão...

Em primeiro lugar a palavra “FORÇA”, que genericamente significa toda causa capaz de produzir um efeito. Há inúmeras denotações expressas em dicionários, mas interessa ao estudo o seu sentido de ação que modifica um estado, uma situação. Já faz parte da tradição incluir-se na ideia semântica a associação da palavra “FORÇA” como “conjunto de formações militares de um Estado” (Larrouse, Koogan – Pequeno Dicionário Enciclopédico). Este é um sentido substantivo que já serviu no passado para designar muitas Polícias Militares como “FORÇAS PÚBLICAS”.

A palavra “SERVIÇO” tem denotação bem diversa, significando, basicamente, “préstimo, utilidade, tarefa”. Em resumo, “SERVIÇO” significa “ação ou efeito de servir” (Larrouse, Koogan).

Por último a palavra “SEGURANÇA”, cujo sentido geral, na Doutrina do Direito Administrativo da Ordem Pública, é o de “GARANTIA” contra algum antivalor ou risco à Ordem Pública. O mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto assim sintetiza o entendimento sobre “SEGURANÇA”:

“Dizer que alguém ou algo estão seguros equivale a afirmar que estão garantidos contra tudo que, previsivelmente, possa lhes opor. Não há garantia absoluta, logo, não há segurança absoluta...” (Direito Administrativo da Ordem Pública, Forense, p.125).

Ainda segundo o mestre, a função-síntese do Estado é a de “prestar segurança”, ou seja, é a de garantir todos os valores que a informam, tanto os ligados à pessoa humana, individual ou coletivamente considerada na convivência social, quanto ao patrimônio. Observa-se, entretanto, na citação anterior, a referência expressa à imprevisibilidade desta segurança, elemento de grande valia para esta reflexão.

Desta maneira, as expressões “FORÇA DE SEGURANÇA” e “SERVIÇO DE SEGURANÇA” guardam entre si alto grau de subjetividade. Mas é possível estabelecer um campo de análise bem claro a partir da acepção da palavra “FORÇA” como oposição a algum antivalor de natureza mais grave, e de “SERVIÇO” como ação utilitária em razão da evitação de antivalores mais amenos ou de menor risco. Portanto, é perfeitamente viável conceber as duas situações num quadro de convivência social. E este é o ponto cruciante da questão: determinar o exato limite de transição entre a necessidade de utilizar a “FORÇA”, como complemento ou substitutivo do “SERVIÇO”, na manutenção da ordem pública, sendo certo que pode ocorrer a necessidade de exercitar ambos ao mesmo tempo e até num mesmo ambiente social.

O tema é bastante vasto e difuso. Por isso é indispensável torná-lo mais pragmático, a fim de melhor associá-lo à realidade das Polícias Militares, que têm na preservação e na restauração da ordem pública sua missão precípua. E aqui novamente cabe o ensinamento de Diogo Figueiredo Moreira Neto, quando ele apresenta duas acepções para a Ordem Pública: a “DESCRITIVA OU MATERIAL“ e a “NORMATIVA OU FORMAL”. A primeira representa a situação de fato, o modelo real, o “SER” da convivência social; a segunda informa o conjunto de valores, de princípios e de normas que se pretende devam ser observados. É o modelo ideal, um sistema abstrato de referência, que os administrativistas designam como “sobredireito” ou “leis de ordem pública”, o “DEVER SER” daquela convivência.

Este enfoque permite assegurar que a ORDEM PÚBLICA MATERIAL é a projeção imperfeita da ORDEM PÚBLICA FORMAL, sendo a primeira mais dinâmica que a segunda. Seria, pela ótica da Ciência Política, a LEGITIMIDADE e a LEGALIDADE, respectivamente situações interagentes e até de mesma conotação semântica, mas que dificilmente traduzem idênticos significados na convivência social. É esta ORDEM PÚBLICA MATERIAL que representa o equilíbrio indispensável à convivência harmônica e pacífica no âmbito interno do país. Por conseguinte, é o principal OBJETO da SEGURANÇA PÚBLICA (SUJEITO DA AÇÃO), razão maior da GARANTIA a ser promovida. Este equilíbrio, pela natureza real, está sujeito a alterações constantes, em consequência das ações de grupos insatisfeitos e de minorias criminosas e tendenciosas, fato comum nas sociedades organizadas e regidas pela democracia capitalista.

Tem-se, destarte, a considerar, na manutenção da ordem pública, a presença diuturna do SERVIÇO DE SEGURANÇA, cuja configuração se insere num quadro de NORMALIDADE. Neste caso o ESTADO, através de diversos órgãos específicos do SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA (POLÍCIA, MINISTÉRIO PÚBLICO, JUSTIÇA, SUBSISTEMA CARCERÁRIO, DEFENSORIA PÚBLICA, LEGISLAÇÃO PENAL ETC.), assegura o mínimo necessário de GARANTIA contra os antivalores e riscos que possam vir a afetar a população. Assim, através dos SERVIÇOS DE SEGURANÇA, são preservados os valores que informam a ORDEM PÚBLICA, principalmente quanto aos aspectos da segurança, da tranquilidade, da salubridade, do decoro e da estética.

Para efeito de melhor situar a FORÇA DE SEGURANÇA, é preciso, também, fazer uma referência à SEGURANÇA EXTERNA. Esta, missão precípua das Forças Armadas, refere-se às operações militares sob hipóteses de guerra e à defesa do território nacional contra antagonismos externos. Outra situação semelhante, também específica das Forças Armadas, mas com o concurso de países aliados, é a SEGURANÇA COLETIVA. Nos dois casos, trata-se de ações militares típicas, cujo objetivo é destruir ou neutralizar o inimigo externo. Nessas situações extremas poderão as PPMM estar convocadas pelo Exército Brasileiro, exercitando em complemento a DEFESA TERRITORIAL como FORÇA DE SEGURANÇA.

Há ainda uma situação intermediária denominada SEGURANÇA INTERNA, e que se refere a antivalores e riscos à ORDEM INTERNA do país. A gravidade de um desequilíbrio qualquer na convivência social poderá indicar a incapacidade de ação do SERVIÇO DE SEGURANÇA. Neste ponto surge a FORÇA DE SEGURANÇA, cujas características variam de um país para outro. Considerando a ideia de que a ORDEM INTERNA também possui seu caráter material (“SER”), portanto não pode ser evitada pela simples proibição formal (“DEVER SER”), a prática da vida coletiva tem exigido a intervenção do Estado através de mecanismos destinados à GARANTIA daquela ORDEM INTERNA. Esta GARANTIA é a SEGURANÇA INTERNA e seu instrumento de defesa doutrinariamente designado como DEFESA INTERNA é a FORÇA DE SEGURANÇA. E com ela as grandes polêmicas...

Na França, por exemplo, já houve muita confusão até se alcançar um modelo de FORÇA DE SEGURANÇA que não se envolvesse diretamente os EXÉRCITOS DE LINHA, pois os seus integrantes não aceitavam exercitar a missão de defesa da soberania do povo francês – desejável –, juntamente com a de controlar distúrbios internos – indesejável sob todos os aspectos. Tem sido assim em muitos países. Por isso, os Estados organizados têm optado pela FORÇA INTERMEDIÁRIA (FORÇA DE SEGURANÇA), como forma de não desgastar a boa imagem das Forças Armadas. Da mesma maneira, os integrantes dos SERVIÇOS DE SEGURANÇA não aceitam de bom grado o desempenho das tarefas das FORÇAS DE SEGURANÇA, pois não há nelas nada que lhes traga a simpatia da população. Realmente, não é muito fácil entender um policial protetor do cidadão trabalhador mudar radicalmente o seu papel para o de repressor daquele mesmo cidadão do qual depende em termos de confiança, para levar a bom termo a sua atividade de SEGURANÇA PÚBLICA. Por isso a FORÇA DE SEGURANÇA é o PATINHO FEIO da história, apesar de sua inquestionável necessidade, porque, independente disso, os distúrbios acontecem...

A saída mais usual dos países que se enquadram na condição descrita tem sido a criação e manutenção de FORÇAS FEDERAIS, como missões de DEFESA INTERNA e GUARDA FRONTEIRAS. Outros estendem as missões a portos e aeroportos para evitar ociosidade. Essas forças são militarizadas e utilizadas como serviços de segurança nas situações supracitadas e nas cidades do interior, exercitando todas as funções policiais – administrativas  e judiciárias. Para esclarecer, há um exemplo deste modelo num país fronteiriço ao Brasil que adota: a GENDARMERIA NACIONAL ARGENTINA.

No Brasil, o sistema apresenta contornos diferentes. Em primeiro lugar, as Forças Armadas, que até bem pouco tempo interferiam diretamente na SEGURANÇA INTERNA, por meio de dispositivo constitucional. Num segundo plano, as Polícias Militares dos Estados-membros, com a dupla função: a de FORÇA AUXILIAR RESERVA DO EXÉRCITO – situação ainda vigente – e a de POLÍCIA DE MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. A condição de FORÇA AUXILIAR RESERVA DO EXÉRCITO representa a atividade de FORÇA DE SEGURANÇA, e a outra condição, a de SERVIÇO DE SEGURANÇA. Este é um ponderável dilema para as Policias Militares, pois a sua opção entre uma situação e outra independe de sua vontade como instituição. Na verdade, independe até da vontade política do Governador do Estado, porquanto está impedido de gerenciar totalmente as ações da Policia Militar em razão dos interesses locais. Além dessa, outra situação extremamente desagradável tem relação com a limitação funcional das Polícias Militares, que somente exercitam as atividades de polícia administrativa – a atividade de polícia judiciária é exercitada pelas Polícias Civis.

Este modelo brasileiro é, no mínimo, paradoxal, pois mesmo admitindo como precípuas as atividades de manutenção da Ordem Pública, ou seja, a SEGURANÇA PÚBLICA, ou o SERVIÇO DE SEGURANÇA, o controle das Polícias Militares pelo Exército é quase absoluto, pois envolve estrutura, efetivo, armamento, adestramento, etc. desta maneira, em razão da infundada preocupação com a SEGURANÇA INTERNA – ou não estamos numa democracia? – as Polícias Militares encontram-se na situação de “mariscos” nesta briga entre o “mar e o rochedo”.

A grande questão, no modelo atual, é saber como e quem dimensionará as prioridades das Polícias Militares, a fim de que elas profissionalizem otimamente os seus quadros. A conjuntura federal preocupa-se (AINDA?) com a SEGURANÇA INTERNA. Por sua vez, a conjuntura estadual deve determinar a prioridade para a proteção de pessoas e exigir que o policial-militar possua flexibilidade para atuar contra o crime, para socorrer um enfermo, um alienado mental, para realizar um parto de emergência etc. Pois tudo isso corresponde à realidade social, à ORDEM PÚBLICA MATERIAL, ao dia a dia da convivência coletiva do Estado-Membro. Em resumo, o policial-militar deve, por lei, exercitar com presteza o seu papel de protetor; mas no dia seguinte tem de estar adestrado o suficiente para formar um “escalão à direita” a controlar piquetes e distúrbios promovidos por aqueles que na véspera eram seus “protegidos”. Talvez seja redundante, mas é preciso esclarecer que um trabalhador, quando se manifesta publicamente para reivindicar o que ele entende como direito, nunca aceita a hipótese de estar cometendo ilegalidade. Portanto, ele nunca entenderá o policial que o reprime e certamente não colaborará, em situação normal, com o seu “protetor-agressor”. É possível trabalhar bem nessas condições?...







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