“O mundo está perigoso para se viver! Não por
causa daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta
de que não viram.” (Albert Einstein)
Esta dupla condição tem grande utilidade
para o estudo da atividade policial-militar na manutenção da ordem pública.
Mesmo com outras denominações, esta relação entre força e serviço tem sido
objeto de estudo em muitos países, principalmente naqueles que privilegiam o
capitalismo e a democracia como sistema de convivência social, e que, por isso,
têm de administrar seus conflitos. Para efeito de uma análise mais acurada
deste tema, ilimitado na sua complexidade, necessário se faz, inicialmente,
estabelecer a ideia semântica mais apropriada dos termos que compõem as
expressões em estudo. Antes, porém, devo esclarecer um problema criado pelo
dicionário Aurelião, que apresenta o composto “policial militar” (o indivíduo
profissional, militar estadual) sem o hífen, contrariando a regra gramatical da
junção de dois substantivos, que exige a colocação do hífen. Porque é certo que
o “policial” do composto é nítida e inegavelmente substantivo, assim como o
“militar” é igualmente substantivo, o que se pode deduzir até mesmo do próprio Aurelião
que estabeleceu a contradição, que vejo como erro grotesco. Senão, vejamos:
“policial [De polícia +
-al1.]
Adjetivo de dois gêneros.
1.Relativo a, ou próprio da polícia, ou que serve a seus fins:
assuntos policiais; inquérito policial; cão policial. ~ V. cão — e inquérito — militar.
Substantivo de dois gêneros.
2. Indivíduo pertencente a polícia (2);
polícia.
Substantivo masculino. 3.Cinol. V. pastor alemão. Policial militar. 1. V. pê-eme.”
“militar1 [Do lat. militare.]
Adjetivo de dois gêneros.
1.Relativo à guerra, às milícias, aos soldados. 2.Relativo às três forças armadas (marinha, exército e aeronáutica): chefes militares; organizações militares; Tribunal Superior Militar. 3.Restr. Relativo ao exército: Academia Mili-tar das Agulhas Negras. ~ V. base —, casa —, gota1 —, hierarquia —, honras — es, inquérito policial-militar, polícia —, região —, serviço —, sorteio —, tambor — e testamento —.
Substantivo masculino.
4. Soldado, combatente. 5.Aquele que segue a carreira das armas.”
Tal explicação é para que os que
exercitam a profissão de militar estadual não tenham dúvida de como se grafa
sua função social. Porque é certo que o policial-militar é uma coisa e também a
outra, tal como “couve-flor” ou outro composto de dois substantivos. Diferente
de Polícia Militar, onde o vocábulo “militar” (aí sim, adjetivo) qualifica o
substantivo “polícia”. E também, para dirimir dúvidas, o composto
“policial-militar” pode ser de dois adjetivos (com hífen) quando conjuntamente
qualifica algum substantivo: “quartel policial-militar”, “inquérito
policial-militar”. Bem, creio que agora podemos adentrar o assunto objeto desta
reflaxão...
Em primeiro lugar a palavra “FORÇA”, que
genericamente significa toda causa capaz de produzir um efeito. Há inúmeras
denotações expressas em dicionários, mas interessa ao estudo o seu sentido de
ação que modifica um estado, uma situação. Já faz parte da tradição incluir-se
na ideia semântica a associação da palavra “FORÇA” como “conjunto de formações
militares de um Estado” (Larrouse, Koogan – Pequeno Dicionário Enciclopédico).
Este é um sentido substantivo que já serviu no passado para designar muitas
Polícias Militares como “FORÇAS PÚBLICAS”.
A palavra “SERVIÇO” tem denotação bem
diversa, significando, basicamente, “préstimo, utilidade, tarefa”. Em resumo, “SERVIÇO”
significa “ação ou efeito de servir” (Larrouse, Koogan).
Por último a palavra “SEGURANÇA”, cujo
sentido geral, na Doutrina do Direito Administrativo da Ordem Pública, é o de “GARANTIA”
contra algum antivalor ou risco à Ordem Pública. O mestre Diogo de Figueiredo
Moreira Neto assim sintetiza o entendimento sobre “SEGURANÇA”:
“Dizer que alguém ou algo estão seguros
equivale a afirmar que estão garantidos contra tudo que, previsivelmente, possa
lhes opor. Não há garantia absoluta, logo, não há segurança absoluta...”
(Direito Administrativo da Ordem Pública, Forense, p.125).
Ainda segundo o mestre, a função-síntese
do Estado é a de “prestar segurança”, ou seja, é a de garantir todos os valores
que a informam, tanto os ligados à pessoa humana, individual ou coletivamente
considerada na convivência social, quanto ao patrimônio. Observa-se,
entretanto, na citação anterior, a referência expressa à imprevisibilidade
desta segurança, elemento de grande valia para esta reflexão.
Desta maneira, as expressões “FORÇA DE
SEGURANÇA” e “SERVIÇO DE SEGURANÇA” guardam entre si alto grau de
subjetividade. Mas é possível estabelecer um campo de análise bem claro a
partir da acepção da palavra “FORÇA” como oposição a algum antivalor de
natureza mais grave, e de “SERVIÇO” como ação utilitária em razão da evitação
de antivalores mais amenos ou de menor risco. Portanto, é perfeitamente viável
conceber as duas situações num quadro de convivência social. E este é o ponto
cruciante da questão: determinar o exato limite de transição entre a
necessidade de utilizar a “FORÇA”, como complemento ou substitutivo do “SERVIÇO”,
na manutenção da ordem pública, sendo certo que pode ocorrer a necessidade de
exercitar ambos ao mesmo tempo e até num mesmo ambiente social.
O tema é bastante vasto e difuso. Por
isso é indispensável torná-lo mais pragmático, a fim de melhor associá-lo à
realidade das Polícias Militares, que têm na preservação e na restauração da
ordem pública sua missão precípua. E aqui novamente cabe o ensinamento de Diogo
Figueiredo Moreira Neto, quando ele apresenta duas acepções para a Ordem Pública:
a “DESCRITIVA OU MATERIAL“ e a “NORMATIVA OU FORMAL”. A primeira representa a
situação de fato, o modelo real, o “SER” da convivência social; a segunda
informa o conjunto de valores, de princípios e de normas que se pretende devam
ser observados. É o modelo ideal, um sistema abstrato de referência, que os
administrativistas designam como “sobredireito” ou “leis de ordem pública”, o
“DEVER SER” daquela convivência.
Este enfoque permite assegurar que a ORDEM
PÚBLICA MATERIAL é a projeção imperfeita da ORDEM PÚBLICA FORMAL, sendo a
primeira mais dinâmica que a segunda. Seria, pela ótica da Ciência Política, a
LEGITIMIDADE e a LEGALIDADE, respectivamente situações interagentes e até de
mesma conotação semântica, mas que dificilmente traduzem idênticos significados
na convivência social. É esta ORDEM PÚBLICA MATERIAL que representa o equilíbrio
indispensável à convivência harmônica e pacífica no âmbito interno do país. Por
conseguinte, é o principal OBJETO da SEGURANÇA PÚBLICA (SUJEITO DA AÇÃO), razão
maior da GARANTIA a ser promovida. Este equilíbrio, pela natureza real, está
sujeito a alterações constantes, em consequência das ações de grupos
insatisfeitos e de minorias criminosas e tendenciosas, fato comum nas
sociedades organizadas e regidas pela democracia capitalista.
Tem-se, destarte, a considerar, na
manutenção da ordem pública, a presença diuturna do SERVIÇO DE SEGURANÇA, cuja
configuração se insere num quadro de NORMALIDADE. Neste caso o ESTADO, através
de diversos órgãos específicos do SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA (POLÍCIA,
MINISTÉRIO PÚBLICO, JUSTIÇA, SUBSISTEMA CARCERÁRIO, DEFENSORIA PÚBLICA,
LEGISLAÇÃO PENAL ETC.), assegura o mínimo necessário de GARANTIA contra os
antivalores e riscos que possam vir a afetar a população. Assim, através dos
SERVIÇOS DE SEGURANÇA, são preservados os valores que informam a ORDEM PÚBLICA,
principalmente quanto aos aspectos da segurança, da tranquilidade, da
salubridade, do decoro e da estética.
Para efeito de melhor situar a FORÇA DE
SEGURANÇA, é preciso, também, fazer uma referência à SEGURANÇA EXTERNA. Esta,
missão precípua das Forças Armadas, refere-se às operações militares sob
hipóteses de guerra e à defesa do território nacional contra antagonismos
externos. Outra situação semelhante, também específica das Forças Armadas, mas
com o concurso de países aliados, é a SEGURANÇA COLETIVA. Nos dois casos,
trata-se de ações militares típicas, cujo objetivo é destruir ou neutralizar o
inimigo externo. Nessas situações extremas poderão as PPMM estar convocadas
pelo Exército Brasileiro, exercitando em complemento a DEFESA TERRITORIAL como
FORÇA DE SEGURANÇA.
Há ainda uma situação intermediária
denominada SEGURANÇA INTERNA, e que se refere a antivalores e riscos à ORDEM
INTERNA do país. A gravidade de um desequilíbrio qualquer na convivência social
poderá indicar a incapacidade de ação do SERVIÇO DE SEGURANÇA. Neste ponto
surge a FORÇA DE SEGURANÇA, cujas características variam de um país para outro.
Considerando a ideia de que a ORDEM INTERNA também possui seu caráter material
(“SER”), portanto não pode ser evitada pela simples proibição formal (“DEVER SER”),
a prática da vida coletiva tem exigido a intervenção do Estado através de
mecanismos destinados à GARANTIA daquela ORDEM INTERNA. Esta GARANTIA é a
SEGURANÇA INTERNA e seu instrumento de defesa doutrinariamente designado como
DEFESA INTERNA é a FORÇA DE SEGURANÇA. E com ela as grandes polêmicas...
Na França, por exemplo, já houve muita
confusão até se alcançar um modelo de FORÇA DE SEGURANÇA que não se envolvesse
diretamente os EXÉRCITOS DE LINHA, pois os seus integrantes não aceitavam
exercitar a missão de defesa da soberania do povo francês – desejável –,
juntamente com a de controlar distúrbios internos – indesejável sob todos os
aspectos. Tem sido assim em muitos países. Por isso, os Estados organizados têm
optado pela FORÇA INTERMEDIÁRIA (FORÇA DE SEGURANÇA), como forma de não
desgastar a boa imagem das Forças Armadas. Da mesma maneira, os integrantes dos
SERVIÇOS DE SEGURANÇA não aceitam de bom grado o desempenho das tarefas das FORÇAS
DE SEGURANÇA, pois não há nelas nada que lhes traga a simpatia da população.
Realmente, não é muito fácil entender um policial protetor do cidadão
trabalhador mudar radicalmente o seu papel para o de repressor daquele mesmo
cidadão do qual depende em termos de confiança, para levar a bom termo a sua
atividade de SEGURANÇA PÚBLICA. Por isso a FORÇA DE SEGURANÇA é o PATINHO FEIO
da história, apesar de sua inquestionável necessidade, porque, independente
disso, os distúrbios acontecem...
A saída mais usual dos países que se
enquadram na condição descrita tem sido a criação e manutenção de FORÇAS
FEDERAIS, como missões de DEFESA INTERNA e GUARDA FRONTEIRAS. Outros estendem as
missões a portos e aeroportos para evitar ociosidade. Essas forças são
militarizadas e utilizadas como serviços de segurança nas situações supracitadas
e nas cidades do interior, exercitando todas as funções policiais –
administrativas e judiciárias. Para
esclarecer, há um exemplo deste modelo num país fronteiriço ao Brasil que
adota: a GENDARMERIA NACIONAL ARGENTINA.
No Brasil, o sistema apresenta contornos
diferentes. Em primeiro lugar, as Forças Armadas, que até bem pouco tempo
interferiam diretamente na SEGURANÇA INTERNA, por meio de dispositivo
constitucional. Num segundo plano, as Polícias Militares dos Estados-membros,
com a dupla função: a de FORÇA AUXILIAR RESERVA DO EXÉRCITO – situação ainda
vigente – e a de POLÍCIA DE MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. A condição de FORÇA
AUXILIAR RESERVA DO EXÉRCITO representa a atividade de FORÇA DE SEGURANÇA, e a
outra condição, a de SERVIÇO DE SEGURANÇA. Este é um ponderável dilema para as
Policias Militares, pois a sua opção entre uma situação e outra independe de
sua vontade como instituição. Na verdade, independe até da vontade política do
Governador do Estado, porquanto está impedido de gerenciar totalmente as ações
da Policia Militar em razão dos interesses locais. Além dessa, outra situação
extremamente desagradável tem relação com a limitação funcional das Polícias
Militares, que somente exercitam as atividades de polícia administrativa – a
atividade de polícia judiciária é exercitada pelas Polícias Civis.
Este modelo brasileiro é, no mínimo,
paradoxal, pois mesmo admitindo como precípuas as atividades de manutenção da
Ordem Pública, ou seja, a SEGURANÇA PÚBLICA, ou o SERVIÇO DE SEGURANÇA, o
controle das Polícias Militares pelo Exército é quase absoluto, pois envolve
estrutura, efetivo, armamento, adestramento, etc. desta maneira, em razão da
infundada preocupação com a SEGURANÇA INTERNA – ou não estamos numa democracia?
– as Polícias Militares encontram-se na situação de “mariscos” nesta briga
entre o “mar e o rochedo”.
A grande questão, no modelo atual, é saber
como e quem dimensionará as prioridades das Polícias Militares, a fim de que
elas profissionalizem otimamente os seus quadros. A conjuntura federal
preocupa-se (AINDA?) com a SEGURANÇA INTERNA. Por sua vez, a conjuntura
estadual deve determinar a prioridade para a proteção de pessoas e exigir que o
policial-militar possua flexibilidade para atuar contra o crime, para socorrer
um enfermo, um alienado mental, para realizar um parto de emergência etc. Pois
tudo isso corresponde à realidade social, à ORDEM PÚBLICA MATERIAL, ao dia a dia
da convivência coletiva do Estado-Membro. Em resumo, o policial-militar deve,
por lei, exercitar com presteza o seu papel de protetor; mas no dia seguinte
tem de estar adestrado o suficiente para formar um “escalão à direita” a
controlar piquetes e distúrbios promovidos por aqueles que na véspera eram seus
“protegidos”. Talvez seja redundante, mas é preciso esclarecer que um
trabalhador, quando se manifesta publicamente para reivindicar o que ele
entende como direito, nunca aceita a hipótese de estar cometendo ilegalidade.
Portanto, ele nunca entenderá o policial que o reprime e
certamente não colaborará, em situação normal, com o seu “protetor-agressor”. É
possível trabalhar bem nessas condições?...
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