Jornal O GLOBO de 15/02/2015
“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que
fazem o mal, mas por causa dos que o veem e fazem de conta de que não
viram.” (Albert Einstein)
Acabou a “lua de mel”?...
O título do artigo é deveras sugestivo, e à
primeira vista (muitos só leem o título, que é o continente, e ignora o texto,
que é o conteúdo) parece que vai lascar o pau nas UPPs e no seu principal
mentor, o secretário Beltrame. Mas não foi a intenção dos articulistas, que, no
fundo, concordam com o discurso do secretário desde os primeiros momentos da
implantação de UPPs: não se resolverá o problema da violência só com ação
policial.
O texto encerra um precioso argumento no
contexto do processo entrópico que afeta as UPPs, além da absurda pressa em
expandi-las para atender a fins eleitorais dos gestores políticos. Também depõe
a favor do secretário Beltrame o fato de ele não ter sido candidato a cargo
eletivo, o que põe sobre os ombros principalmente do ex-governante Sérgio
Cabral a megalômana decisão da PMERJ de instalar UPPs a torto e a direito,
cumprindo em resignação ordens políticas sem qualquer embasamento técnico no
seu nível de vivência institucional. Pois caberia à PMERJ o papel de
desacelerar o programa em vez de avançar como um soldado que em acesso de
loucura sai de sua trincheira e parte de peito aberto em direção à trincheira
inimiga. E tem morte certa.
Entendo,
porém, que os ilustres articulistas pecaram pelo reducionismo ao defender quase
que como bastante ao sucesso das UPPs a garantia do direito dos favelados à
propriedade. Creio que seria mais apropriado ampliar o campo desta discussão,
lembrando que não apenas faltou a implantação desse importante direito social,
mas também os gestores não atenderam às favelas com serviços básicos de saúde,
educação, saneamento básico, iluminação pública, lazer etc. Foram todos
solenemente ignorados pela Prefeitura do Rio e pelo Governo do Estado. Na
verdade, esses direitos, – anunciados pelo secretário Beltrame como
prolongamento da ação policial, muitas vezes em tom de reclamação, – esses
direitos continuam negados aos favelados, o que nos deixa a impressão de que os
gestores políticos acima dele, Beltrame, empurraram-no porta fora do avião... sem
paraquedas.
Ora bem,
mesmo assim a PMERJ e o secretário não recuaram. Seguiram teimosamente em
frente ocupando novos territórios, mesmo sabendo que não haveria retaguarda
suficiente a abastecer a linha de frente. Avançaram, sim, a cumprir ordem
política, tal como os exércitos napoleônicos o fizeram em terras russas:
avançaram pensando encontrar na frente de batalha os recursos do inimigo, mas
só depararam com cidades em ruína e vazias de povo. Por isso morreram de fome e
frio, sem que lhes fosse possível receber ajuda da retaguarda. E quem me visita
regularmente neste blog deve lembrar que me arrisquei a esta visão prospectiva no
início da implantação das UPPs, nem tanto por mérito ou alguma intuição
oracular, mas por conhecer mui bem os políticos com os quais convivi de perto.
Mas quem sou eu para ser ouvido?...
Tudo bem,
continuo torcendo pela PMERJ, mas vejo “O fim das UPPs” (título do artigo) por
um ângulo estritamente de segurança pública, embora eu não seja bafejado pela
mídia como “especialista”, e também desconheça quais as credenciais exibidas
por aqueles que são assim legitimados, e por conta desta pomposa referência
emitem opiniões geralmente afinadíssimas com a linha de pensamento de
determinados setores da imprensa. Mas isto não me impede de também especular, e
o faço para oferecer aos leitores a oportunidade de outras reflexões, sem
desmerecer os “especialistas”. E que fique claro que não me refiro aos
signatários do artigo acima, que ora desdobro livremente. Porque todos são
efetivamente especialistas e gravaram um argumento de rara profundidade, destacando-se
a citação grifada pelo Jornal:
“A favela
não emerge como parte da cidade formal simplesmente porque... ela não é! E, até
que o seja, qualquer outra iniciativa se provará frustrante.”
A frase me
lembra Paulo Bonavides, renomado cientista político, quando diz que a
comunidade é orgânica e a sociedade é formal. Esta forte diferenciação não é tão
superável assim. Mas, claro, se não há nas favelas nem a formalidade do direito
à propriedade, como haverá de haver crianças devidamente registradas, existindo
no mundo oficial, mesmo que nasçam no mundo informal? Bem, o exemplo deve
bastar, e não creio que a realidade das favelas tenha mudado muito de 1975 para
cá: atuei na Defesa Civil de 1975 a 1979, e muitas vezes me vi diante de
crianças, – vitimas fatais de calamidade, – sem o registro de nascimento, este,
que era providenciado junto com o óbito para o enterramento. E em 1989 tornei a
vivenciar a mesma situação, como comandante de batalhão na Zona Norte do Rio: conheci
muitos e jovens sem registro de nascimento. Ora, o registro de nascimento representa
o início de tudo, em especial da cidadania. E sei que a população favelada
aumentou em progressão geométrica, enquanto os serviços públicos a elas
ofertados decresceram em quantidade e qualidade, ressalvadas algumas maquiagens
governamentais aqui e ali “para inglês ver”.
Nem é caso
de dizer, de tão óbvio, mas talvez por isso deva ser dito: o banditismo do
tráfico aumentou em extensão e profundidade pela razão simples do aumento
populacional, sempre maior nas camadas mais pobres. Nem digo sociedade porque
favela não é sociedade, é comunidade, e assim fico com o ensinamento de Paulo
Bonavides. Portanto, tornar lugar de paz uma comunidade orgânica não é tarefa
tão-somente de polícia. Daí as UPPs tenderem à entropia máxima e ao fim, se
algo não for feito de caminho. Mas este “algo” está muito além do sonho do
secretário Beltrame e de suas reais possibilidades funcionais e políticas. E
muito além da capacidade material e humana da PMERJ. Só não vê quem não tem olhos...
Retorno, por
fim, ao precioso argumento assinado por Paulo Rabello de Castro, Carlos Augusto
Junqueira e Ignez Barreto, concordando inteiramente com o seu conteúdo, com a
ressalva de que é um viés específico. Porém, fizeram bem em defender o secretário
Beltrame, que não deve ser admoestado, como vem sendo, em virtude das inegáveis
falhas políticas que estão pondo as UPPs em xeque. E como sou PM, para mim a
maior delas não é a apresentada pelos ilustres articulistas. Por isso sublinho
a absurda matança de PMs lotados em UPPs. E para mim tanto faz se “de serviço”
ou “de folga”, como se não fosse o assassinato desses PMs subsistema de um só
sistema: reação da marginalidade do tráfico ao programa das UPPs. Mas, do modo
difícil como as coisas estão, parece que a PMERJ enfiou as mãos num vespeiro e
não sabe mais como retirá-las...
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