quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Sobre a Lei Federal nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014 ("Disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, em todo território nacional")



(Texto da lei no final)


MEU COMENTÁRIO

Bom momento para consignar um rápido evento ocorrido comigo na principal rua de uma bucólica cidade do interior. Esta rua é bastante movimentada nas calçadas. O povo simples circula em intenso vaivém, e quando alguém faz menção de atravessar para o outro lado da rua os carros imediatamente param. Enfim, há a total e absoluta descontração, são raríssimos os eventos criminosos, a calmaria define a permanente situação de normalidade.


Gosto de passar pelas calçadas desta rua. Entretanto, a minha paz particular foi interrompida exatamente por uma guarnição de PMs. Curioso é que o fato, para eles imperceptível, para mim foi gerador de espanto. Porque o PM sentado ao lado do motorista da guarnição portava um fuzil com a coronha a seus pés e o cano para fora da janela, em perigosa diagonal que ao cruzar por mim me pareceu apontado para a minha cabeça. Fiquei então, além de irritado, imaginando quantas pessoas levaram o mesmo susto ou nem perceberam. Mais ainda especulei sobre a desnecessidade do porte de fuzis por guarnições interioranas, em locais onde raramente há confrontos com marginais portando iguais armas de poderoso efeito letal.


Não tive dúvidas em concluir que o PM não sabia nem carregar o fuzil no interior da viatura, quanto mais utilizá-lo com técnica em remotíssimo confronto. A arma nas mãos dele mais parecia uma vassoura, tal o desleixo com que a portava, ou seja, apontada ameaçadoramente para os transeuntes. Em singela distração...


Pensei parar a guarnição para repreender o PM. Contudo, como a hierarquia e a disciplina na PMERJ andam em máxima frouxidão, achei melhor não perder meu dia nem piorar ainda mais minha debilitada saúde. Até porque a culpa maior é de quem permite que PMs portem fuzis em locais pacíficos, interioranos, sob o pressuposto de que um dia qualquer ele poderá ser necessário. Ora, se o PM mal sabe manusear arma curta, chega a ser piada concebê-lo especialista em fuzil.


Falo tudo isto com a legitimidade de ter comandado batalhão em área de extremo risco (nono batalhão, em Rocha Miranda), em quartel com estande de tiro, e anotando a média de um tiroteio por dia (confronto com traficantes). Naquela época, as armas eram revólveres calibre 38, metralhadoras calibre 9mm e escopetas calibre 12.

Como fui por muito tempo instrutor de tiro e de comando no antigo RJ, a primeira providência minha foi a de pôr o estande em funcionamento, testando cada comandado (oficiais, graduados e praças) da linha de frente. Um a um, eles se foram enfileirando diante de mim, dia após dia, até que todos atirassem em alvos fixos a uma distância de 15 metros. Mas no início... Que fiasco!... Ninguém sequer acertava o alvo, quanto mais o “5X”, que fica na direção do coração, o ponto máximo, a nota dez do atirador. Se acertar nas extremidades do alvo, onde ficam os braços, a nota cai para dois. Um absurdo este alvo. É preciso mudar os conceitos do tiro (defensivo e ofensivo) rasgando todos esses alvos. Pois o policial é treinado para acertar o coração...


Se os PMs eram péssimos em tiro num ambiente em que efetivamente arriscavam suas vidas, imaginem no interior e numa cidade que lida, no máximo, com briga de marido e mulher, algum furto de bicicleta geralmente perpetrado por menor viciado em droga, e um discreto tráfico levado a efeito por bandidos sem ostentação nem mesmo de garrucha?...

Muito bem, depois de muito treinar a tropa, garanto que as coisas mudaram, os PMs iam às ruas mais confiantes e ligados a detalhes que simplesmente desconheciam. Como, por exemplo, sempre observar as mãos dos suspeitos, pois todo o perigo reside nelas, sendo desnecessário explicar algo além deste detalhe.


Ora, quem poderá garantir com absoluta certeza que os PMs que patrulham as ruas e logradouros do RJ sabem atirar com a precisão devida? Quem garante que eles ainda saibam montar e desmontar suas armas? Quantos ainda dependem do armeiro de suas unidades até para cuidar de suas armas particulares?...


Toda esta digressão é para focar a recente Lei Federal nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, que já ingressou nas redes sociais como “monstruosidade” a favor de bandidos e contra policiais. Não vejo assim, muito em contrário, creio que a lei chega em boa hora para alterar esta cultura da “guerra ao crime” cujo extremo está no exemplo que eu mesmo vivenciei na semana em que a lei foi sancionada.


Creio que o primeiro impacto da lei será o de os organismos policiais avaliarem as reais circunstâncias em que os fuzis são absolutamente necessários. Também urge a revisão dessas improvisadas blitze que já causaram a morte de muitos inocentes, incluindo crianças. A estrutura das blitze precisa ser urgentemente revista, em especial quanto à seletividade do uso da força como hipótese primeira. Porque sempre vejo poucos PMs, mal postados no terreno, sem segurança, parando aleatoriamente os carros de cidadãos livres, sem qualquer pressuposto além do “faro”, algo injustificável ante os princípios basilares do Poder de Polícia que informam o Ato de Polícia. Está tudo uma bagunça, tanto na capital como no interior!


Com a lei, é certo que as falhas decorrentes do seu descumprimento serão imperdoáveis, o que obrigará às instituições policiais a revisão da atual cultura que prioriza blitze a cercear o direito de ir e vir dos cidadãos. É hora então de apagar da cartilha operacional a banalização do uso do fuzil, que se deve restringir às operações especiais e aos atiradores de escol em situações extremas de repressão a criminosos perigosos. Usar fuzil como arma em virtude de hipóteses remotas deve ser simplesmente proibido, em desdobramento da lei federal em comento.


Que cada policial seja hábil no tiro de arma curta, sim! Que seja obrigado a treinar toda semana, com acompanhamento por instrutor de tiro em suas unidades! Em assim sendo, os próprios policiais readquirirão a perdida confiança em sua arma curta, esta que é suficiente para a sua defesa e para uso em ações repressivas, que não são a regra, mas a exceção, principalmente no interior.


Não falo aqui de arma não letal, que tem enorme utilidade em determinadas situações e em lugares onde até seria suficiente. Falo de arma curta (pistola, revólver, escopeta), nas mãos de policiais exaustivamente treinados durante toda a sua carreira e não apenas nos cursos de formação e aperfeiçoamento.

Por sinal, quando cursei o CSP vi colegas comandantes de unidades operacionais fechando os dois olhos ao apontarem a arma para um alvo distante 15 metros, em estande de quartel. Se um tenente-coronel, audaz, sem dúvida, tido como “operacional”, trancava as pálpebras na hora de atirar num alvo, em local seguro, imaginem os demais oficiais, graduados e praças nas ruas?... Vi também outro colega mirar e atirar nas nuvens, em vez de mirar e atirar no alvo...

Ora, esta é a realidade no RJ. Não sei nas demais PMs pátrias, mas já vi um vídeo com PMs nordestinos dançando forró com seus fuzis. Uma brincadeira, sim! Mas isto é modo de brincar com o fuzil?...

4 comentários:

Anônimo disse...

Excelente e corajoso artigo.
Se tais procedimentos fossem incorporados a rotina, teriamos muito menos problemas...

Anônimo disse...

Para o PM nada mudou. O que der errado vai na conta do praça mesmo.

Anônimo disse...

Emir disse:

Mudou sim. Agora está bem mais rigoroso o tema e o PM deve estar atento à lei para não se enrascar ainda mais. Um tiro sem necessidade, mesmo sem acartar alvo, pode custar o emprego. Uma reação desproporcional pode resultar em punição judicial. Daí é que todo cuidado é pouco...

Anônimo disse...

Meu chefe,há tempos atrás um PM foi parar no BEP por ter atirado pro alto numa ocorrência de tumulto generaliza-
do.Isso antes dessa lei.Nada mudou mesmo.Sempre será no praça com lei ou sem lei. Mais uma lei.Um país cheio de leis mas ninguém cumpra nada. Só recai no pequeno. Isso é brazuca.