Tais como luz e treva, justiça e injustiça são ombros
do mesmo corpo, são íntimos contrastes que regem a natureza humana, interferem
na vida em sociedade e norteiam decisões que afetam direta ou indiretamente a
existência cotidiana dos cidadãos. Ocorre que entre cada ponto e seu
contraponto existem situações multifacetadas, demandando complexas inferências.
Mas estas, que supostamente brotam da razão, são inevitavelmente subjetivas, e
nesta subjetividade habitam as emoções. Deduz-se, por conseguinte, que todas as
decisões humanas são maculadas na origem. Não sendo assim, estaremos diante de
“decisões divinas”, que muitas vezes o ser humano embriagado pelo poder toma
para si...
Esta confusa capacidade de discernimento, pelo menos
em teoria, pertence unicamente aos humanos. Por isso é que, ao avaliar
comportamentos, as sumidades às quais o Estado delega este poder (julgadores e
acusadores em geral) não se bastam nas leis e na razão. São, sim, afetadas por
emoções. Ademais, muitas leis são decorrentes de errôneas ou maliciosas iniciativas
legislativas. Já outras, embora consideradas precisas por seus operadores
administrativos, ministeriais e judiciais, dependem de mínima uniformidade de
inferência, o que é impossível, as emoções não lhes permitem. Sim, os humanos
não são tão hábeis em inferências isentas. Até esta argumentação que ora faço
longe está de ser isenta, já que meu escopo é o de influenciar o outro a ponto
de fazê-lo concordar comigo. Sim, sim, é este o escopo de quem se comunica, não
importando seu objetivo (justo ou injusto).
Daí é que cada interpretação, sempre subjetiva, só
pode ser avaliada ou reavaliada mediante interpretações igualmente saídas de
espíritos diversos, de caracteres diversos, de crenças e valores diversos. Enfim,
todas as inferências se situam entre a luz e a treva sem que ambas (luz e
treva) não passem de fade, assim como seus interregnos são incertos porque
oscilam tais como as imagens que somem e reaparecem aos nossos olhos fáceis de
serem enganados pelos mestres do ilusionismo. E é também como somos enganados
por textos e falas eloquentes...
Neste campo de incertezas atuam acusadores e
julgadores, sendo certo que os primeiros jamais se situam no âmbito natural da
dúvida, antes afirmam categoricamente suas falsas certezas em opiniões formais inalcançáveis
pela punição posterior. Que o ser humano é falível, não há de haver dúvida! Mas
talvez seus deslizes ocorram por culpa de más leis a lhe exigirem o absurdo de
acusar seus semelhantes ultrapassando a concretude dos fatos. Já os julgadores,
– devidamente influenciados pelas eloquências acusadoras que lhes vêm às mãos,
aos olhos e às mentes como verdades, mesmo que não passem de mentiras, –
preferem adotar o comportamento de Pilatos: lavam as mãos em secular publicidade
dos seus atos...
Extraindo-se as pompas publicitárias desses especiais
grupos com poder de decisão, e se lhes despindo as vestes e lhes retirando os símbolos
solenes, sobram-lhes nada mais que fragilidades psíquicas além das necessidades
fisiológicas... Daí é que não se lhes pode exigir justiça e equilíbrio como
regra nem como exceção. Estão, sim, aptos a acertos e erros endereçados àqueles
situados na pior de todas as condições: a de acusados. Por sinal, o único que
pode ser vítima da crueldade humana, esta que ignora erros e acertos para
atingir seus ignominiosos fins...
Deste modo, o acusado passa de pessoa a coisa,
torna-se mero objeto de observação, espécie de árvore a ser ou não decepada por
conta de maleável subjetividade. E quando faltam aos acusadores e julgadores argumentos
sólidos, por ignorância ou má-fé eles floreiam a acusação e a decisão punitiva com
filigranas jurídicas, citações monumentais e inúmeros et ceteras afins a uma irrealidade que se torna real na carcaça do
acusado.
Mas que seria realidade?...
Não se sabe. Nem a mais sábia das ciências se arrisca
a afirmar que exista alguma. Daí é que emergem muitas formas de afirmar e uma
só de negar. E ao lado das infindáveis afirmações postam-se acusadores e julgadores;
já ao lado da negação persigna o acusado na esperança divina de não mais sê-lo,
já que sua esperança terrena se vê transformada em nada. Como então, – num
drama humano de tal extensão e de tão tamanhona gravidade, que não raramente se
torna trágico, – como saber quem representa a luz da verdade e quem se oculta
na treva da mentira?... Ora, na dúvida há de predominar o poder formal e seu
principal tempero, a força bruta, que se poderia resumir ao aforismo: “Manda
quem pode, obedece quem tem juízo.”
É neste ambiente psicológico de usual desrespeito à
condição humana que os três personagens de nossa tragicômica peça teatral assim
se delimitam: acusador > acusado < julgador. E bailam em par constante a
justiça e a injustiça, como luz e treva confundindo-se numa só imagem em
distorção quântica. Eis o momento crucial da dúvida, que se desfaz na medida do
clamor da plateia que anseia pelo desfecho do foucaultiano
“castigo-espetáculo”: a punição. Aqui o julgador se vê numa encruzilhada:
atender ao acusador, com ele concordando e punindo o inocente, ou atender ao
acusado, inocentando-o. Deste circo de horrores é que emerge a tênue luz
traduzida pela indefectível escolha do castigo e do aplauso, destinando-se a
treva somente ao acusado. Mas no espírito do julgador se instalará também a
treva da injustiça feita, e ele há de se advertir dos seus funestos efeitos, a
não ser que seja psicopata, sempre uma forte possibilidade.
Para o ser humano, afinal, vaia é como injeção
dolorosa... E entre a dor do apupo pela justiça praticada e o prazer da ovação pela
injustiça aplicada, acusadores e julgadores preferirão naturalmente a segunda
opção. Sim, entre a luz e a treva, pois, há de predominar a luz a qualquer
preço, mesmo que cambiante. Porque, quando compete a alguém esta escolha, seja
julgador, seja acusador, ambos correrão em direção à “luz” da injustiça. Já ao
acusado restará, por via de consequência, a treva, para onde é lançado sem dó
nem piedade. No fim de contas, nela “os gatos são pardos”, nada se enxerga,
tudo se confunde. Esperar, pois, que haja a dolorida justiça em vez da cômoda
injustiça, é ledo engano! Optar pela dor é como atestar a existência da
realidade absoluta, esta que não existe a não ser no conceito e quiçá nem nele.
Por isso, talvez, é que Platão tenha dito na sua obra A República e As Leis: “A
vida do injusto é muito melhor que a do justo.”
Pondo-se em tudo isto a capacidade de o ser humano
influenciar o outro, por um lado, e a tendência deste outro de ser influenciado
(pela insidiosa arma da propaganda), tem-se então a injusta distorção da
realidade, sempre forjada na medida do interesse do acusador e do julgador,
sendo o primeiro adrede isento de responsabilidades, e o segundo ainda passível
de receber admoestações superiores, porém não menos subjetivas. E aqui nem se
fala em corporativismos... Mas não se trata de negar valor às referidas classes
nem pontuar quem quer que seja, e sim constatar o quanto é fácil acusar e julgar.
E o pior, mesmo, é ser acusado, ou seja, marisco nesta falsa luta entre o mar e
o rochedo...
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