“A versão brasileira da
organização formal do sistema de júri é um bom exemplo de como uma instituição
democrática popular e igualitária transformou-se pela cultura jurídica numa
instituição autocrática, hierárquica e elitista.” (Roberto Kant de Lima)
O cenário do júri já montado, as personalidades em seus
respectivos lugares: sete jurados, mui dignos representantes da formal
sociedade, todos em tronos soberbos postados lateralmente ao juiz e ao
promotor, estes, porém, entronizados no mais alto lugar do solene ambiente e
ombreados em imponentes cadeiras, que, em estilo, remontam aos idos del-rei. Na
outra lateral está o advogado de defesa, quase que rés do chão; e, por fim, o
réu, figura central da solenidade, sentado em cadeira comum, no patamar mais
baixo de todos, olhos cosidos no soalho, queixo colado ao peito, mãos
entrelaçadas em meio às pernas, pulsos algemados, pés nus e calçados apenas com
sandálias deformadas pelo uso.
É assim que
fica o réu, isolado em sua cadeira, diante do juiz, ele bem cá embaixo e o juiz
e o promotor bem lá em cima, como se fossem ambos quatro mãos segurando um só
martelo em posição de bater num insignificante prego. O réu, para variar,
negro, pobre, roto, esfaimado, nada mais que “prego social”.
Atrás, nas
arquibancadas, vê-se a entusiástica plateia, como aquela dos tempos romanos das
arenas e dos leões, plateia previamente credenciada e selecionada, todas as
pessoas recrutadas por algumas prestigiadas ONGs em razão do limitado espaço a
ser ocupado. Mais acima, no privilegiado camarote, repórteres voejam como aves
de rapina sobre a presa. Pronto, estão todos superpostos e em posição de
combate, com o réu reduzido a apenas um ponto negro e insignificante no centro
da arena. É hora de começar o espetáculo! Que sejam soltos os leões! Ó
respeitável público! Luzes, câmeras, ação!...
O JUIZ: – Qualificado o réu, Manoel Pedro da Silva, negro, sem
profissão, endereço incerto e não sabido. Lida a denúncia, ouvida a única
testemunha, feito o relatório, tudo conforme a magnânima lei, dê-se início ao
julgamento do famigerado réu pela acusação de tentativa de homicídio. Com a
palavra a insigne acusação.
O PROMOTOR: – Meritíssimo senhor doutor juiz, magnificentíssimos
senhores jurados, lídimos representantes da sociedade, vox populi vox Dei!...
1º JURADO (pensando):
“Que eloquência! Que frontispício! Que citação de abertura! A voz do povo é a
voz de Deus! Eu sou a sociedade, eu sou a voz do povo, eu sou a voz de Deus!
Que homenagem bem posta! Esse garboso jovem deve ser de importante família de
juristas.”
O PROMOTOR: – Estamos aqui, longânimes senhores jurados, neste
sagrado espaço da justiça, para vos sugerir a condenação deste contumaz
criminoso como dever cívico de todos nós! Como lídimo representante do Estado e
guardião das leis e da sociedade, peço-vos desde já a punição do réu à pena
máxima pelo crime que ele cometeu, pois assim é que tout est bien quui finit bien...
2º JURADO (pensando):
“Que capacidade de síntese! Que erudição! Saiu do latim para o francês como
quem passa de uma sala para outra! Tudo o que termina bem, está bem! Que
inferência! Este belo rapaz deve ter estudado na Sorbone.”
O PROMOTOR: – Magnificentíssimos senhores jurados, o Estado tem a
certeza de que o réu é culpado. A vítima, uma nobre e indefesa senhora de
oitenta anos, não teve qualquer dúvida em identificá-lo. É certo que a defesa
apelará para a falsa ideia de que a vítima usa óculos de grau, que era noite
fechada, que esquecera seus óculos em casa, entre outras falácias e sofismas.
Não acrediteis! Uma pessoa tão lúcida, tão inteligente, e de tão boa estirpe,
como esta senhora, vítima, nunca se enganaria ou se prestaria a ser imprecisa.
Também é certo que a defesa de Manoel Pedro da Silva apelará para a alegação de
erro de pessoa, como já insinuou no processo. Apelará, é certo, para o in dubio pro reo... Ah, mero sofisma! Pois
certo é que in dubio pro societas...
Por isso, não acrediteis nas lucubrações da defesa! Nós somos o Estado e a
Sociedade unidos contra o mal que nos assola! Tenhamos, pois, o máximo de
cautela contra esses argumentos de falsas dúvidas em favor do réu, que
certamente virão...
3º JURADO (mulher nova – pensando): “Que elegância! Que terno alinhado!
Que pão! Que bonitinho! Que cabelo bem arrumado! Será que ele tem namorada?”
O PROMOTOR (alçando catedraticamente a mão esquerda, e assim
brilhando seu belíssimo anel de grau, presente do pai na formatura): – Como vos
estou a dizer, nobilíssimos jurados, a verdade, somente a verdade estamos aqui
expondo. E ela é somente uma: o réu é culpado e deve ser condenado! Não vos
digo isto apenas em razão de gratia
argumentandi, mas por certeza de sua culpabilidade. Credes, veneráveis
membros da sociedade, horribile dictu é
que o réu é o indiscutível autor do crime. Mas o dever do Estado é o de punir
os criminosos, sine ira et studio.
Assim o faço desde que iniciei minha brilhante carreira, vitam impendere vero...
4º JURADO (pensando): “Que irresistível intelectualidade! Que
discurso! Que citações! Horrível de dizer, mas sem cólera, nem favor! Isto é
que é consagrar a vida à verdade! Quem me dera ele fosse meu filho!”
O PROMOTOR: – E mais vos digo, excelentíssimos senhores jurados. A
prova testemunhal, trazida pela ilustre vítima, e a firmeza desta não menos
eminente testemunha em identificar o réu como o criminoso, não permitirão à
defesa a sofística argüição do to be or
not to be: that is the question.
5º JURADO (Mulher
velha – pensando): “Que maravilhoso! Ser ou não ser, eis a questão! Que lindo!
Que menino bem apessoado! Quem dera que eu fosse a sua mãe! Que orgulho ela
deve ter desse filho!”
O PROMOTOR: – Vejais bem, veneráveis jurados. Que o criminoso
atentou contra a vida da nobilíssima senhora vítima, não há dúvida! Mas a
defesa vem alegando que ele não foi ele, que seria impossível sua identificação
por parte da vítima, que negros no escuro se confundem... Assim, deste modo
grosseiro, tenta a defesa, sem outro argumento mais consistente, desculpar o
réu. E, pior, o réu não quer confessar que atentou contra a vítima e muito
menos quem o mandou executar a terrível empreitada criminosa... Pois é certo
que o homicídio foi encomendado. Também tentará a defesa, como já vem tentando,
desmoralizar o testemunho do ilustríssimo doutor que acompanhava a vítima no
momento do atentado, sob a singela alegação de que tão nobilíssimo cidadão não
poderia identificar o criminoso, com a precisão que o fez, por não enxergar
bem. Sim, venerabilíssimos jurados, apelará a defesa para o testis unus, testis nullus. Mas estamos
atentos a isso, e espero que os senhores e senhoras também o atenteis.
6º JURADO (pensando): “Que rapaz ex professo! Este conhece a fundo a questão! Que capacidade de
antecipação! É lógico que o testemunho é único, mas pesado a ouro de sapiência
e de credibilidade... E que posturas e modos de se nos dirigir a palavra! Se me
fosse permitido, eu o aplaudiria entusiástico e de pé!”
O PROMOTOR: – Sim, magnificentíssimos senhores jurados. Culmino a
minha acusação com a convicção de que o criminoso daqui não sairá impune.
Estamos diante de um caso que nos permite declinar a máxima et crimine ab uno disce omnes. Por esse
crime particular, pode-se imaginar que em outros crimes esse réu ainda poderá
cometer! Deixamos claro o quis, quid, ubi
quibus auxillis, cur, quomodo, quando. Não há mais que fazer, a não ser
aguardar, sereno, que o réu receba o castigo que merece, em respeito à ilustre
vítima, ao Estado e à Sociedade, esta que aqui está tão bem representada pelos
nobilíssimos senhores jurados, eis que vox
populi vox Dei.
7º JURADO (pensando): “Que espetáculo à parte a acusação! Que
citação probatória apropriada: quem, quê, onde, por que meios, por que, como e
quando... Duvido que o reles advogado tenha entendido tão solene latinização...
E muito menos o réu... Duvido que o pobre-diabo do advogado de defesa do réu,
aqui e hoje, consiga alguma coisa! E que elegância do promotor ao apontar o
réu! Que gesto magnânimo! Se ele nada falasse... Só apontar o réu como culpado,
da forma como o fez, para mim seria suficiente.”
O JUIZ (cumprimentando efusivamente o promotor, agora retornando
ao seu assento, ao lado do juiz, lá no alto): – Que a defesa ocupe a tribuna e
inicie a sua parte!
O ADVOGADO: – Senhores jurados, serei breve. Estamos aqui para
julgar um réu injustamente acusado. Quem está qualificado nos autos é Manoel
Pedro da Silva, que na data dos fatos teria atentado contra a vida da vítima.
Quero-lhes acrescentar apenas dois argumentos, simples argumentos, bem simples
mesmo: o réu que aqui está sendo julgado não é Manoel Pedro da Silva. Seu nome
verdadeiro, de registro oficial, em cartório, é Pedro Manoel da Silva. Também
as digitais constantes na ficha referente a Manoel Pedro da Silva não conferem
com as do réu. Em resumo: um não é o outro! E, para encerrar, juntei no
processo a prova de que o réu estava na Bahia na data dos fatos. Portanto não
poderia, nunca, estar aqui no Rio, e muito menos atentar contra a vida de
ninguém! É só o que lhes tenho a dizer, além de discordar de tudo aquilo que o
promotor eloquentemente salientou, que não corresponde à verdade dos autos e
nem à realidade dos fatos. E lhes reafirmo: o réu é negro, e não poderia ser
reconhecido à noite e no mais completo breu por duas pessoas idosas e que
sabidamente enxergam mal. Mas nem precisava apelar para estes argumentos para
defender o réu. Pois é certo que o criminoso não é ele!...
OS SETE JURADOS (pensando em uníssono): “Que coitadinho! Que
malsucedido na profissão! Com essa roupa puída e deselegante, – e com esse
discurso sem vida e despido de intelectualidade, – que pretende esse advogado
aqui? Isto é até uma afronta ao meu juiz e ao meu promotor! E que relógio
incompatível! Como esse advogado teve a petulância de vir para cá com esse
relógio de borracha no pulso? Que cabelo malcuidado! E nem barba fez! Será que
tomou banho, pelo menos? Ah, que mau gosto!”
O JUIZ (sem dar a mínima para o advogado): – Que os senhores
jurados se retirem à sala secreta, para a votação!
(Pausa de meia hora, retorno dos jurados)
O JUIZ: – Por decisão unânime dos soberanos jurados, o réu foi
considerado culpado! Farei a leitura da sentença reprovadora de sua conduta
criminosa. Ele deverá ser recolhido à cadeia pública.
Feita a
leitura, recolhido o atônito réu, enquanto o promotor dá entrevista à imprensa,
sorrindo, vitorioso. Os jurados discretamente se retiram para suas residências,
na Zona Sul, com a certeza do dever cumprido. Fecham-se os panos do cenário de
mais um inocente, – negro, pobre e sem nome, – na cadeia, como nos velhos
tempos... Abrem-se os panos dias depois, ao segundo ato. E nele surge um corpo
caído ao chão, inanimado, o sangue escorrendo em torno dele. É a distinta
senhora que acaba de ser assassinada pelo verdadeiro criminoso, este que veio
consertar a falha anterior...
3 comentários:
O pior,coronel,é que o sistema sitado acha que realmente estão no olimpo.Tem um monte lá na mão de macaco.Somente mesmo o Sr mesmo pra escrever em tom poético ou romântico estas verdades.
Esta narrativa me trouxe à lembrança um livro que li na década de 70 cujo título é "Submundo da Sociedade" de Adelaide Carraro; livro este censurado, como era a maioria dos livros dessa escritora polêmica que gostava de descortinar os alicérceres do três poderes. Coincidentemente a história conta que um cidadão negro e pobre fora injustiçado, pior fora assassinado por conta de um crime que não cometera.
Emir disse;
A alegoria serve a muitos casos e o sistema de injustiça denunciado se aplica a muitos países em épocas diversas.
A questão da concentração do poder estatal é por si só muito grave. E quando o poder é transferido para leigos influenciáveis por eloquentes, torna-se o exercício da injustiça mais grave ainda. Na verdade, é tudo encenação hipócrita, com os personagens fingindo seriedade e isenção enquanto se corroem por dentro esperando a hora de envenenar a presa tal como faz o escorpião.
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