Um
pouco de história do militarismo nas PMs
Antes
de as PMs serem jorradas nas ruas pelo regime militar, elas eram quase que
totalmente aquarteladas. Funcionavam, porém, como polícias administrativas em
grandes eventos como carnaval, jogos de futebol, shows artísticos, calamidades
públicas e quejandos, com efetivos comandados como tropa (Policiamento
Extraordinário – Diretriz Geral de Operações -1983). Nesta época, todavia, conhecia-se
sobre a atividade policial nada mais que o contido num Manual de Instrução
Básica Policial (IPBI) editado pela PM do Distrito Federal (PMDF) desde os
tempos em que a capital federal sediava-se no Rio de Janeiro.
Aqui
se ressalta um detalhe: o efetivo das polícias civis era precário e as PMs
pulverizavam boa parte de seus efetivos em destacamentos isolados, alguns tão
distanciados da sede como se enfiados no “fim do mundo”. Por meio dos destacamentos,
as briosas cuidavam de tudo em matéria de polícia, sendo o PM interiorano não
raramente designado “delegado de polícia ad hoc” por absoluta inexistência de
membros da coirmã em muitas localidades. E assim o tempo escorreu, com as PMs
provando ser efetivamente “esponjas de aço de mil e uma utilidades”.
Note-se
que a prevalência do comportamento operacional das PMs era a do militar, tanto
que o fardamento de graduados e praças incluía na cintura o sabre-baioneta do
Fuzil Mauser, alemão, fabricado em 1908, de calibre 7 mm, salvo engano meu.
Também era arma das PMs a metralhadora francesa Hotchkiss, além de outras armas
curtas que só vingaram no cinto dos PMs depois de fabricadas no Brasil, como o
inseparável revólver calibre 38. E muito demorou para o PM deixar o fuzil
ensarilhado e o sabre-baioneta desincorporado do seu uniforme, quando então, e finalmente,
ele saiu às ruas portando arma curta, escopeta e algumas metralhadoras INA de
péssima qualidade.
Na
realidade as PMs eram tidas como organizações predominantemente militares,
atuando bem mais a comando em ações operativas, incluindo-se a coerção de manifestações
populares tendentes a turbamulta, situação última em que a tropa atuava em formação
de controle de distúrbios civis (linha, cunha, escalão à direita, escalão à
esquerda etc.) sempre, claro, com o fuzil de baioneta armada e apontada para o
bucho dos manifestantes. Mediante comando, as formações avançavam marchando em
“passo de ganso” e a ponta da baioneta geralmente convencia os manifestantes
que morrer varados pela ameaçadora lâmina não valia a pena. E mais, era
intensivo o treinamento de ações operativas extremas (ações de Defesa
Territorial e de Defesa Interna) sob hipótese de grave perturbação da ordem por
“grupos subversivos”. Em outras palavras, muito treinamento de guerrilha e
antiguerrilha...
E
os regulamentos?... Ah, os regulamentos, sem exceção, eram os mesmos da força
principal, federal, da qual as PMs eram e ainda são forças auxiliares: o
Exército Brasileiro. E basta lembrar que as PMs, mesmo com outras denominações
(corpos policiais, guardas reais da corte e de províncias, forças públicas e
semelhantes), participaram guerreando em muitas comoções intestinas. E também
foram incorporadas como “Voluntários da Pátria” na Guerra do Paraguai, época em
que os militares provincianos eram “caçados a pau e corda”, expressão histórica
a explicar que a maioria da tropa das briosas era de vagabundos e escravos
libertos tratados a “pranchadas” (surra com a parte não cortante da espada).
Mas
havia, sim, voluntários, geralmente da casta e tornados oficiais com direito às
honras da patente. Sugiro a leitura do conto machadiano “O Espelho” para que o
leitor se familiarize com esses velhos tempos do poder militar comprado como se
fora material de consumo dos ricos. Do conto, destaco a lapidar frase que serve
a muitos propósitos em se tratando de militarismo ou de qualquer espécie de
poder que envaideça o ser humano a ponto de cegá-lo: “E o alferes eliminou o
homem.” Leiam!...
E a
história segue seu rumo, e as PMs têm mais histórias de militarismo e de
guerras e revoluções que de atividade policial, esta que se iniciou como
precípua a partir de 1964, tornando-se as corporações militares estaduais motivo
de muitas piadas em vista da pouca ou nenhuma cultura policial e da mínima
escolaridade pessoal. Eu mesmo, pelos idos de 1965, ingressei como soldado raso
numa PM (PMRJ), já com o segundo grau completo, único da turma de recrutas, a
maioria com escolaridade primária. E recebi muita “instrução” em sala de aula ministrada
por semianalfabetos... Sim, havia muitos ainda no serviço ativo, e só para se
ter uma ideia poucos anos antes (1954) a exigência para ingresso na Escola de
Formação de Oficiais (EsFO) da antiga PMRJ era a o curso ginasial. Portanto,
ainda conheci e recebi ordens de muitos superiores que mal sabiam discernir
sobre o que conseguiam ler, se é que conseguiam, com todo o respeito que eles
merecem.
Mas
alguns me poderiam questionar: “Que importância tem o conhecimento neste caso?”
Bem, eu lhes responderia, trazendo à lide Idalberto Chiavenato, que no prefácio
de sua clássica obra Introdução à Teoria Geral da Administração cita a frase de
Kurt Lewin: “Nada é mais prático do que uma boa teoria.”. E o renomado autor complementa
o raciocínio afirmando de sua lavra que “a teoria é terrivelmente
instrumental.” Enfim, o que ele comunica é a ideia da importância do
conhecimento para o desenvolvimento de “habilidades conceituais”, bem mais
importantes que as limitadas “habilidades práticas”, típicas de semianalfabetos
e analfabetos, mas por eles muito valorizadas, em especial se eles, embora
intelectualmente limitados, galgassem por antiguidade alguns andares mais altos
(“no militarismo antiguidade é posto”). Isto de fato ocorria na PMRJ, e eu vivenciei
esta época de trevas nem tão remota.
E
hoje? Existem trevas?...
Sim.
E acresço ao que afirmo a realidade de que até hoje, no sistema meritocrático que
caracteriza o militarismo, é possível supor que algum cadete, incorporado por
ser aprovado em concurso com o seu ensino médio concluído, logre se formar
oficial PM sem nada acrescentar à sua bagagem de conhecimento a não ser o que
aprendeu nos anos de formação (muitas abobrinhas e ordem unida!). E este mesmo
cadete, já oficial, entende que se basta intelectualmente, pois o CFO (Curso de
Formação de Oficiais) é considerado de nível superior (universitário). Mas o
fato de ele ter sido o último colocado em sua turma, ou, pior, de ter sido até repetente
e se formado aos trancos e barrancos não alterará sua carreira, que poderá ser meteórica
e deixar para trás os distraídos estudiosos que, enquanto se dedicavam a
recolher conhecimento dentro e fora da corporação, não faziam honras aos seus
superiores, muitos deles igualmente repetentes e últimos colocados nos seus
cursos, por conseguinte solidários com os demais bestuntos. É assim que anônimos
estúpidos ainda hoje alçam posições de poder e decisão, atropelando solenemente
os que por mérito deveriam decidir em funções para as quais estão mais
preparados, mas que, igualados aos detentores de cabeças de curto alcance, por conta
dos emblemas exteriores (fardas enfeitadas, brevês, medalhas etc.), amargam o
ostracismo, se tornam fade e vão à inatividade.
Resumo
aqui esta ópera bufa para criticar, sim, o desequilíbrio reinante no sistema militarizado
das PMs. Na PM que eu conheço (PMERJ), com mil desculpas aos que não gostarem, predomina
o desequilíbrio e até a inversão dos valores internos. E por conta talvez da
preguiça e da falta de interesse cultural é que as PMs em geral, com raras
exceções, apenas vêm vindo a copiar e a usar os mesmos regulamentos e manuais do
Exército Brasileiro, sendo certo que os da força federal são sistematicamente
atualizados e as forças auxiliares nem atualizam suas defasadas cópias.
No
caso da PMERJ, para não ser enfadonho, basta citar o Estatuto, que é cópia
autenticada do Estatuto do Exército editado em 1946, ou até antes, com
alterações principalmente nos critérios de promoção e outras ações visando ao
privilégio de alguns. Mas não resisto e me reporto ao Regulamento Disciplinar (cópia
malfeita do Regulamento Disciplinar do EB), dentre outros documentos que
ilustram o militarismo estadual, este que jamais existiu a não ser como malsinado
“clone” do que é praticado pela força federal.
Peço
desculpas pela digressão, mas pretendo chegar às PMs como coesa “instituição
nacional” para afirmar que, embora semelhantes entre si elas jamais
representaram a supracitada “instituição nacional” que só pode ser referida
entre aspas. A se falar de “coesão corporativa”, esta não ultrapassa o limite de
uma reunião anual de comandantes-gerais, estes que não representam nada mais
que poder eventual delegado por políticos aos quais devem estrita obediência.
Enfim, os comandantes-gerais de PM não representam nada permanente em termos
institucionais, porque o resultado dessas reuniões sempre foi vago... E se
desconhece que em qualquer tempo os comandantes-gerais de PM tenham se reunido
para criar comissões permanentes e por meio desta interação tenham instituído,
pelo menos como ideia a ser apresentada ao Congresso Nacional, uma lei orgânica
capaz de nortear todas as instituições, tal como faz o Ministério Público e
outros importantes órgãos estatais com representatividade nos Estados Federados
e na União.
Bem, neste
ponto não faltarão copistas a citarem a legislação federal, em especial o R.200
(Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares),
decreto-lei nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, para demonstrar a
desnecessidade de se criar uma lei orgânica para as PMs pátrias. Neste R.200
constam muitos conceitos, interessando-nos aqui os seguintes: “17) Legislação
Específica – Legislação promulgada pela União, relativa às Policias Militares.
18) Legislação Peculiar ou Própria – Legislação da Unidade da Federação,
pertinente à Polícia Militar.” A verdade é que por conta deste segundo item,
cada PM pátria segue um rumo diverso das coirmãs, o que as enfraquece em todos
os sentidos, em especial no conjuntural, pois é certo que todas as PECs e todos
os PLs que tramitam no Congresso Nacional não nasceram de iniciativa coletiva
das PMs e a maioria das sugestões políticas são simplesmente aterradoras, pois
ou sugerem a desmilitarização ou a extinção das PMs sob o falacioso argumento
de que elas são violentas no trato cotidiano do cidadão brasileiro.
Ora, se
houvesse uma real integração entre as PMs brasileiras, elas poderiam se
fortalecer mediante a aprovação de um corpo de legislação que cuidasse dos seus
principais fundamentos institucionais, eis que já resumidos no Inciso XXI do
Art. 22 da Carta Magna: “Compete privativamente à União legislar sobre: (...)
XXI - normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias,
convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros
militares;” Bem, neste ponto devemos tornar a Idalberto Chiavenato, que
conceitua em sua renomeada obra supracitada a “organização” e suas “variáveis
básicas”: “tecnologia, pessoas, estrutura, tarefas, ambiente e
competitividade”. Portanto, num sistema democrático, com o Congresso Nacional
funcionando (?), não seria demais emergir uma lei complementar, orgânica, com o
centro na organização PM e suas variáveis, estas que vão além da norma
constitucional ao sugerir a importância da competitividade no mundo de hoje.
Porque é a competitividade das PMs que está em jogo, pois elas não estão
competindo contra seus adversários no campo conjuntural. Continuam crendo no
princípio muito criticado em Planejamento Organizacional no sentido de que as
organizações públicas têm “sete vidas”.
Não vamos
discutir aqui que as PMs existem ou deveriam existir com fins institucionais
mais claros e uma estrutura efetivamente capaz de cumpri-los. Definir esses
fins é preciso, reestruturar as organizações em âmbito nacional também é
preciso, e claro está que não mais será o Exército Brasileiro a fazê-lo, pois
este criou a Inspetoria Geral das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros
Militares (IGPM), órgão do Estado-Maior do Exército, apenas para supervisionar
e controlar o que existia antes de 1964, impedindo as PMs de se desenvolverem
com o foco no mais grave problema que a sociedade brasileira hoje enfrenta: a
crescente criminalidade, que, se ontem era uma estrada poeirenta e as PMs já
nela circulavam com carros velhos ou a andando a pé, hoje é uma estrada
pavimentada e as PMs nelas circulam com carros sem rodas, sem freios, sem nada.
E como castigo intentam extingui-las sob o pretexto de desmilitarizá-la por
serem elas “violentas”, embora não mais façam uso do fuzil com baioneta armada
para conter turbamultas, usam apenas esparadrapo para curar fratura exposta, o
que ocorre igualmente no seu cotidiano de “combate ao crime” com algumas
falseadas pitadas de “integração comunitária”, dentre as quais as badaladas
UPPs que viraram o efetivo da PMERJ de ponta-cabeça.
5 comentários:
Caro amigo,todo esse histórico da PM é verdadeiro, e a sua análise muito inteligente!Confesso que estou muito aquém dos seus conhecimentos, e, gostaria de fazer uma leitura dos seus livros, para poder avaliar a extensão do problema relativo á PMERJ, E EMITIR UMA OPINIÃO PESSOAL!
Concordo com quase tudo o que aqui foi explicitado!gostaria apenas de emitir um parecer pessoal quanto ao preparo intelectual dos dirigentes corporativos, os quais muitas vezes parecem inaptos para o cargo, mas no meu entendimento pode também não se tratar disso, mas de conivência com os interesses políticos dos governantes, os quais não admitem que se lhes contrarie a sua vaidade e os interesses imediatistas de seus projetos eleitoreiros que sobrepujam o que conhecemos como "Bem Comum"!sempre relegado ao descaso! Conheço políticos desse quilate, e, que chegam ao cúmulo de apesar do baixo nível cultural, se julgarem verdadeiros sábios e profundos conhecedores de Segurança Pública! Me causa perplexidade, pessoas mui inteligentes e preparadas apoiarem tais tipos de políticos profissionais! Logo não desposo sómente a questão do pretenso despreparo dos nossos dirigentes corporativos!
Emir disse:
Caro Ralph, mande-me seu endereço que lhe envio alguns livros com maior prazer.
Ralph o nono parágrafo resume nossos dias atuais. E sem embargo, dias cinzas estão por vir...
Caro Tom,na minha época, conheci alguns oficiais que se encaixavam perfeitamente na aludida descrição, mas que nunca acreditei que pudessem alçar postos elevados! Pelo que pude depreender eu estava redondamente enganado!
Nossos filhos adolescentes Aninha vão mudar esse dejeto dos "brasis".
Continue escrevendo, escrevendo, escrevendo. Após duas cirurgias nesse em seu coração valente meu caro: Ainda tens bastante para brincar seus leitores.
SÓ CONHEÇO TRÊS HOMENS DE PALAVRA - Sim, sim - Não não ! JESUS CRISTO, JORGE PICCIANI E EMIR LARANGEIRA - Bjus em seu coração ! Diga-se - BJUS e gratidão !!!
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