O militarismo nas PMs
vem de longe no tempo e sempre tentou ser mais realista que o rei, ou seja,
mais rigoroso que o exercitado pelas Forças Armadas. Lá atrás se compreendia
tal rigor, a cultura da tropa era outra, de natureza rigidamente militar e
muito pouco ou nada policial. Não sei disso por acaso: vivenciei na família, desde
as gerações passadas, o militarismo na antiga briosa, inclusive em tempo de
guerra (da minha geração falo depois...). Mas não significa crítica ao
militarismo em si, apenas faço a constatação e a ilustro com fotos de irmãos do
meu pai, e do marido da irmã dele, minha tia, todos integrantes da então “Força
Pública” lá pelos idos de 1945 e anos anteriores e posteriores.
Primeira foto: tio José Braz Soares. Segunda foto: tio Acyr Larangeira. Terceira foto (criança no colo): tio Urany Larangeira. Quarta e quinta fotos (respectivamente PMs em pé e apoiado em joelho): o da esquerda, com cobertura diferente, tio Itassy Larangeira.
Era assim, rigidamente
militar, que a PMRJ e as demais PMs pátrias existiam nas Províncias depois
tornadas Estados Federados. E assim as PMs, militarizadas ao máximo, foram
jorradas nas ruas e logradouros pelo regime militar (1964), tornando-se
predominantemente “forças policiais”, ou “serviços policiais” ou sei lá que
designação cabe ao caso. E assim também a PM passou ser considerada “polícia
administrativa”, nada mais que metade da função da atividade policial cuja outra
metade (função) é a de “polícia judiciária”. Enfim, duas funções íntimas, dois
subsistemas de um só sistema, porém exercitados por duas instituições
independentes e não raramente conflitantes.
Aos leitores eu rogo
que concluam pelas fotos se estão diante de militares ou de policiais e ampliem
o horizonte do entendimento a todas as PMs brasileiras antes quarteladas e
depois redirecionadas para a atividade policial, deste modo perturbando a sua
natureza militar caracterizada pela coesão do que chamamos “tropa”, mesmo que
desmembrada em pequenos destacamentos, típicas guarnições militares (“fração de
tropa”). E aqui emerge naturalmente uma incômoda indagação: não teria sido
conveniente ao regime militar desmobilizar a numerosíssima tropa de PMs Brasil
afora determinando-lhes atividades diuturnas (e desgastantes) de polícia?
A indagação procede,
pois a pulverização dos efetivos militares estaduais, – postos agora em
atividades isoladas e extenuantes de “polícia administrativa”, – abalou, como
efetivamente ainda abala, os princípios norteadores do militarismo, tal como
assistimos funcionar mui bem nas Forças Armadas. Porque, no fim de contas, não
há como comparar um “soldado PM” ou um “sargento PM” ou um “oficial PM” com seus
equivalentes nas Forças Armadas, mormente no Exército Brasileiro, a não ser
pelos sinais exteriores da “força auxiliar” (farda, toques de corneta, insígnias,
divisas e alguns comportamentos das PMs como tropa em guardas de quartel,
formaturas solenes e desfiles militares). Ora, a atividade policial é ou deveria
ser predominantemente civilista, o que não a impede de atuar no modelo militar
de polícia, como o fazem as polícias civis aqui e mundo afora: vestem
uniformes, portam armas pesadas, e evoluem em formação militar de combate para eventualmente
enfrentar bandos fortemente armados.
Eis a questão atual,
que, para variar, se restringe a outra indagação: é necessário o militarismo
para fazer funcionar uma organização policial?... Minha resposta é não! E no
próprio Brasil há exemplos de polícias de natureza civil funcionando com base
na hierarquia e na disciplina (Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal,
Polícias Civis, Guardas Municipais etc.), assim como em todas as organizações
particulares há hierarquia e disciplina sem qualquer necessidade de serem esses
valores restritos ao militarismo. Na realidade, a rigidez do militarismo se faz
necessária em vista de hipóteses de guerra, o que não é caso das PMs, eis que elas
se exercitam quase que totalmente, ou totalmente, na atividade policial. E nem se
exercitam no que os administrativistas designam como “ciclo completo de
polícia”, ou seja, na atividade policial abrangendo simultaneamente as funções
de “polícia administrativa” e “polícia judiciária”.
Sem essa de que quem
não está satisfeito com o militarismo nas PMs que saia dele, que peça baixa!
Isto é discurso saudosista alardeado por alguns que ainda sonham com o poder de
mandar além da conta, e até das leis, ou que foram à inatividade e permanecem
alheios às mudanças ambientais, à evolução da sociedade, enfim, aos novos
tempos a exigirem novas posturas organizacionais. Ora, a defesa das tradições
não deve impedir a evolução estrutural das PMs. Sei, sim, que as tradições são
importantes, tais como são importantes os museus... Mas no ambiente social presente,
a mais e mais incerto e turbulento, não serão as tradições nem os rigores
militares que permitirão um controle social civilista, ou seja, a proteção como
inalienável direito dos cidadãos numa democracia, na qual não cabem mais
comportamentos típicos de “chantagem protecionista”, como denunciado pela
socióloga Martha K. Huggings, escudada em R. I. Moore (The Formation of a
Persecuting Society, Oxfordo, Blackwell) e em Charles Tilly (The formatio of
National States in Western Europe. Princeton, Nova Jersey, Princeton University
Press), respectivamente:
“(...) a transição de
uma ‘sociedade segmentar tradicional para outra governada por um Estado implica
uma mudança na definição de criminalidade’, que deixa de ser encarada como
delito contra indivíduos ou grupos específicos, para passar a ser vista como um
delito contra uma abstração, como o ‘interesse público’. De qualquer maneira,
ampliar a definição de perigos para súditos e cidadãos, e torná-la cada vez
mais abstrata, proporciona uma justificativa para que se desenvolva um aparelho
para conter o que é percebido como ameaça desse tipo.”
“(...) Os
construtores-de-Estados agem como empreendedores interesseiros que ‘criam...
uma ameaça e a seguir cobram... por sua redução’. Uma ‘chantagem protecionista’
organizada pelo Estado existe na medida em que as ameaças contra as quais um
governo protege seus cidadãos são imaginárias ou então consequências de sua
própria ação.”
Os argumentos em
sublinha se encaixam em muitas hipóteses, até mesmo inversas, dependendo de
qual “interesse” de algum governo. Explica, por exemplo, a pressa do regime
militar em jorrar nas ruas, como policiais, homens treinados exclusivamente
como militares, para atender à premente “ameaça da criminalidade”, que antes,
por sinal, inexistia... Enfim, pulverizando velozmente as PMs e lhes
determinando tarefas extenuantes e complexas, assim se anulou alguma possível
ameaça de as PMs de alguns Estados Federados se rebelarem contra o regime
militar por conta de lideranças políticas contrárias. Poderia ainda explicar o
fato de estranhas manifestações de ruas, recentes, partirem à turbamulta tendo
por trás políticos de altas esferas cedendo agentes públicos para compra de
pneus destinados à queima em vias públicas para interditá-las e causar o caos. Ou
subvencionando manifestantes com diárias em espécie e quentinhas, tal como se
faz em períodos de campanha eleitoral... Explica também, – pelo menos em tese, –
a violência de manifestantes (black blocs e semelhantes) contra a polícia,
fazendo-a reagir com igual violência para depois desestabilizá-la por meio de
críticas midiáticas, a ponto de se culpar o militarismo como “causa primeira e
natural” da violência. Enfim, explicam muitas hipóteses (“ameaças”) que foram
ou estão sendo postas em prática atualmente no país. Com que fim?...
Para quem duvida destas
possibilidades, basta aqui relembrar que um recente governante teve o desplante
de mandar a PMERJ invadir o quartel-sede com Corpo de Bombeiros do RJ, gesto tão
insólito e atrevido que poderia terminar em banho de sangue. E se o governante
mandasse invadir um quartel das Forças Armadas em igual rasgo de loucura?...
Como se vê, se antes as PMs era uma ameaça ao novo sistema político imposto
pela força (regime militar), hoje parece representar obstáculo a um novo
sistema político (bolivariano) que tenta se impor para dar fim às “ameaças”
representadas por manifestações e turbamultas orquestradas por ele mesmo
orquestradas, sendo a sugestão de um “Plebiscito” no país e a publicação de um
decreto inconstitucional suas vertentes mais aberrantes. Mas antes, claro, os
interessados necessitam eliminar as resistências militarizadas e armadas num
momento em que o militarismo se demonstra imprescindível...
Ora bem, tudo isto
acontece por falta de uma boa democracia, esta que se faz com boas leis. E realmente
não deve depender do uso de força estatal militarizada para funcionar. A força
militar deve voltar o seu peito varonil para as fronteiras exteriores do solo
pátrio e dar as costas para o povo que espera ser defendido contra agressões
externas por esta força. Do lado de dentro do país há de existir o Serviço Policial
nos Estados Federados e uma Força Intermediária Federal para atuar no
território nacional em caso de grave perturbação da ordem pública. Esta Força
Intermediária militarizada deve ser subordinada às Forças Terrestres (Exército
Brasileiro) com vistas à Defesa Interna e à Defesa Territorial, porém acionada
pelo Poder Central e controlada pelo Congresso Nacional o seu emprego em
situações de anormalidade. É assim em muitos países civilizados, diferentemente
daqui, em que cada Estado Federado possui sua “Força de Segurança”,
militarizada, exercitando a função policial administrativa e ao mesmo tempo
cuidando da grave perturbação da ordem pública como problema local num ambiente
que não mais é segmentado, mas é antes de tudo globalizado.
Supor que haja grave
perturbação da ordem pública, geralmente com componentes ideológicos, exceto
nas calamidades, como restrita aos limites estaduais, é vestir pele de tolo.
Supor que não haja vasos comunicantes entre manifestantes e turbamultas Brasil
afora, como atualmente assistimos ao vivo e a cores, é se cobrir com a pele da
ingenuidade. Há, sim, um emaranhado de explosões sociais que de naturais nada
têm, todas têm pavios compridos e disparadores em muitas mãos. Por outro lado,
a reação estatal se caracteriza pela desorganização, pelo desconhecimento da
extensão do problema social, e, principalmente, pela dificuldade de
identificação dos crimes que permeiam estas manifestações para punição dos
criminosos nos termos das leis vigentes.
A verdade é que não há
mais espaço para tratar cada ato público tornado violento em determinado bairro
brasileiro como se fosse ocorrência policial de simples registro e apuração em
delegacias distritais. O problema é global, nacional, e deve ser assim atalhado
pela polícia e pela justiça. Também a inteligência não pode ser compartimentada
e cuidada como “caixa-preta” por cada organização policial (militar ou civil,
estadual ou federal), incluindo-se com maior amplitude as Forças Armadas em
vista do imperativo constitucional que as torna responsáveis pela restauração
da lei e da ordem. Posto o problema desta forma, claro que atualmente o
“formato não segue a função” (o que é contrário à máxima arquitetural de Louis
Sullivan: “O formato deve seguir a função.”); ou seja, a estrutura pátria de
segurança pública não está apta a atingir seus objetivos, muitos deles
imprevisíveis, por falta de um autêntico Sistema Nacional de Segurança Pública
capaz de diagnosticar com profundidade o crime e outras formas de violência
para as atalhar eficazmente.
Enfim, tratar somente
de desmilitarizar as PMs (muitos intentam extingui-las sob a falácia de que
elas representam todos os males da boceta de Pandora) seria o mesmo que ofertar
esparadrapo para curar fratura exposta. O que é preciso, sem embargo, é reunir
todas essas forças militares e policiais para riscar um novo desenho do Sistema
Nacional de Segurança Pública, pondo o militarismo onde couber, retirando-o de
onde ele está ineficiente, juntando ou separando instituições e efetivos
segundo os anseios e valores de cada integrante dessas instituições, tudo com
atitude firme e isenção patriótica. Para tanto, deve-se incluir neste pacote o Sistema
Carcerário Nacional (uma vergonha), o Ministério Público e a Justiça Criminal,
incluindo a revisão das leis penais e processuais penais, estas sim, que devem
nortear as ações estatais num modelo democrático e civilizado, porém realista e
sem interferências ideológicas a não ser as da defesa da democracia e do
cidadão ordeiro como célula de uma sociedade livre, e não torná-la, – a
democracia, – cabide a pendurar fanatismos esquerdistas ou direitistas, como
hoje infelizmente se vê...
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