terça-feira, 12 de agosto de 2014

A lógica do militarismo nas PMs VII

O militarismo nas PMs vem de longe no tempo e sempre tentou ser mais realista que o rei, ou seja, mais rigoroso que o exercitado pelas Forças Armadas. Lá atrás se compreendia tal rigor, a cultura da tropa era outra, de natureza rigidamente militar e muito pouco ou nada policial. Não sei disso por acaso: vivenciei na família, desde as gerações passadas, o militarismo na antiga briosa, inclusive em tempo de guerra (da minha geração falo depois...). Mas não significa crítica ao militarismo em si, apenas faço a constatação e a ilustro com fotos de irmãos do meu pai, e do marido da irmã dele, minha tia, todos integrantes da então “Força Pública” lá pelos idos de 1945 e anos anteriores e posteriores.


 Primeira foto: tio José Braz Soares. Segunda foto: tio Acyr Larangeira. Terceira foto (criança no colo): tio Urany Larangeira. Quarta e quinta fotos (respectivamente PMs em pé e apoiado em joelho): o da esquerda, com cobertura diferente, tio Itassy Larangeira.


Era assim, rigidamente militar, que a PMRJ e as demais PMs pátrias existiam nas Províncias depois tornadas Estados Federados. E assim as PMs, militarizadas ao máximo, foram jorradas nas ruas e logradouros pelo regime militar (1964), tornando-se predominantemente “forças policiais”, ou “serviços policiais” ou sei lá que designação cabe ao caso. E assim também a PM passou ser considerada “polícia administrativa”, nada mais que metade da função da atividade policial cuja outra metade (função) é a de “polícia judiciária”. Enfim, duas funções íntimas, dois subsistemas de um só sistema, porém exercitados por duas instituições independentes e não raramente conflitantes.
Aos leitores eu rogo que concluam pelas fotos se estão diante de militares ou de policiais e ampliem o horizonte do entendimento a todas as PMs brasileiras antes quarteladas e depois redirecionadas para a atividade policial, deste modo perturbando a sua natureza militar caracterizada pela coesão do que chamamos “tropa”, mesmo que desmembrada em pequenos destacamentos, típicas guarnições militares (“fração de tropa”). E aqui emerge naturalmente uma incômoda indagação: não teria sido conveniente ao regime militar desmobilizar a numerosíssima tropa de PMs Brasil afora determinando-lhes atividades diuturnas (e desgastantes) de polícia?
A indagação procede, pois a pulverização dos efetivos militares estaduais, – postos agora em atividades isoladas e extenuantes de “polícia administrativa”, – abalou, como efetivamente ainda abala, os princípios norteadores do militarismo, tal como assistimos funcionar mui bem nas Forças Armadas. Porque, no fim de contas, não há como comparar um “soldado PM” ou um “sargento PM” ou um “oficial PM” com seus equivalentes nas Forças Armadas, mormente no Exército Brasileiro, a não ser pelos sinais exteriores da “força auxiliar” (farda, toques de corneta, insígnias, divisas e alguns comportamentos das PMs como tropa em guardas de quartel, formaturas solenes e desfiles militares). Ora, a atividade policial é ou deveria ser predominantemente civilista, o que não a impede de atuar no modelo militar de polícia, como o fazem as polícias civis aqui e mundo afora: vestem uniformes, portam armas pesadas, e evoluem em formação militar de combate para eventualmente enfrentar bandos fortemente armados.
Eis a questão atual, que, para variar, se restringe a outra indagação: é necessário o militarismo para fazer funcionar uma organização policial?... Minha resposta é não! E no próprio Brasil há exemplos de polícias de natureza civil funcionando com base na hierarquia e na disciplina (Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Polícias Civis, Guardas Municipais etc.), assim como em todas as organizações particulares há hierarquia e disciplina sem qualquer necessidade de serem esses valores restritos ao militarismo. Na realidade, a rigidez do militarismo se faz necessária em vista de hipóteses de guerra, o que não é caso das PMs, eis que elas se exercitam quase que totalmente, ou totalmente, na atividade policial. E nem se exercitam no que os administrativistas designam como “ciclo completo de polícia”, ou seja, na atividade policial abrangendo simultaneamente as funções de “polícia administrativa” e “polícia judiciária”.
Sem essa de que quem não está satisfeito com o militarismo nas PMs que saia dele, que peça baixa! Isto é discurso saudosista alardeado por alguns que ainda sonham com o poder de mandar além da conta, e até das leis, ou que foram à inatividade e permanecem alheios às mudanças ambientais, à evolução da sociedade, enfim, aos novos tempos a exigirem novas posturas organizacionais. Ora, a defesa das tradições não deve impedir a evolução estrutural das PMs. Sei, sim, que as tradições são importantes, tais como são importantes os museus... Mas no ambiente social presente, a mais e mais incerto e turbulento, não serão as tradições nem os rigores militares que permitirão um controle social civilista, ou seja, a proteção como inalienável direito dos cidadãos numa democracia, na qual não cabem mais comportamentos típicos de “chantagem protecionista”, como denunciado pela socióloga Martha K. Huggings, escudada em R. I. Moore (The Formation of a Persecuting Society, Oxfordo, Blackwell) e em Charles Tilly (The formatio of National States in Western Europe. Princeton, Nova Jersey, Princeton University Press), respectivamente:
“(...) a transição de uma ‘sociedade segmentar tradicional para outra governada por um Estado implica uma mudança na definição de criminalidade’, que deixa de ser encarada como delito contra indivíduos ou grupos específicos, para passar a ser vista como um delito contra uma abstração, como o ‘interesse público’. De qualquer maneira, ampliar a definição de perigos para súditos e cidadãos, e torná-la cada vez mais abstrata, proporciona uma justificativa para que se desenvolva um aparelho para conter o que é percebido como ameaça desse tipo.”
“(...) Os construtores-de-Estados agem como empreendedores interesseiros que ‘criam... uma ameaça e a seguir cobram... por sua redução’. Uma ‘chantagem protecionista’ organizada pelo Estado existe na medida em que as ameaças contra as quais um governo protege seus cidadãos são imaginárias ou então consequências de sua própria ação.”
Os argumentos em sublinha se encaixam em muitas hipóteses, até mesmo inversas, dependendo de qual “interesse” de algum governo. Explica, por exemplo, a pressa do regime militar em jorrar nas ruas, como policiais, homens treinados exclusivamente como militares, para atender à premente “ameaça da criminalidade”, que antes, por sinal, inexistia... Enfim, pulverizando velozmente as PMs e lhes determinando tarefas extenuantes e complexas, assim se anulou alguma possível ameaça de as PMs de alguns Estados Federados se rebelarem contra o regime militar por conta de lideranças políticas contrárias. Poderia ainda explicar o fato de estranhas manifestações de ruas, recentes, partirem à turbamulta tendo por trás políticos de altas esferas cedendo agentes públicos para compra de pneus destinados à queima em vias públicas para interditá-las e causar o caos. Ou subvencionando manifestantes com diárias em espécie e quentinhas, tal como se faz em períodos de campanha eleitoral... Explica também, – pelo menos em tese, – a violência de manifestantes (black blocs e semelhantes) contra a polícia, fazendo-a reagir com igual violência para depois desestabilizá-la por meio de críticas midiáticas, a ponto de se culpar o militarismo como “causa primeira e natural” da violência. Enfim, explicam muitas hipóteses (“ameaças”) que foram ou estão sendo postas em prática atualmente no país. Com que fim?...
Para quem duvida destas possibilidades, basta aqui relembrar que um recente governante teve o desplante de mandar a PMERJ invadir o quartel-sede com Corpo de Bombeiros do RJ, gesto tão insólito e atrevido que poderia terminar em banho de sangue. E se o governante mandasse invadir um quartel das Forças Armadas em igual rasgo de loucura?... Como se vê, se antes as PMs era uma ameaça ao novo sistema político imposto pela força (regime militar), hoje parece representar obstáculo a um novo sistema político (bolivariano) que tenta se impor para dar fim às “ameaças” representadas por manifestações e turbamultas orquestradas por ele mesmo orquestradas, sendo a sugestão de um “Plebiscito” no país e a publicação de um decreto inconstitucional suas vertentes mais aberrantes. Mas antes, claro, os interessados necessitam eliminar as resistências militarizadas e armadas num momento em que o militarismo se demonstra imprescindível...

Ora bem, tudo isto acontece por falta de uma boa democracia, esta que se faz com boas leis. E realmente não deve depender do uso de força estatal militarizada para funcionar. A força militar deve voltar o seu peito varonil para as fronteiras exteriores do solo pátrio e dar as costas para o povo que espera ser defendido contra agressões externas por esta força. Do lado de dentro do país há de existir o Serviço Policial nos Estados Federados e uma Força Intermediária Federal para atuar no território nacional em caso de grave perturbação da ordem pública. Esta Força Intermediária militarizada deve ser subordinada às Forças Terrestres (Exército Brasileiro) com vistas à Defesa Interna e à Defesa Territorial, porém acionada pelo Poder Central e controlada pelo Congresso Nacional o seu emprego em situações de anormalidade. É assim em muitos países civilizados, diferentemente daqui, em que cada Estado Federado possui sua “Força de Segurança”, militarizada, exercitando a função policial administrativa e ao mesmo tempo cuidando da grave perturbação da ordem pública como problema local num ambiente que não mais é segmentado, mas é antes de tudo globalizado.
Supor que haja grave perturbação da ordem pública, geralmente com componentes ideológicos, exceto nas calamidades, como restrita aos limites estaduais, é vestir pele de tolo. Supor que não haja vasos comunicantes entre manifestantes e turbamultas Brasil afora, como atualmente assistimos ao vivo e a cores, é se cobrir com a pele da ingenuidade. Há, sim, um emaranhado de explosões sociais que de naturais nada têm, todas têm pavios compridos e disparadores em muitas mãos. Por outro lado, a reação estatal se caracteriza pela desorganização, pelo desconhecimento da extensão do problema social, e, principalmente, pela dificuldade de identificação dos crimes que permeiam estas manifestações para punição dos criminosos nos termos das leis vigentes.
A verdade é que não há mais espaço para tratar cada ato público tornado violento em determinado bairro brasileiro como se fosse ocorrência policial de simples registro e apuração em delegacias distritais. O problema é global, nacional, e deve ser assim atalhado pela polícia e pela justiça. Também a inteligência não pode ser compartimentada e cuidada como “caixa-preta” por cada organização policial (militar ou civil, estadual ou federal), incluindo-se com maior amplitude as Forças Armadas em vista do imperativo constitucional que as torna responsáveis pela restauração da lei e da ordem. Posto o problema desta forma, claro que atualmente o “formato não segue a função” (o que é contrário à máxima arquitetural de Louis Sullivan: “O formato deve seguir a função.”); ou seja, a estrutura pátria de segurança pública não está apta a atingir seus objetivos, muitos deles imprevisíveis, por falta de um autêntico Sistema Nacional de Segurança Pública capaz de diagnosticar com profundidade o crime e outras formas de violência para as atalhar eficazmente.
Enfim, tratar somente de desmilitarizar as PMs (muitos intentam extingui-las sob a falácia de que elas representam todos os males da boceta de Pandora) seria o mesmo que ofertar esparadrapo para curar fratura exposta. O que é preciso, sem embargo, é reunir todas essas forças militares e policiais para riscar um novo desenho do Sistema Nacional de Segurança Pública, pondo o militarismo onde couber, retirando-o de onde ele está ineficiente, juntando ou separando instituições e efetivos segundo os anseios e valores de cada integrante dessas instituições, tudo com atitude firme e isenção patriótica. Para tanto, deve-se incluir neste pacote o Sistema Carcerário Nacional (uma vergonha), o Ministério Público e a Justiça Criminal, incluindo a revisão das leis penais e processuais penais, estas sim, que devem nortear as ações estatais num modelo democrático e civilizado, porém realista e sem interferências ideológicas a não ser as da defesa da democracia e do cidadão ordeiro como célula de uma sociedade livre, e não torná-la, – a democracia, – cabide a pendurar fanatismos esquerdistas ou direitistas, como hoje infelizmente se vê...

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