segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Ainda sobre UPP - o artigo de Eliana Souza Silva*

Fonte: Jornal O GLOBO

Desse modo, não assistiremos de forma passiva à ação das forças de segurança. Elas devem representar a chegada efetiva de uma perspectiva de presença republicana do Estado, e não funcionar como um "exército de ocupação", considerando que está em um território de guerra e com seus moradores sendo considerados a "população civil do exército inimigo". (Eliana Souza Silva)


Embora o texto esteja posto na íntegra, devo sublinhar o parágrafo acima para lembrar que no contexto da cultura operativa da PMERJ (e de todas as PPMM pátrias, diga-se de passagem), e mesmo que fora de moda, ainda há muito resíduo da doutrina de combate às guerrilhas urbana e rural, tendo a população como elemento de apoio aos guerrilheiros, situação que sempre dificultou a ação de tropas regulares, como as guerras de guerrilha mundo afora nos informam. Essas terminologias doutrinárias, focadas nas guerrilhas marxistas e nas forças regulares como seus oponentes, não faliram e jamais serão olvidadas por militares ocidentais. Pois assim se ensinou exaustivamente à tropa desde os tempos da paranóia comunista de “tomada do poder pelas armas”, por meio de guerras cruentas como a do Vietnã e outras sublevações contra o colonialismo europeu, tendo como principais protagonistas a Inglaterra e a França, que viam as insurreições como “empreitadas comunistas”... Outras guerras de guerrilha ainda subsistem na África e na América do Sul, o que decerto mantêm as Forças Armadas tupiniquins de orelha em pé. E se essa cultura de “combate ao inimigo interno” tomou de assalto a mente das FFAA pátrias em tempos passados, e se mantém latente em vista da geopolítica internacional e nacional, o mesmo ocorre com as Polícias Militares, eis que são forças auxiliares reservas do Exército Brasileiro, e como tais se obrigam à manutenção de estruturas militares antigas, e não podem renegar suas missões operativas de defesa interna gravadas na doutrina e levadas a treinamentos exaustivos em cursos de formação e especialização.


Doutrinar é ensinar, e não se há de negar o predomínio do sentimento militarista nas Polícias Militares e a manutenção de suas características de “força de segurança” em detrimento do “serviço de segurança”, este mais adequado ao labor policial. Enfim, as Polícias Militares foram doutrinadas pelo Exército por meio de cursos e material didático que falavam de tudo menos da atividade policial. Daí é que se aprendiam táticas de guerrilha urbana e rural, ou de conquista de territórios inimigos e de contrapropaganda no sentido de lograr o apoio da população nas regiões conquistadas ou em fase de conquista. Esse apoio da população era e ainda é considerado um poderoso instrumental de campanha bélica.


Ora bem, malgrado o fracasso retumbante de muitos exércitos no combate a guerrilhas, com destaque para os países citados, no Brasil houve um inegável sucesso do movimento revolucionário militar, este que durante anos segurou as cartas do poder em todos os seus campos – econômico, psicossocial, militar, político e quejandos. E as PPMM, durante esse longo período, foram imperativamente influenciadas pelo Exército Brasileiro no sentido de priorizar a defesa interna, e, portanto, ficaram impregnadas pela doutrina do combate ao “inimigo interno”, ao “subversivo”. Sim, foram condicionadas para pouco ou nada pensar e muito agir como os “corpos dóceis” de Michel Foucault. Sim, durante a ditadura militar o modelo de ação das PPMM pautava-se pela doutrina da força de segurança e seus desdobramentos práticos. Mas as ações policiais, paradoxalmente, emergiram em função da tomada de poder pelos militares. E foi a partir daí que as PPMM se lançaram maciçamente às ruas, claro que impregnadas da cultura operativa, tendo suas estruturas de força de segurança ainda hoje representadas pelo Batalhão de Operações Especiais, pelo Batalhão de Polícia do Choque e pelo Regimento de Polícia Montada. Vê-se então que o cachimbo é torto de origem, e o pau que lhe deu formato era mais torto ainda...


Visto o panorama geral, direciono agora meu raciocínio à PMERJ e seus graves problemas locais evidenciados pelo fato de ter sido plantada exatamente aqui, no RJ, a semente das facções criminosas inicialmente conhecidas como “falanges”. Essas facções são hoje identificadas por siglas e slogans inteligentes, capazes de produzir verdadeira “lavagem cerebral” no seio das comunidades carentes e em meio aos bandidos. E não somente por palavras de ordem, mas também por cores associadas às vitoriosas lutas de classe contra o capitalismo, em especial as lideradas por Fidel Castro, em Cuba, e por Vo Nguyen Giap e Ho Chi Minh no Vietnã, tudo associado a uma campanha mundial de propaganda política capitaneada pela China e pela Rússia. A esse caldo cultural de maus exemplos acresce-se a formação de mitos como Ernesto Che Guevara, Carlos Lamarca, Carlos Marighella e semelhantes, resultando dessas lutas da esquerda no campo e na cidade a formação e a proliferação do crime organizado como espécie de “revolta popular” contra o capitalismo cruel e fomentador da miséria de muitos em detrimento da riqueza de poucos. Pura falácia!... Mas foi nesse caldo de cultura que o crime organizado avançou e aprimorou seus slogans, como o Comando Vermelho (CV) e sua bandeira vermelha com os dizeres: “Paz, Justiça e Liberdade”. Tornou-se o crime comum, deste modo, espécie de componente político que não ficaria apenas nas armas e nas drogas, mas avançaria na política apoiando exatamente os grandes nomes da “esquerda heróica e vencedora” da ditadura militar.
 


Eis como o crime se tornou também um mito de reação à pobreza, à indigência e à miséria dos favelados, tudo associado aos grilhões ditatoriais contrários à “paz, justiça e liberdade”. Claro que, se de um lado se evidenciava a cultura do crime e seus ingredientes ideológicos, em autêntico glamour fomentado por gentes famosas e militantes da esquerda nacional, muitas delas viciadas em drogas, do outro lado o sistema situacional reagia como se enfrentasse efetivamente o “inimigo interno”, misturando-se ao imbróglio um sem-número de ideologias totalitárias marxistas, dogmas de pastorais penais e outras sem-vergonhices do gênero. Toda essa relação espúria da esquerda com o crime comum pode ser exemplificada por um fato que une indelevelmente essa turma como lados da mesma moeda: a criminalidade organizada e politizada como “cara”, e como “coroa” uma esquerda mal-intencionada a lançar oficialmente o livro “Quatrocentos Contra Um – Uma História do Comando Vermelho”, no ano de 1991... Trata-se de texto escrito pelo prócer do CV, William da Silva Lima (O Professor), prefaciado pelo presidente da ONG Viva Rio (Rubem Cesar Fernandes), publicado pela Editora Vozes (Pastoral Penal – ISER – Igreja Católica), lançado na ABI (Associação Brasileira de Imprensa) com pompas e circunstâncias, contando com o apoio irrestrito do PDT, que na época ocupava o poder político no RJ. Chamar tudo isso de coincidência é carimbar no próprio peito um atestado de burrice... Ademais, o livro é uma exaltação ao famigerado bandido do CV, Zé Bigode, este que, sozinho, enfrentou quatrocentos policiais num conjunto habitacional na ilha do Governador. E deste modo (“heroicamente”) morreu e se tornou símbolo de “resistência à ditadura”, embora não passasse de bandido comum, pé de chinelo, e provavelmente louco. Ou então imbuído do fanatismo inerente à facção criminosa que integrava, esta que, sequestrando, matando, roubando bancos e traficando drogas, fazia-o em nome do slogan “Paz, Justiça e Liberdade”.



O quadro que hoje se delineia é o seguinte: o que antes era banditismo romântico tornou-se calamidade social com a proliferação do tráfico no mundo e aqui, agora formado em verdadeiros exércitos paramilitares armados com fuzis de guerra sofisticadíssimos, além de estruturados num forte sistema de hierarquia e disciplina, a tal ponto que os líderes criminosos comandam dos presídios mais distantes seus territórios (homizios): as favelas brasileiras. E agora deparamos com o exemplo máximo de antigas ações criminosas de intimidação se desdobrando noutros Estados Federados. Mas tudo começa aqui: incêndios em ônibus, emboscadas contra policiais com altíssimo índice de letalidade, recrutamento em massa de jovens favelados para um exercício criminoso permanente e sem retorno. E por aí segue a baderna social, que, ao fim a e ao cabo, é o que se vê, lê e ouve diariamente, e que se resume na pujança do Poder Marginal. E é tudo isto, e muito mais, que se quer resolver com apenas polícia administrativa (nem mesmo completa) e UPPs. É, enfim, crer que Papai Noel existe e que no próximo Natal o veremos singrando os céus no seu trenó puxado por renas voadoras. Por outro lado, e incorporando o otimismo de um Cândido da ficção de Voltaire, não custa crer em Papai Noel...


Daí é que não há como não considerar a favela um território conquistado e ocupado por “guerrilheiros”: grupos paramilitares formados por traficantes, conceito geral do qual não se pode afastar as autuais milícias. Pois num caso ou noutro, na verdade, há um território demarcado, estando as milícias como espécie de “coluna do meio” entre as forças regulares (estatais) e os grupos paramilitares dedicados ao tráfico de drogas, estes que mais interessam ao nosso particular objetivo de comentar a matéria de Eliana Souza Silva, que jorra luz sobre uma inelutável realidade: a PMERJ não adentra favelas como “serviço de polícia”, mas como força de segurança típica de exército regular a conquistar território dominado por guerrilheiros. E vê, sim, a população favelada com desconfiança, o que não se reverte apenas com invasão, conquista e ocupação com UPPs, seguidas de retirada da força de segurança para outras missões operativas. Há, na verdade, muitos pontos obscuros nessas ações estatais e muita incerteza futura. Portanto fez bem a autora do texto em alertar para o clima de apreensão na Maré, mas que poderia ser estendido às demais favelas aquinhoadas com UPPs, estas que, de quando em quando, dão provas de que a conquista por tropas especiais (forças de segurança) e a ocupação por UPPs (serviços de segurança) não afastaram os “guerrilheiros urbanos” do tráfico, que atuam segundo a máxima da guerrilha, não sei se atribuída a Vo Nguyen Giap ou decorrente dos ensinamentos de Sun Tzu na sua Arte da Guerra. Mas vejo isto depois, o que me interessa é a lembrança do sugestivo aforismo posto aqui ao meu modo: “Se o inimigo ataca, recuamos; se o inimigo recua, atacamos; se o inimigo para, inquietamos”.




* Diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Comunidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro





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