quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sobre o controle da criminalidade



Uma visão realística

Mundo afora, e cá no Brasil, não são poucos os estudos acadêmicos e pesquisas sobre o crime, especialmente em se tratando do bloco ocidental, embora hoje muitos países orientais de certo modo incluídos na economia globalizada permitam a observação superficial do fenômeno em seus sistemas políticos geralmente fechados. De todos os trabalhos realizados, releva-se em permanente atualidade a análise do crime feita pelo saudoso Professor de Criminologia Manuel López-Rey, jurista espanhol com vastíssima experiência neste campo do conhecimento humano (1). E, logo na introdução do livro, sublinhado na nota de rodapé, o renomado autor afirma:

O crime é um problema intratável na maioria dos países desenvolvidos e eventualmente o será nos outros países, sejam ou não desenvolvidos.”

Mais adiante, ainda na introdução, ele desafia:

“(...) o crime, como o amor, o ódio, a ganância, o poder, a insatisfação, não pode ser explicado por uma teoria ou o conjunto de teorias que na melhor das hipóteses não são mais do que abstrações empíricas de uma faceta da realidade. Em verdade, o crime, como o amor e o ódio, é inerente à condição humana e reduzi-lo a uma expressão teórica ou a um sistema de pesos e medidas, para dar a impressão de uma medição mais exata, é tão ilusório como reduzir o amor e o ódio a uma pequena teoria ou a expressões numéricas.”

Ora, “o crime... não pode ser explicado por uma teoria ou o conjunto de teorias”, mas não se faz outra coisa no mundo hodierno, e a palavra de Manuel López-Rey soa como profecia: malgrado todas as tentativas conceituais e práticas visando ao controle do crime, ele permeia a tessitura social como mal incurável. Visto assim, deduz-se logo que reduzir a solução da criminalidade (micro e macro) à ação policial é uma burrice fundamental. Mas é o que se vê, e a opinião pública refletida nos meios de comunicação contenta-se com ínfimas informações estatísticas postas como um fim, em vez de ser mero instrumento de planejamento e correção de rumo.
E enquanto o crime se movimenta ante um estado estático e atônito, a sociedade sofre suas consequências em passividade e temor. Tendem, ambos, estado e sociedade, a glamourizar o criminoso e a justificar seus atos sob a bandeira dos direitos humanos, para, deste modo, tentar evitar que ele seja cruel em suas ações. Essa complacência com os criminosos não funciona, e o que se observa na prática é exatamente o inverso...
A inclinação dos criminosos pela crueldade é aberrante e inversamente proporcional às condescendências que a sociedade amedrontada lhes oferece por meio de leis frouxas e ineficazes e um protecionismo exagerado e incompreensível. Porque defender direitos humanos para bandidos dá prestígio na mídia; significa ser “de esquerda”; é caminho pavimentado para receber verbas públicas e ganhar votos... E, lá na ponta da linha do embate entre o policial roto e o bandido esfarrapado, o sangue jorra de lado a lado, e ocupa as principais manchetes e as telas do cinema e da tevê, e a culpa é sempre dos policiais. Muito cômodo...
O ambiente urbano é “teatro de operações” suficientemente visível e sangrento; e serve, enfim, para ocultar a invisibilidade dos crimes de fraude, de corrupção passiva e ativa, de peculato e quejandos. São aqueles que López-Rey designa sem demora:

“Há um grande aumento no número de crimes cometidos sob a proteção de cargos oficiais e acobertados por ideologias políticas ou como uma sequela da ação revolucionária e da defasagem crescente entre as classes privilegiadas e as não privilegiadas tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.”

Como ele sabia que o Brasil seria um exemplo contundente de suas profecias?... Não pretendo ser apologista do caos. Não sou movido pelo pessimismo. Mas a realidade do ambiente social não pode e não deve ser tratada ilusoriamente. As posturas ideológicas que envolvem as políticas públicas de controle da criminalidade tendem à falência. Medidas pontuais tornadas permanentes é um acinte à inteligência e incentivo ao crime, cuja índole se caracteriza pelo dinamismo, pela rápida reposição de recursos materiais e humanos, pela sofisticação dos métodos e, principalmente, pela certeza da impunidade dos criminosos. Criminosos que, absurdamente, das prisões comandam o espetáculo dantesco do crime no ambiente extramuros dos presídios. Significa dizer que não basta o confinamento do criminoso preso em flagrante ou em virtude de eficiente investigação criminal. Há algo mais a ser feito... Muito mais...
No nosso caso, brasileiro, o crime é tratado como problema apenas de polícia, esta que, engessada na Carta Magna, não evolui para fazer frente à velocidade e à sofisticação daquele. No RJ, epicentro de tudo que ocorre no Brasil, o crime organizado deu largos passos nas três últimas décadas, tornando-se narcoguerrilha urbana com direito a cidadelas inexpugnáveis, funcionando como tumores malignos a destruírem o corpo social. E o que o estado faz (menos prevenindo e mais reagindo aleatoriamente) não passa de cirurgia destinada a extirpar alguns desses tumores, ignorando suas metástases em avançado estágio de epidemia social. As cirurgias pontuais, por sua vez, são generalizadas como se regras fossem, quando, na realidade, são exceções ampliadas em marketing visando às próximas eleições... E a sociedade, corrupta na sua essência, reclama da corrupção da polícia ou dos políticos e se dá por satisfeita enquanto “atravessa a cerveja” ao guarda para não receber multa por avançar um semáforo vermelho. Ou então usa o poder político em benefício próprio numa caradura de dar arrepios na gente.
O crime, no Brasil, não é tratado a partir de uma política nacional globalística (o todo maior que a soma das partes). Na verdade, a sociedade aceita passivamente as cascatas ideológicas de quem faz sucesso por meio da difusão de mentiras estatísticas e outros engodos e ilusões a renderem bilheterias milionárias no cinema e caros anúncios na tevê daquela “cerveja”, acompanhados da obrigatoriedade da frase “beba com moderação” ou algo que o valha. E assim a cínica carruagem oficial segue, enganando-se e enganando os que a vêem passar. São aquelas “abstrações empíricas” denunciadas por López-Rey...
Houve as eleições. O governador foi reeleito. As UPPs foram um sucesso eleitoral. A questão agora será manter a chama acesa, e haja combustível, porque comburente e calor não faltarão, são gratuitos. Já o combustível... Ora bem, a novidade é que o ilustre e competente Chefe da Polícia Civil anunciou a sua meta de tornar a corporação coirmã uma espécie de “CSI”, numa alusão ao famoso seriado em que equipes de investigação criminal, apoiadas pela ciência, desvendam os mais intrincados crimes. Muito bom, porque as blitze feitas pela PMERJ ou pela PCERJ só resultam problemas e tragédias a atingirem inocentes, demais de infringirem, no meu modo de ver, o direito de ir e vir dos cidadãos ordeiros, sob a singela alegação de que entre os carros parados pode haver algum bandido. Ora!... No final das contas, essas blitze detectam problemas tolos em veículos ou em sua documentação, ficando mais fácil para ambos os lados, em conluio descarado, “atravessar a cervejinha”...
Conclui-se, pois, que o crime deva ser administrado por um Sistema Nacional de Segurança Pública que envolva num só conjunto globalístico os subsistemas estatais afetos ao problema: polícias estaduais, polícias federal e rodoviária federal, forças armadas, guardas municipais, promotorias estadual e federal, varas criminais federais e estaduais, subsistema carcerário, departamento de trânsito, subsistema destinado ao confinamento do menor infrator, subsistemas de tratamento de drogados etc. Enfim, um sistema amplo, ilimitado, visível, participativo, e em permanente inter-relação, interação e interdependência entre si e os segmentos sociais interessados no controle da criminalidade. Sem essa dimensão globalística não se pode pensar em conhecer o crime na sua integralidade nem saber qual a velocidade de sua expansão no ambiente social. Para tanto, porém, o Brasil tem de ingressar na era do sistema e se reestruturar no todo (União) e nas partes (Estados e Municípios).
Em princípio, não parece tarefa simples. Talvez demande mudanças conjunturais a alcançar o próprio texto constitucional. No fim de contas, a Carta Magna trata da segurança pública, no Título V, intitulando-o “Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, quando deveria ser “Da Defesa da Sociedade e dos Cidadãos”, inserindo então as mudanças estruturais nos organismos de segurança pública como um Sistema Nacional de Segurança Pública voltado para o bem-estar e a tranquilidade do cidadão. Isto implica trabalho integrado, sem a necessidade de subordinação que não seja às leis vigentes igualmente aprimoradas para fazer face à realidade do crime como fenômeno sociopolítico: dinâmico, variado e mutável.
A noção de sistema facilitaria deveras a interação entre os organismos de segurança pública, de modo a acompanhar a evolução do crime em tempo real. Na verdade, se todos os organismos estatais interessados se reunirem em Seminários Nacionais, com a ativa participação da sociedade, com certeza os brasileiros finalmente terão um Sistema Nacional de Segurança Pública eficiente e eficaz. Demais disso, em se admitindo o crime como inevitável (a segurança é relativa, jamais absoluta), o foco de atuação do sistema deve ser a administração da insegurança, a funcionar como o gato atrás do rato (desde que o mundo é mundo, eles mudam de tática, mas nenhum dos dois desiste), de modo a mantê-la humanamente tolerável até que o mundo finde, a vida na Terra desapareça, e com a morte de tudo, e de todos, acabe o crime...



(1)Manuel López-Rey, Doutor em Leis da Universidade de Madri, e pós-graduado em criminologia e assuntos correlatos na Alemanha, na Áustria e na França. Foi Juiz de Comarca, Professor de Direito Criminal nas Universidades de Madri, La Laguna e Salamanca, foi Membro da Comissão de Codificação e Diretor-Geral das Prisões na Espanha. Esteve nas Nações Unidas de 1946 até o fim de 1965, a princípio como Chefe da Seção de Pesquisas e Tratados da Divisão de Narcóticos e depois de 1952 em diante foi Chefe da Seção de Defesa Social e mais tarde Conselheiro de Defesa Social no Oriente Médio. O Professor López-Rey representou o Secretário-Geral em várias ocasiões em Congressos e em reuniões regionais dedicados à defesa social e teve participação ativa na organização do Instituto das Nações Unidas na Ásia e no Oriente, para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Transgressores. Como Professor visitante fez conferências em muitos lugares do mundo, e nos últimos trinta anos adquiriu conhecimento das instituições penais de mais de sessenta países. Publicou vários livros e mais de cem estudos sobre assuntos de penologia e criminologia. Atualmente, é Diretor de Pesquisa Criminológica no Centro de Pesquisa de Ciência Social da Universidade de Porto Rico e é Membro Visitante no Instituto de Criminologia de Cambridge, Inglaterra. Fonte: CRIME – UM ESTUDO ANALÍTICO – tradução de Regina Brandão – EDITORA ARTENOVA S/A – Rio de Janeiro, 1973.






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