terça-feira, 19 de outubro de 2010

Mudando de assunto


Mãe

Ela falava pelo silêncio. Não era um silêncio meditativo. Era triste, parecia algum segredo guardado na alma e predestinado a se manter intacto até a morte. Ela era assim, e os filhos não conseguiam jamais indagar dela o porquê do silêncio. O bunker dela era a máquina de costura, e o silêncio da sua voz perdurava ou se substituía pelo estalido da antiga máquina de costura tocada pela roda manual ou pelo pedal a acomodar (ou incomodar) os pés, até surgir o impertinente, porém saudável, motorzinho elétrico (Que bom! Pés e pernas sem os inchaços de antes...). Foram anos e anos ouvindo o sistemático barulhinho do ir e vir da agulha a furar o pano e enfiar a linha formando os pontos da roupa futura...
Um dia qualquer, depois de muito tempo, a máquina de costura já aposentada e substituída por tricô e crochê voluntários, e em meio aos livros, com os últimos três anos em silêncio e esquecimento pelo mal de Alzheimer, ela se foi. Partiu ao silêncio eterno, absoluto, levando com ela o segredo que com os filhos jamais compartiu. Não que não conversasse com os filhos; fazia-o, sim, porém quase em monólogo, indagando mais que respondendo. E, quando respondia, era assertiva em suas orientações, que soavam como ordens a serem cumpridas pela prole recentemente órfã de pai, falecido aos 39 anos.
Ela enviuvou aos 36. Ficou só no mundo com suas crias, três filhos e duas filhas, cinco ao todo, uma escadinha de doze para baixo, o caçula com apenas um ano. Dedicava-se a todos mecanicamente, embora não lhes negasse carinho. Não um carinho alegre, mas uns afagos tristonhos, apenas para lhes lembrar que ela estava ali, cuidando deles, enquanto a máquina de costura rompia as horas diurnas e noturnas cosendo o pano e formando calças vindas dos alfaiates. Ela era costureira profissional de calças masculinas, embora sua habilidade ultrapassasse esse limite para fabricar roupas também para ela e seus filhotes em rotina que lembrava o instinto animal: mero cumprimento de finalidade...
Não havia tempo ou dinheiro para o lazer. Ela, a costureira, jamais reuniu os filhos numa festa ou para ir ao Jardim Zoológico. O tempo dela era destinado à costura, não lhe havia feriado ou fim de semana de folga. Cada calça feita e entregue garantia o aluguel da casa simples e o prato de feijão com arroz, posto em frente dos filhos, fumegando em aroma irrestível e a confirmar que tempero de comida é fome. De quando em quando, porém, ela complementava o feijão com arroz acrescentando o ovo frito ou a mortadela geralmente enfeitados com cebola e tomate. Nunca, porém, o ovo era servido com a mortadela em simultaneidade. Era luxo demais naquela casa ter quatro ingredientes no prato. Talvez num raro domingo... Mas não me lembra tal concessão além da ilusão do prato ideal, suculento e variado. Ah, justiça lhe seja feita: jamais faltava a farinha in natura ou a farofa feita apenas da banha reaproveitada e da cebola queimada a lhe dar um gosto especial. Mas, muitas vezes, em algumas épocas, o prato ficava vazio de comida e o estômago cheio de fome...
Os filhos não a questionavam. Entendiam-na no seu silêncio. Respeitavam-lhe a dor representada pela veste negra de viúva assumida. Recebiam suas tarefas sem reclamos e com o foco nos estudos. Ela, autodidata, lia alguns livros de autoajuda e anotava as partes mais interessantes, que, ao fim e ao cabo, resumiam-se sempre no pensamento positivo que apregoava como religião. “Pensar positivamente é a saída”, isto ela muitas vezes dizia aos filhos. Paradoxo: enquanto ela se fechava em si, estimulava os filhos a se lançarem ao mundo para vencer. Pelo exemplo, a mulher que não frequentou escola lia livros e mais livros para os filhos a imitarem. Não lhes deixava faltar caderno, lápis e livros, não apenas os da grade escolar, mas outros tantos que conseguia de quem os estava mandando ao lixo. Convencia os filhos de que o livro podia estar carcomido pelo tempo e pelo uso, e, quanto mais desgastado, mais provava ter sido útil a muitas gentes. “Livro bom é livro usado”, ela dizia. “Livro novo é incógnita, e pode não servir à educação”, complementava. Foi como ela nos ensinou a catar livros em casa de parentes abastados e em outras, de vizinhos mais aquinhoados pela sorte do berço e da vida. E todo livro servia. “Não serve hoje, servirá amanhã!” ela dizia...
Cinco filhos, vida dura, nenhum homem nela tocou depois da morte do marido. Os filhos cresceram, estudaram e trabalharam. Todos alcançaram a graduação. Prestaram concursos aqui e ali, constituíram família, e a ela, já vencedora da miséria, vieram-lhe os netos. Junto com eles uma tênue alegria que somente se percebia num olhar distraído e, às vezes, num sorriso aprisionado pelos lábios em reedição da Mona Lisa... É verdade! Antes não havia motivo nem tempo para alegrias. Nem para lamentações chorosas... Por isso agora, mesmo vitoriosa, não havia nela nenhuma ufania visível; havia, sim, a forte lembrança do trabalho árduo da mãe e dos filhos maiores, somado ainda aos estudos exaustivos de todos, exceto do filho caçula, privilegiado pela melhoria de vida da família, mas que fora inexplicavelmente punido pela morte precoce.
A mãe, todavia, com a cautela de sempre, saiu do mundo antes do filhote, primeiramente pelo mal de Alzheimer e depois pela morte. Se ela visse um filho morrer antes dela, seria castigo em demasia. Ela não merecia tão tamanhona punição do destino. E, se existe mais nos céus que pássaros e aeronaves, ela deve estar lá ao lado do caçula. E nós outros, os quatro que ficamos, hoje desdobrados em filhos e netos, e sem o perigo da fome, esperamos a nossa hora de partir certos de que a mãe nos criou para vencer além da própria resistência aos males da pobreza absoluta. Ensinou-nos a vencer para garantir aos nossos filhos e netos a certeza de melhor vida (material e espiritual), que, cá pra nós, é o que se leva ao morrer: a certeza do dever cumprido. Porque o mundo é e sempre assim o será, com as famílias vivendo em riqueza ou sobrevivendo em miséria, até que culmine prevalecendo a lógica do Cemitério, escrita pelo mestre Lima Barreto, que aqui parcialmente lembro em homenagem: “(...) Havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.”

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Belo texto, apesar de triste. Assim é a vida, às vezes o sofrimento nos leva a fincar raízes no bem, a nos moldar e forjar nosso caráter no caminho da retidão. A certeza de que o bem vence o mal nos faz resistir a tudo e a todos, a sua mãezinha sabia disso e hoje onde ela estiver, tem a certeza que tudo valeu a pena, apesar dos pesares.
Creio que Justiça Divina (a única que creio) e que todos seremos julgados de acordo com nossas obras. Creio também que todos iremos nos encontrar um dia, ai poderemos nos redimir dos nossos erros e pecados e matar as saudades dos nossos entes queridos.