quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sobre a prevenção primária na segurança pública II

PROGRAMA JOVENS PELA PAZ

Antigamente, a missão da PM como polícia administrativa (restrita à defesa pública, excluindo-se desta reflexão a defesa interna e a defesa territorial) resumia-se a prevenir e reprimir a contravenção e o crime. Ainda hoje a prevenção, – missão precípua da PM, – representa-se pela máxima frequência do policiamento nas ruas a inibir a oportunidade de ocorrência do delito. Sob esta ótica simples, – muita vez entendida como simplória, – a visualização do PM pelo potencial infrator se bastaria a si própria. E, quando não se bastasse, o PM prenderia o delinquente, lavrando-se o flagrante na DP. Esta típica ação de polícia judiciária, por sua vez, seria inibidora da vontade de o indivíduo delinquir, ação acrescida, ainda, da possibilidade de a investigação criminal alcançá-lo posteriormente. Claro que o estímulo à repressão, – principalmente sob a forma de cobranças midiáticas, demais de outros fatores endógenos e exógenos, – não permitiu que o modelo funcionasse a contento...
Atualmente, com a participação mais ativa da sociedade junto aos poderes públicos na resolução dos seus problemas, há um importante despertar dos segmentos comunitários e societários. Mas, se antes a segurança pública se restringia àquele mínimo operacional, hoje ela se desdobra em fragmentos verdadeiramente quânticos. Se tudo antes era absoluto, hoje é relativo. Mais que relativo, é incerto. Vivenciamos o “se/então”, e as surpresas que inundam o ambiente social hodierno provocam enchentes caóticas no particular mundo da contravenção e do crime, com as instituições policiais estagnadas em espanto. Ambas tentam, é verdade, desatar seus nós de ineficiência e ineficácia, mas não conseguem. Inventam e reinventam saídas miraculosas, porém tudo retorna à estaca zero. Reagem então aos acontecimentos delituosos sempre com maior potencial de violência, e essa violência tem apenas gerado mais violência, acelerando assim o círculo vicioso. Como sair dele?...

Eis o cenário em que emerge a PREVENÇÃO PRIMÁRIA como uma espécie de “terceira via” na segurança pública...

A expressão é costumeira na saúde física ou pública, mas vem ganhando força no contexto da “saúde social”, ou seja, no âmbito da segurança dos cidadãos contra delitos a partir de providências multivariadas, incluindo-se as de salubridade, esta que também influencia a ordem pública. Mas não poucas vezes confundimos prevenção primária com prevenção de polícia administrativa (prevenção policial); talvez porque o vasto conceito da ordem pública – tendo na segurança pública a sua garantia – culmina abarcando a prevenção primária em todos os seus matizes e texturas, e são muitos... No fim de contas, na ordem pública incluem-se as situações de tranquilidade, salubridade, estética etc., demais de muitas outras que direta ou indiretamente interferem na paz social. Então, nada demais incluir na prevenção primária as situações aparentemente dissociadas da segurança pública, mas que, depois, poderão incidir favoravelmente na diminuição da criminalidade e da violência em geral. Ou no seu aumento, caso a prevenção primária seja ignorada no contexto policial.
Afastando-se os academicismos, os dogmas e as ideologias, e iniciando o raciocínio pelo polissistema social, pode-se concluir que ele possui uma organização (estrutura) e uma ordem (pré-requisito de funcionamento). Esta ordem mais abrangente é a ordem social (ser), da qual decorre a ordem jurídica (dever ser). Nesta sequência, – e a partir desta última (ordem jurídica), – exsurge a ordem pública também com seus vieses materiais (ser) e formais (dever ser). Deste modo, a organização e a ordem se desdobram indefinidamente em sistemas e subsistemas menores, até esbarrarem na prevenção primária como espécie de “semente do bem” a gerar comportamentos saudáveis. Portanto, quanto mais se semear o bem, mais o seu fruto será colhido, eis o ideal de paz e harmonia na convivência social...
O corpo humano reproduz um exemplo simples do que seja um sistema aberto, com sua organização (os aparelhos ou subsistemas que o compõem) e sua ordem (pré-requisito de funcionamento saudável desses aparelhos ou subsistemas). A doença é a desordem, sendo certo que existe uma desordem no organismo humano (entropia) que é restaurada por seu próprio sistema de defesa (homeostase). Daí dizer-se que a ordem pública é capaz de se restaurar sem intervenção policial. Por outro lado, existem doenças que atacam o corpo humano e determinam ações externas (anamneses, medicamentos, cirurgias etc.) para também garantir a homeostase (equilíbrio do sistema). O corpo social é semelhante ao corpo humano (sistemas abertos), embora o primeiro seja ainda mais complexo, e por isso nele se insere a prevenção primária como um sistema de defesa natural e anterior à intervenção policial, porque nesta os resultados daquela outra repercutem sempre positivamente.
Não se pode pensar em saúde nem em prosperidade de um povo em meio a desordens, sejam públicas ou privadas. Nesta última hipótese, o ordenamento jurídico pátrio prevê modos de atalhar excessos e riscos à convivência social, bastando o prejudicado se antecipar na denúncia de algum ato punível por lei antes que se configure dano à ordem pública. A pensão alimentícia é um exemplo excelente a demonstrar como a Justiça funciona primariamente para preservar a ordem pública. A pressão judicial contra o inadimplente de má-fé poderá levá-lo à prisão para assegurar a ordem pública. Já a ordem pública como objeto da segurança pública implica visualizar a intervenção de outro poder (Executivo), que age executória, discricionária e coercitivamente para garanti-la no seu primeiro momento, antecipando-se à própria coerção dos crimes tipificados. Dessa multifacetada intervenção policial para coibir desordens não tipificadas como crime ou contravenção emerge o Poder de Polícia como poder instrumental do Estado. Trata-se de fundamento (potencial) do Ato de Polícia, que deve estar juridicamente contido nos seus limites, que são as liberdades, a legalidade e as garantias individuais. Porém, em havendo o crime o sistema se movimenta até incluir a ação da polícia judiciária, tudo posto num só continuum a abarcar as duas funções que informam a atividade policial no seu todo indivisível: a de polícia administrativa (Polícia Militar) e a de polícia judiciária (Polícia Civil). Claro que, após a ação da polícia judiciária, entram em campo o Ministério Público e a Justiça respectivamente denunciando e sentenciando o autor e culpado de contravenção ou crime, o que não interessa aprofundar.
Tornando o raciocínio, pois, à atividade policial, quando se fala nas duas funções não se pode segmentá-las em partes dissociadas. Daí o continuum, o que implica considerar no mínimo estranho o exercício dessas funções por polícias distintas. É, todavia, o modelo policial pátrio engessado na Carta Magna, para desgraça da sociedade brasileira. Todavia, enquanto nada é mudado o jeito é atuar contra a desordem com os meios disponíveis e da forma estrutural e conjuntural como está posta no nosso torrão. E quanto mais se pensar em prevenção primária, melhor será para a sociedade. Para tanto, porém, as comunidades devem ser vistas como entes diferentes e dependentes de atenção específica. Por mais próximas que estejam entre si, elas demandam anseios e valores diferenciados. Se se considerar como comunidade (subsistema) um bairro, há de se pensar nos seus próprios problemas a serem diagnosticados sob a ótica da prevenção primária. Quando a comunidade, por exemplo, anseia por iluminação, o poder público deve perceber que este anseio específico se vincula à síndrome da insegurança. O seu atendimento eliminará temores individuais, repercutindo agradavelmente no estado geral de bem-estar e paz. Enfim, – e sob a ótica da prevenção primária, – todas as providências que direta ou indiretamente influam no aumento da sensação de segurança guardam, na essência, o conceito de prevenção na ordem pública.
A mudança de cultura da prevenção e da repressão restritamente policiais para a da prevenção primária inclui a ideia do policial comunitário. O policial não deve ser visto como um “ET” no seio da comunidade. Antes de tudo, ele deve ser aceito e se aceitar como um prestador de serviço público. Claro que em ambientes violentos, – num primeiro momento, – a presença policial é antipática, eis que imediatamente repressora. Nem passa pela prevenção policial; ingressa direto nas ações repressivo-operativas, que são extremamente perigosas tanto para o policial como para os cidadãos ordeiros. Ocorre, porém, que nem todos os ambientes sociais são violentos; nem todos os bairros se incluem nesse extremo; nem todos os Municípios sofrem de males idênticos, o que implica focar a prevenção primária e a atividade policial como serviços essenciais não-violentos, ou seja, apenas como interventores amenos ante conflitos (desordens) que muitas vezes se restauram naturalmente, como se afirmou aqui. Isto significa abominar a violência como regra para situá-la no seu papel de exceção, o que, efetivamente não é fácil, mas não é também impossível.
Neste ponto, muitos poderiam contestar afirmando que a violência é tão generalizada que não há como a PM cuidar de “abobrinhas”. Mas, em contrário, ela já cuida de ações não-criminosas em larga escala, bem mais até que de prevenção ou repressão ao crime, o que poucas gentes sabem. O que é preciso, em primeiro lugar, é o policial ser conscientizado de sua importância ao comunicar a algum organismo responsável pela manutenção de vias públicas assuntos como: lâmpadas queimadas ou ausência de iluminação; buracos destruindo veículos e aumentando o risco de acidentes; semáforos defeituosos; bueiros de escoamento d’água sem tampa e outras situações cujo contexto particular incide negativamente sobre ordem pública e culmina exigindo alguma intervenção policial. Os problemas são infindáveis e variam de lugar para lugar. E não cabe ao policial ignorá-los sob o pretexto de que está esperando ocorrer algum delito para agir. Trata-se, na verdade, de valorização de uma cultura de prevenção primária que geralmente passa ao largo das administrações públicas e dos usuários de serviços públicos. Afinal, os cidadãos não imaginam uma polícia-parceira exigindo junto aos organismos públicos o cumprimento de finalidades para as quais eles contribuem com pesados impostos. Infelizmente, nem a polícia se imagina assim...
A prevenção primária é vantajosa em todos os sentidos e ilimitada em suas finalidades sociais. Só como exemplo, quando o governo Garotinho lançou o projeto social “JOVENS PELA PAZ”, durante bom tempo quase dez mil jovens favelados garantiram o sustento honesto de si e de seus familiares e se afastaram dos encantamentos do crime. Esses jovens elevaram a autoestima e prestaram concomitantemente um importante serviço às suas comunidades. São iniciativas assim, de vasto e profundo alcance social, que se inserem na prevenção primária. Na verdade, a prevenção primária depende de interação entre os organismos públicos e as comunidades a que servem. A polícia, por estar presente em todas elas, não pode ficar alheia. Muito em contrário, deve ser a primeira a estimular reuniões para tratar de identificar os anseios dos cidadãos que, não atendidos, culminarão repercutindo negativamente na segurança pública. Portanto, a prevenção primária em geral, relevando a educação de qualidade em tempo integral (vital à criança e ao adolescente carentes), é um poderoso elo entre a polícia e os usuários dos seus serviços: os cidadãos. Tal liame, que anda esquecido, resume-se a duas ações permanentes e dinâmicas, porém dependentes de vontade política e do entusiasmo da polícia: articulação institucional e integração comunitária.

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