quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O fusca maldito

Aconteceu num paupérrimo bairro de São Gonçalo, em rua sem pavimentação, com valas a céu aberto escorrendo ao valão a escoar suas águas fétidas na baía de Guanabara. Nesta rua de chão batido havia uma aglomeração que parecia festa, as gentes todas saindo ao mesmo tempo das casas com o fim de participar de um ato insólito: admirar um fusca. Sim, era o primeiro fusca, ou, mais precisamente, o único que passaria a habitar naquela rua por conta de um feliz cearense: Rosemiro. Ele comprara o fusca devido à sorte que o bafejara na véspera: jogara no bicho e acertara o milhar.
Muitos dos que admiravam o fusca de Rosemiro achavam-no louco varrido. Morando de aluguel, eletricista de profissão, pobre, ele não devia ter comprado aquele fusca. Assim pensavam seus vizinhos. Esperavam que ele adquirisse a casa em que morava com a mulher – Glorinha – e o filho de dez anos – Marquinho.
A casa era simples. O dinheiro daria para comprá-la e fazer algumas reformas; talvez até ornamentá-la com mobiliário novo. Mas não, Rosemiro não fez nada disso. Entrou, sim, numa loja de automóveis, e adquiriu a preciosidade: o fusca topo de linha, o mais caro. E, não satisfeito, acrescentou todos os acessórios que lhe ofereceram, ficando o fusca um encanto: rodas de magnésio, toca-fitas, capas de couro, buzina flautim, faróis de milha, garras especiais nos para-choques; enfim, tudo que entendera ter direito, e nada mais colocara porque nada mais havia para adornar aquele carro que mais parecia gente, tal a paixão de Rosemiro.
O fusca, cor azul do céu, cintilava de novo deslumbrando os vizinhos. Rosemiro exultava. Ali, porém, nem todos compartiam seu sentimento. Além dos sinceramente alegrados com a sorte dele, havia os invejosos fingindo-se indiferentes... E alguém bastante enfurecido: Marquinho, o filho, até então a única paixão do felizardo.
Sentado à beira da calçada, Marquinho ruminava a sua ira contra o pai, que lhe negara uma bicicleta. Empolgado com o fusca Rosemiro esquecera o filho. Era só o fusca e nada mais o objeto da sua atenção e de todos os vizinhos. Foi neste momento que Marquinho, furioso, riscou o fusca de cabo a rabo com um prego. Toda a gente em volta soltou um uníssono “Oh!”, enquanto o garoto disparava pela rua, o pai atrás dele, em cólera bestial, brandindo na mão direita a peixeira.
Todos se espantaram com a cena, tornada dramática quando Glorinha partiu atrás de ambos, suplicando a Rosemiro, em brados histéricos, que não maltratasse o filho. Que nada! Quanto mais ela gritava, mais enfurecido ele ficava. E correu até alcançar o apavorado menino, de súbito estacado, olhos esbugalhados fitando o pai. Rosemiro bufava desvairadamente. Não reconhecia o filho. Via apenas o pivete que estragara sua preciosidade. O pai desferiu um golpe de peixeira decepando a mãozinha que ainda segurava o prego. Não satisfeito, arremessou-a no valão fétido. E lá se foi a mãozinha do filho, agarrada ao prego, ao sabor da correnteza, punida por arranhar o carro novo do pai.
Cena terrível! O povo partiu em socorro do menino, enquanto um grupo indignado avançava contra Rosemiro com o intuito de linchá-lo. Havia uma revolta generalizada, e, não fosse a providencial chegada da polícia, Rosemiro teria sido trucidado.
O menino foi levado ao hospital em estado de choque. Glorinha, a mãe, desesperada, foi ao fusca e ateou-lhe fogo. O fogo lambeu raivosamente o fusca e dele restou uma carcaça carbonizada e inútil. Nada de fusca; a família destroçara-se. Rosemiro, em egoísmo e insensatez, perdera o fusca, o filho e a mulher. E a liberdade... Tal como o fusca maldito, a família tornara-se cinzas...
Marquinho foi operado e posto fora de perigo. Porém, não parava de clamar pelo pai, de tal modo que os médicos, preocupados, fizeram contato com a delegacia e apelaram para que levassem Rosemiro à presença do filho.
Rosemiro caíra em si da loucura, estava arrependido, carregava uma profunda tristeza. Assim chegou ao hospital, escoltado pelos policiais, e foi ter com o filho. E viu-o sem a mãozinha direita, o pequeno punho enfaixado, olhos tristonhos, fisionomia de dor. E o menino, ao avistar o pai, disse-lhe sem rancor: – Oh, pai, me desculpe! Amo você! Eu juro que nunca mais arranho o seu fusca! Mas, por favor, devolve a minha mãozinha
!...

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