sábado, 7 de novembro de 2009

A teoria do escorpião




Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? (Michel Foucault – Vigiar e Punir)


Quem se torna pessoa pública, seja de que maneira for e que intenção tiver, não se pode furtar a criticas. Entretanto, qualquer um que se exponha de peito aberto tem o direito de aceitar ou não críticas anônimas, até mesmo as elogiosas, porque às vezes elas comprometem o ideário da pessoa à qual são endereçadas. Não chego ao extremo de recusar todas as críticas anônimas; aceito-as, com ressalva às ofensivas, que não merecem crédito nem quando são rubricadas. É perda de tempo creditar ofensas. Não acrescenta nada ao debate sério.
Contudo, apimentar é preciso e faz bem à crítica; bom humor, idem; mangações também. Mas ofensas, não! Cobranças, por sua vez, podem e devem ser feitas. Quem promete deve cumprir; quem assume compromissos deve honrá-los. Daí é que os políticos não podem reagir autoritariamente quando criticados. No fim de contas, muitas vezes as críticas os ajudam a redirecionar atitudes e comportamentos. Analisar as cobranças é útil a quem vive da exposição pública. Caradura ante as críticas não adianta: elas alcançam outras pessoas e garantem a sua disseminação; cara feia não amedronta ninguém, principalmente porque todos sabem que nenhum poder é eterno, e, na melhor das hipóteses de sua eternidade, ele termina no túmulo. Aceitar as críticas, portanto, é preciso.
Faço críticas, sim! Vivencio a liberdade e me reservo a mim o direito de criticar sistemas, atividades e cargos exercitados de um modo que eu entenda inadequado. Afinal, é impossível criticar estruturas sem atingir pessoas que eventualmente as ocupem. Se a estrutura é ruim, e as pessoas que a comandam não o percebem, a crítica acaba por arranhá-las, em especial se essas pessoas se incorporam ao cargo como se fosse tal e qual a donataria dos velhos tempos...
Ora, não mais existe donataria, embora o apego a ela resista às liberdades democráticas. O personalismo é teimoso, a idiossincrasia, um vício. Mas devemos combater os personalismos e as idiossincrasias com a cobrança do respeito às leis vigentes. Pois quem ocupa um cargo público deve obrigação às leis vigentes muito mais dos que aqueles que não gozam de tal privilégio. Nesses casos, o crítico não se deve conter em limites ou ameaças. Se os ocupantes de cargos públicos, sejam ou não eletivos, insistem no personalismo, o endereço da crítica deve ser registrado para não se perder em colateralidades. E a carapuça deve ser enfiada com toda a força na cabeça-dura dos pseudodonatários, para o bem da liberdade e da democracia.
Faço o intróito para abordar um tema delicado e relativo ao comportamento dos oficiais da PMERJ – passados, presentes e futuros. Não significa que eu esteja com razão, porque sou um deles; nem que esteja errado. Absolutamente. Vou avançar na ideia para tentar contribuir com o futuro da corporação, que periga enquanto brincamos de poder militar a serviço de governantes sem compromisso com nada mais que a vaidade do cargo, e que se acha donatário, embora não o seja. Vou arranhar estruturas e talvez insinuar contra pessoas que podem ser ou não as atuais. Não me vou preocupar com isso, faz de conta que sou eu o personagem-alvo de todas as críticas. E que cada um reaja como bem o quiser, e aceito réplicas desde que nominadas.

Ao tema...

Desde 1982, foram nove comandantes-gerais na PMERJ. Nove cabeças e dez “sentenças” (um deles “sentenciou” duas vezes), com todo o resto da tropa de oficiais e praças trabalhando firme e obedecendo sem contestações. Porque os regulamentos não mudam, as Constituições passam ao largo da anacrônica legislação interna, a estrutura hierárquico-piramidal é a mesma e a tropa recebe o mesmo cuidado social de antanho: nenhum.
No atual governo, a PMERJ experimenta seu terceiro comando-geral, todos, porém, caracterizados pelo personalismo, embora os agraciados se originem da mesma academia. Deduz-se, pois, que aprenderam idêntica “doutrina”, assim como seus antecessores receberam ensinamentos semelhantes, com ressalva de uma ou outra mudança curricular sem consequências no comportamento administrativo e operacional da tropa.
Sobre a grade curricular, pode até ter havido algum avanço; mas quanto à cultura de convivência das turmas, às inevitáveis dissensões e à formação de facções dentro delas, ou seja, de grupelhos que se organizam e se mantêm unidos até o fim da carreira, disso eu estou autorizado a falar: nada mudou desde quando eu fui cadete, e ponha tempo nisso, e retroaja até bem antes de mim, o que também me inclui como culpado por esse amaldiçoado statu quo de força mercenária descartável nos moldes sugeridos por Maquiavel.
A academia (Academia Dom João VI para os novos ou Escola de Formação de Oficiais para os antigos), como os demais ambientes de clausura denunciados por Foucault, não deixa de ter um aspecto de prisão. O regime de internato e a famigerada sugação do militarismo vão desde o início transformando os cadetes em figuras hierarquicamente dóceis no trato com seus superiores e arrogantes com subordinados.
Como a convivência dos cadetes ocorre em ambiente mui reduzido, o contato e o contágio aumentam sobremodo, e as amizades e inimizades vencem os tempos. Alguns cadetes resistem a essa “lavagem cerebral”; já outros a ela se entregam; ao fim e ao cabo, os oficiais se espalham pelos quartéis, hora de a tropa sofrer as consequências de um emaranhado de idiossincrasias. Reagem, porém, no sentido inverso e perverso, ou seja, os subordinados recebem o arrocho hierárquico e em contrapartida impõem aos jovens “donos da verdade” e “titulares da arrogância” a cultura da realidade das ruas apinhadas de facínoras; realidade que, de tão perigosa, antiética e atraente, aos jovens assusta, submete ou desvia... E a partir daí não se sabe mais quem manda ou desmanda, quem comanda ou é comandado, quem ferra ou é ferroado...
Uma das características dessa cultura tacanha a afetar a oficialidade, ou contracultura, que fica mais bem posta, é o desprezo dos novos pelos antigos, do mesmo modo que os antigos e superiores hierárquicos sempre se acham mais capazes e desprezam os novos. Claro que falamos de relacionamentos nada saudáveis e admitimos exceções (poucas). Mas são esses relacionamentos hipócritas – eivados de recalques vingativos e sem a solenidade do saudável militarismo – são esses relacionamentos hipócritas que comandam a desrazão e o dissentimento entre os oficiais e garantem a tortura física e psicológica da tropa, ressalvadas as exceções (repito que poucas). Daí é que, por mais bem-intencionado que algum oficial seja, com o tempo e a convivência ele se tornará escorpião, nem que por um só momento, para se defender de outros escorpiões que lhe surgem em ameaça.
O escorpião bem sintetiza o relacionamento interno de outrora e de agora, de tal modo que se pode perceber até entre oficiais setuagenários, nas raras solenidades festivas em que se ajuntam, a mesma picuinha nascida na academia. Quando reunidos (pasmem!), estão sempre se alfinetando em ironias e sarcasmos. Dizem que o colega foi “mau oficial” e os demais, em roda diversa, definem seus opositores do mesmo modo; mas, ocasionalmente, se abraçam como se nada houvesse de errado entre eles, embora estejam prontos para desferir novas ferroadas. E assim se comportam, sem ultrapassar a ilusão de um efêmero poder interno, até que são depositados naquele quadradinho ostentoso por fora a igualar por dentro a humanidade morta: “(...); havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.” (Lima Barreto – O Cemitério)
Os leitores podem estar estranhando o assunto, mas se o vincularem ao poder decisório interno da PMERJ e o associarem ao personalismo daqueles que ocasionalmente a comandaram, comandam ou comandarão (a escolha é política), aí a questão passa a ser grave. Porque a doutrina que orienta o salutar funcionamento das Forças Armadas jamais foi íntima da corporação estadual. Cá, a “doutrina” é a da luta pelo poder interno e pelo prestígio externo entre facções de turmas diferentes ou pertencentes à mesma turma. É essa “doutrina” que domina as mentes e os corações de oficiais formados na mesma academia. E o resultado da tal “doutrina” é aterrador: em vez de prenderem em flagrante dois latrocidas, um capitão e um cabo são filmados com os pertences da vítima minutos antes assassinada... Qualquer que seja a versão, não se há de explicar este absurdo como “isolado”... São muitos “fatos isolados” a se repetirem como maldições a macular as boas ações corporativas...
Na PMERJ, longe de o comando significar “mandar com”, é centralizado e geralmente sucumbe ante a realidade dos péssimos relacionamentos trazidos dos bancos escolares e cultuados em quartéis, até que haja a sorte de um membro de determinada facção ser alçado ao poder maior. A partir daí, o grupelho se fecha num círculo restrito e vicioso (o Principado) e submete à desgraça seus contrários, isolando-os na famigerada “letra”, pondo-os a presidir inquéritos, escalando-os de serviço ou forçando-os à inatividade debaixo da vergonha ante a família, os amigos e os companheiros. Entenda o leitor como “contrários” os que não se integram à facção vencedora, não necessitando de outro motivo além desse.
Sei que me arrisco a críticas até de bons amigos. Não por estar inventando absolutamente nada, mas por tocar nessa ferida crônica do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Agora mesmo, com uma crise aparentemente instalada, é possível supor muitas gentes torcendo contra os atuais dirigentes da PMERJ. Na verdade, essas gentes reagem no mesmo tom às retaliações anteriormente recebidas, sem que se saiba se foram ou não merecidas nem que tenham ocorrido por obra desses gestores recentes. Mas isto não importa a nenhum escorpião: ele ferra o inimigo ou o amigo com a mesma volúpia porque assim aprendeu. Aos críticos, amigos ou não, que podem entender desnecessário o artigo, sublinho o dizer de Erico Verissimo em Solo de Clarineta:

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto. (Erico Verissimo – Solo de Clarineta)

Mudar essa cultura, – ou contracultura, ou anticultura, pois os jovens que ingressam na PMERJ não são criados como escorpiões em seus lares, – mudar essa cultura ou anticultura não é tarefa simples. O poder interno é tão arrogante que transforma o mais humilde e desintoxicado militar estadual em escorpião a serviço da mesma causa aprendida na academia: a de si mesmo e do seu grupelho. Aliás, a academia é o único lugar capaz de instituir uma contracultura saudável, desde que a formação do oficial saia das mãos de seus mentores internos. A permanecer a “doutrina”, o resultado será sempre o mesmo: um ninho de escorpiões produzindo, – em partenogênese ou não, – os seus filhotes, com a finalidade única e irreparável de serem nada mais nada menos que escorpiões: a fêmea come o macho que a fecunda, e todos praticam o canibalismo na falta de outro alimento, aqui entendido como o poder interno e seus benefícios.

Um comentário:

Rose Mary M. Prado disse...

"Para invalidar a autoridade predominantemente, não reaja a ela. Aquele que carrega os símbolos da autoridade não necessariamente a possui. Comporte-se como se soubesse que a autoridade, com todo o temor que inspira nos outros, não tem poder sobre você."

Harriet Rubin - em A Princesa - Maquiavel para Mulheres