sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Como se “fabrica” um policial: algumas considerações em torno dos processos de socialização e formação profissional




Neiva Vieira da Cunha*

As instituições de segurança pública atuam, como sabemos, no vasto campo das formas institucionais de controle social. Neste sentido, elas seriam responsáveis pela “manutenção da ordem”, tanto no que diz respeito ao controle de multidões rebeldes ou revoltadas, quanto no que se refere à supressão da desordem ou do comportamento incivilizado dos indivíduos no espaço público.
No entanto, se a sociedade é o lugar por excelência das regras, uma de suas virtualidades é a possibilidade, pois, da violação dessas próprias regras; ou seja, de sua transgressão. Desta perspectiva, o papel das instituições de segurança pública apontaria para uma dupla dimensão. De um lado elas teriam por função a mediação de conflitos; mas, por outro, também teriam como atribuição o trabalho de prevenção da criminalidade e das diferentes formas de violência.
O papel de “manutenção da ordem” desempenhado pelas instituições de segurança pública deveria, portanto, reforçar o código de comportamento público das pessoas e da comunidade; e a habilidade para manter tal ordem implicaria, necessariamente, na leitura correta do código de comportamento considerado apropriado para cada área por seus próprios habitantes. Esse papel tornar-se-ia significativo para a sociedade na medida em que as ações implementadas por essas instituições levassem em conta “o mundo ao seu redor”, exigindo uma interação entre os agentes responsáveis pela manutenção da ordem pública e os cidadãos comuns que implicaria uma capacidade de “enxergar o mundo através dos olhos do outro”. Assim, e considerando o papel de mediação que deveria ser exercido pelas instituições de segurança pública, poderíamos afirmar que a relação entre elas e as comunidades às quais se propõem servir deveria se traduzir, fundamentalmente, numa relação de diálogo e conversação. Desse modo, a manutenção da ordem representaria uma ampliação dos propósitos do policiamento em si, mas iria além da estrita ação de “combate ao crime”, para chegar ao trabalho de prevenção e desenvolvimento de comunidades nas quais se poderia viver de forma mais segura e digna.
Em termos ideais, a premissa central que deveria orientar as ações dessas instituições seria a de que a comunidade deveria exercer um papel mais ativo na manutenção da segurança pública, devendo ser vista como “co-produtora” da segurança e da ordem, juntamente com as instituições policiais. Assim, seria necessário que as instituições de segurança pública tomassem para si a responsabilidade de criar formas apropriadas de se aproximar da comunidade, associando-a às ações e atividades de policiamento e manutenção da ordem pública.
De fato, esta formulação das responsabilidades das instituições de segurança pública não é nova. O trabalho de policiamento de uma localidade certamente se tornaria mais fácil e eficaz se a comunidade em questão participasse de maneira mais ativa da construção e manutenção dessa ordem pública, cooperando e apoiando os agentes policiais. O que haveria de novo, então, nessa relação? É que tal proposta pressupõe a implementação de programas de ação, ao nível das táticas e estratégias de operação, que mudem as formas de interação habituais entre as instituições policiais e a comunidade.
Mas, além disso, e neste particular, a relação das instituições de segurança pública com a chamada “comunidade” pressupõe também a existência de um poderoso dispositivo de redução da complexidade do mundo que é a confiança.
Isto significa dizer que, para que as práticas operacionais voltadas para a segurança pública possam pretender alguma eficácia, é preciso criar um sentimento de confiança entre a polícia e os cidadãos. Tal relação pode ser incrementada, por exemplo, através da implementação de programas educativos destinados à prevenção do crime e às formas generalizadas de violência, visando estreitar esses laços de confiança. Pois, na medida em que essa relação de confiança é quebrada ou deixa de existir, toma o seu lugar a desconfiança, ou seja, a permanente focalização das virtualidades negativas implícitas, daí para frente, na relação das instituições responsáveis pelo controle social e a coletividade.
Jerome Skolnick e David Bayley, em livro recentemente traduzido, afirmam que em muitos países o policiamento comunitário tem sido apontado como uma alternativa para os problemas de segurança pública. Essa forma de policiamento se estruturaria a partir 1. da organização da prevenção do crime, tendo como base a comunidade; 2. da reorientação do patrulhamento, enfatizando os serviços não emergenciais; 3. do aumento das responsabilidades das comunidades locais e, finalmente, 4. da descentralização dos comandos. Segundo seus defensores, o policiamento comunitário gera segurança pública e diminui as taxas de criminalidade, reduzindo o medo do crime e fazendo a comunidade se sentir menos desamparada, refazendo, desse modo, a conexão da polícia com o público, tornando-a mais sujeita à prestação de contas, como também a “se explicar”, a “dar conta de” (accountabillity). Entretanto, embora chamem a atenção e reconheçam o fato de que essa forma de policiamento representa uma mudança de práticas, esses mesmos autores acrescentam que não se trata necessariamente de uma mudança dos objetivos originais que orientam o trabalho das instituições responsáveis pela segurança pública (Skolnick e Bayley, 2002).
No entanto, como seria possível almejar efetivamente operar mudanças nas práticas dos aparelhos policiais? Na verdade, o que as instituições de segurança pública são, internamente, em termos de “filosofia”, de concepção, estilo de gerenciamento e de organização, se traduz nos meios empregados para que tais fins propalados como seus objetivos originais possam ser atingidos. Sobretudo na medida em que essa “filosofia”, essa “concepção” organizacional, deverá se refletir no nível das táticas e estratégias de operação, ou seja, no sistema de práticas dessas instituições.
E na medida em que tais instituições de segurança pública se constituem a partir dos agentes responsáveis pela sua manutenção, seria interessante dedicar, uma vez mais, um segundo pensamento ao processo de formação profissional desses agentes, na tentativa de apreender a lógica que orienta os procedimentos operacionais dessas instituições em suas relações com a coletividade.

II

A teoria sociológica muito tem contribuído para as análises dos processos de formação e socialização profissional. Encontramos, por exemplo, nos trabalhos de Everett Hughes, o emérito professor da chamada Escola de Chicago, algumas boas indicações e produtivas pistas que ajudam a pensar e esboçam um quadro teórico bastante sugestivo para a consideração desses processos.
É na coletânea de artigos intitulada Men and Their Work, publicada em 1958, mais especificamente no artigo intitulado “The Making of a Physician”, que Hughes, embora tomando como modelo para o processo de formação profissional o campo da medicina, propõe um esquema geral para o estudo da formação (training) em profissões variadas. E por isso resolvi trazer as questões tais como ele as formulou em 1958, dado que considero poder aqui ser útil para os nossos propósitos de pensar a formação dos agentes policiais.
Buscando evidenciar os processos típicos presentes no caso da formação médica, Hughes formula a existência de uma cultura profissional, constituída não somente pelos conhecimentos técnicos e científicos, mas também por uma visão de mundo particular e específica. Tal cultura seria adquirida através do processo de formação profissional, concebido ao mesmo tempo como: 1. Uma aprendizagem, 2. uma iniciação e 3. uma forma de conversão.
Segundo Hughes, a fabricação de um profissional não incluiria apenas o conjunto das disciplinas aprendidas em seu processo de formação, mas implicaria, sobretudo, numa espécie de iniciação ao novo papel profissional e numa conversão à nova visão de mundo que permitirá o desempenho desse papel. Durante este processo, o que se efetua é uma verdadeira conversão identitária, que consiste em mudar a si mesmo a partir da incorporação de novas idéias sobre a natureza do trabalho a ser realizado, e da aquisição de competências específicas que possibilitem o seu desempenho em termos de uma carreira profissional.
Trata-se, desse modo, de fabricar em si mesmo e no olhar do outro, uma nova identidade: uma identidade profissional. E essa espécie de impregnação cultural seria condição fundamental para a construção dessa nova identidade, sendo considerada a base mesmo de todo processo de socialização profissional.
Hughes analisa a relação entre o profissional e aqueles a quem ele presta serviços como uma relação entre iniciado e não-iniciado; e, neste sentido, entre aquele que detém uma espécie de conhecimento específico por oposição a um conhecimento leigo. Mas essa distinção pressupõe a consideração de uma etapa essencial no processo de socialização profissional, que corresponderia à separação do futuro profissional do mundo leigo, estabelecendo a possibilidade de rompimento com determinados aspectos da cultura do senso comum considerados incompatíveis com a cultura profissional.
A imagem usada por Hughes é a da “passagem através do espelho”, que consistiria em “aprender a ver o mundo ao inverso”, ou seja, ver as coisas como que escritas no espelho, do jeito que gostava de propor aos seus leitores e leitoras, como todos certamente se recordam, Lewis Carrol, o simpático autor de Alice no País das Maravilhas. Desse momento em diante, será com os olhos de um profissional que o iniciante, no caso o aprendiz, deverá olhar as pessoas e o mundo. Essa complexa passagem se daria exatamente através da imersão nessa cultura profissional, que se coloca neste sentido como dissemos radicalmente oposta à cultura do senso comum, tendo como conseqüência uma espécie de desdobramento do self. Tal etapa do processo de socialização profissional, segundo Hughes, seria marcada pela coexistência dessas duas culturas no interior das consciências. Para aqueles que se iniciam trata-se, num primeiro momento, de aprender a administrar e gerir essas identidades no espaço e no tempo. Entretanto, é preciso considerar que essa identificação progressiva com o papel profissional não se faz sem crises e dilemas, na medida em que ela implica na renúncia de algumas das concepções anteriores, estabelecendo o risco de perda da identidade durante o período em que os antigos modelos de identificação estão sendo substituídos e os novos não se encontram ainda definidos.
Esse momento seria marcado pela dualidade entre o “modelo ideal” (sainttly models), que imprime sua marca distintiva e sua valorização simbólica aos olhos dos pares e do senso comum, e o “modelo prático” ou “modelo real”, que diz respeito às tarefas quotidianas e aos duros trabalhos de rotina (dyrth works). Segundo Hughes, esta distinção entre as tarefas consideradas “nobres” e as necessárias atividades rotineiras identificadas com o “trabalho sujo” (dyrth work) é sempre motivo de disputas e conflitos no seio dos grupos profissionais e constitui uma importante chave de compreensão de sua dinâmica. Assim, o processo de socialização profissional seria necessariamente marcado por uma série de escolhas de papéis que possam reduzir essa distância entre o “modelo ideal” e o “modelo real”, ou seja, pelas interações com “outros significativos” que representem essa passagem de um modelo ao outro. Um dos mecanismos essenciais de gestão dessa dualidade seria a constituição de um “grupo de referência” no meio profissional, que representasse ao mesmo tempo uma antecipação de posições desejáveis e uma instância de legitimação.
Finalmente, o processo de socialização profissional seria caracterizado pelo abandono dos estereótipos anteriores a respeito da profissão mesma e pela conversão ao novo papel profissional, através de uma acomodação entre o modelo ideal da profissão e suas realidades práticas. Seria uma espécie de ajustamento do self, ou seja, uma tentativa de definição da nova identidade em vias de constituição, através da tomada de consciência das capacidades e limitações físicas, mentais e pessoais de cada indivíduo, e de sua adaptação às reais possibilidades de desenvolvimento de uma futura carreira, no sentido de uma trajetória profissional.
Assim, do ponto de vista da sociologia dos grupos profissionais desenvolvida pelos sociólogos de Chicago, tais como Howard Becker (Boys in White) e Anselm Strauss (Mirrors and Masks), por exemplo, o processo de socialização profissional não pode ser equacionado ao processo de formação, em seu sentido estrito.
Tornar-se profissional, e no caso aqui em questão, tornar-se policial, não corresponderia simplesmente a aprender as disciplinas constantes do currículo obrigatório e obter êxito no desempenho de determinadas práticas. Para tornar-se profissional seria necessário submeter-se, ao longo do período de formação, a um verdadeiro processo de (re) construção do self, uma espécie de conversão identitária que consistiria em transformar a si mesmo e a incorporar um novo conjunto de idéias, concepções e valores a respeito do novo papel que deverá ser desempenhado profissionalmente. Mas, sobretudo, tornar-se profissional seria empreender o deslocamento entre o “modelo ideal” e a “realidade prática”, feita de “trabalhos sujos” (dirths works), de disputas e controvérsias entre os vários segmentos do grupo profissional e da própria sociedade.
Dessa forma, o modo particular como o agente policial enxerga o “mundo ao seu redor”, adquirido ao longo de seu processo de socialização e formação profissional, e, conseqüentemente, o modo através do qual ele desempenha seu papel, é uma chave fundamental para a compreensão do comportamento e das atitudes da polícia.
No caso da formação tradicional dos agentes policiais no Brasil, muitos têm sido os estudiosos que chamam a atenção para um processo de socialização que enfatiza a internalização de determinadas práticas e valores orientados para um modelo extremamente militarizado, onde os princípios da hierarquia e da submissão instrucional serviriam de justificativa para a aplicação de ritos de humilhação e práticas violentas e desrespeitosas infligidas aos agentes policiais.
Tal modelo teria como finalidade a transformação do indivíduo civil em agente policial, através da incorporação de atitudes que naturalizariam essas condutas, como oportunamente nos chamou a atenção, em sua conferência no IV Fórum Internacional de Formação Policial, nossa colega da Universidade de Buenos Aires, a professora Sofia Tiscornia. Tais práticas e condutas constituiriam uma verdadeira cultura policial que se traduziria em formas de abordagens e aplicação de procedimentos que muito pouco se aproximam do tipo ideal de relação entre instituições de segurança pública e comunidade, mencionada inicialmente.
No caso da cidade do Rio de Janeiro, como exemplo dessa relação, podemos considerar a atuação policial, sobretudo nas favelas e bairros de periferia, geralmente caracterizada pelo autoritarismo e pelo desrespeito aos moradores. A percepção destes sobre a violência vivida em suas “comunidades”, embora vinculada de um modo ou de outro à questão do tráfico de drogas, encontra-se diretamente relacionada com a atuação da polícia. É comum a invasão de residências sem mandado judicial em busca de eventuais suspeitos, muitas vezes interrogando os moradores com brutalidade ou praticando atos de tortura. Do ponto de vista dos agentes policiais, os moradores dessas “comunidades”, em sua maioria negros, mulatos e pardos, afrodescendentes, portanto, são sempre considerados, “bandidos em potencial”, não sendo mesmo reconhecidos como cidadãos e sim como “elementos”, como bem nos mostrou o professor Jorge da Silva em seu livro Violência e Racismo no Rio de Janeiro (Silva,1998). Sobretudo os jovens, sobre os quais recai, com maior vigor, o peso dessa forma de discriminação social que os estigmatiza como delinqüentes potenciais.
Tal fato reforçaria ainda mais a percepção negativa da polícia por parte dos moradores de tais localidades. Sua ênfase nas críticas à atuação dos agentes policiais, sobretudo nas “favelas”, seria função não apenas de sua experiência como moradores, mas também, possivelmente, o esboço de uma reação à condição de serem vítimas preferenciais da ação policial. Pois, o que de fato se verifica é que a polícia muitas vezes não mantém uma política de atuação nessas comunidades, não estabelecendo nenhuma outra forma de interação com os seus moradores.
Assim, sua forma de intervenção caracteriza-se, de modo geral, pela violência e arbitrariedade, oscilando conforme a conjuntura e as mudanças no comando. Também é importante destacar que a corrupção praticada por policiais que atuam sistematicamente “nos morros”, além da relação de extorsão que muitas vezes mantêm com os traficantes, corrobora sobremaneira a imagem negativa que o morador tem dos agentes policiais (Oliveira e Carvalho,1993).
Mesmo naquelas comunidades onde existem unidades ou postos policiais (unidades inicialmente denominadas como Divisão de Policiamento Ostensivo-D.P.O. e, posteriormente, Posto de Policiamento Comunitário – P.P.C.), geralmente os agentes só mantêm relacionamento com os moradores da área contígua ao posto. Muitas vezes, os próprios moradores procuram se aproximar e manter relações amistosas com os policiais como parte de uma espécie de estratégia de defesa. Entretanto, a presença policial nas áreas residenciais de baixa renda ou nas “favelas”, seja ela vertical ou horizontal, é percebida com críticas, uma vez que a atitude dos agentes policiais dificilmente muda em relação aos moradores da localidade. Dessa forma, reforça-se permanentemente a atmosfera de desrespeito e arbitrariedade que parece caracterizar a imagem que os moradores têm da ação dos agentes policiais (Oliveira e Carvalho,1993).
Tais atitudes impossibilitariam a reversão da relação de desconfiança com relação à polícia, tornando sempre distante sua transformação no sentido de uma abordagem mais profissional, baseada no respeito à dignidade e no reconhecimento dos direitos inerentes à cidadania, que pudesse alcançar o respeito e a confiança dessa população. Do ponto de vista dessas populações, o respeito ao trabalho do policial está diretamente relacionado ao respeito que tais agentes possam vir a manifestar pelos moradores. Caso contrário, a única base que restaria para o exercício da autoridade policial seria a violência e o medo, infligido diuturnamente, mas cuja eficácia só se mantém até o momento em que a outra parte for capaz de efetivar uma reação com maior força, gerando cada vez mais insegurança.
Mas, na verdade, um dos objetivos aqui é exatamente chamar a atenção para as novas propostas de formação profissional dos agentes policiais que vêm sendo implementadas nos últimos anos, buscando refletir criticamente sobre as práticas tradicionais relativas às ações e procedimentos das instituições e agentes responsáveis pela segurança pública. Tais iniciativas, como, por exemplo, o Curso de Especialização em Justiça Criminal e Segurança Pública (NUFEP/ICHF-UFF), entre outras, são tão oportunas quanto necessárias.
Mas é preciso retomar o fio da meada e não perder de vista as relações que devem ser necessariamente estabelecidas entre os processos de formação e socialização profissional e um sistema de práticas e procedimentos que, de algum modo, tratarão de refleti-lo.
Assim, ao considerar o papel das instituições de segurança pública em sua relação com a comunidade, procurei não só chamar a atenção para o referido nexo entre o processo de socialização e formação profissional e o sistema de práticas que o constitui; mas, também, tentar refletir sobre outras possibilidades que, ao menos de forma ideal-típica, poderiam nos orientar na busca de um novo modelo de interação entre as agências de segurança publica e a coletividade.
A partir das considerações aqui apresentadas, seria importante indagar em que medida essas novas propostas de formação policial têm efetivamente engendrado novas práticas no que diz respeito às formas de abordagem e procedimentos operacionais dos agentes policiais. Torna-se necessário, no entanto, reconhecer que iniciativas tais como programas de reforma e de profissionalização direcionados às instituições de segurança pública se defrontam freqüentemente com uma cultura policial que se expressa através da resistência às mudanças e da inércia da própria organização das instituições policiais (Monjardet, 2001).
Certamente que esta afirmação deve ser matizada na medida em que toda instituição policial é composta por diferentes segmentos, dentre os quais alguns reagem mais facilmente do que outros às novas orientações. No entanto, é interessante observar que geralmente aqueles que oferecem mais resistência às mudanças sejam exatamente os segmentos que se encontram na base dessas instituições e que formam seus maiores contingentes. E nesse caso não consigo deixar de me perguntar: mas não seria talvez importante considerar que os mais jovens procuram emular os mais velhos, os veteranos, os mais experientes, os mais poderosos, os que mandam, enfim, os que estão no topo da pirâmide?
Há aqui um aparente paradoxo, já que indica que os agentes que se encontram mais próximos e em permanente contato com a comunidade, sejam talvez aqueles os que mais resistiriam em seguir as novas orientações e implementar as novas práticas. Talvez a aparente autonomia que desfrutam quanto à qualificação das ocorrências no que diz respeito à natureza, alcance, riscos e modos de regulação das mesmas, possa vir a permitir ao agente policial (que se encontra na base dessa estrutura, na “ponta”, como se costuma dizer) a aplicação de práticas e procedimentos que nem a regra nem a hierarquia podem enquadrar inteiramente.
Portanto, se esperamos que algumas mudanças se operem no que diz respeito à relação das instituições de segurança pública com a comunidade é preciso continuar investindo no sentido de estabelecer efetivamente um distanciamento desses segmentos das práticas operacionais passadas, através da internalização de novas condutas táticas e estratégicas.
Enfim, as indagações que trago e que espero possam ser aqui compartilhadas nada mais são do que observações de uma antropóloga que tem acompanhado, a uma certa distância, o trabalho de colegas pesquisadores e profissionais na área da segurança pública. Espero ter contribuído de alguma maneira para essa discussão.


Nota

1. Este trabalho foi originalmente apresentado, sob a forma de comunicação, no IV Fórum Internacional de Formação Policial, realizado no período de 7 e 9 de outubro de 2003, na Universidade Federal Fluminense. Agradeço ao convite feito pelas professoras Ana Paula Mendes Miranda, Gláucia Mouzinho e Kátia Sento-Sé, através do NUFEP/ICHF-UFF.

Referências bibliográficas

HUGHES, Everett. Men and Their Work. Glencoe: The Free Press,1958.
HUGHES, Everett; BECKER, Howard; GEER, B. & STRAUSS, Anselm.
Boys in White: Students Culture in Medical School. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
MONJARDET, Dominique. Profissionalismo e mediação da ação policial.
Antropolítica-Revista Contemporânea de Antropologia e Política, n.10/11, Niterói, EdUFF, 2001, pp.7-29.
OLIVEIRA, Anazir Maria & CARVALHO, Cyntia Paes. Favelas e as organizações comunitárias – Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião. Petrópolis: Vozes, 1993.
SILVA, Jorge da. Violência e racismo no Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 1998.
SKOLNICK, Jerome H. & BAYLEY, David H. Policiamento comunitário – Questões e práticas através do Mundo. São Paulo: Edusp, 2002.
STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras – A busca da identidade. São Paulo: Edusp, 1999.

Resumo
O presente artigo discute o papel das instituições de segurança pública através da consideração das práticas e ações dos agentes policiais. Partindo do princípio de que tais práticas refletem, na verdade, toda uma concepção e estilo de gerenciamento e organização de agências e agentes policiais, tomamos o processo de socialização e formação profissional de tais agentes como objeto de análise, a partir das contribuições sobretudo da sociologia dos grupos profissionais desenvolvida por Everett Hughes, Anselm Strauss e Howard Becker, entre outros sociólogos da Escola de Chicago.

Palavras-chave
Segurança pública, sociologia dos grupos profissionais, socialização e formação profissional, polícia e comunidade.

Resumé

C’est article met en question les institutions de sécurité publique en prennant en compte les pratiques et les actions des agents de police. En partant du príncipe que des tels pratiques reproduisent toute une conception et un style de gestion et organisation des agences elles mêmes et des agents policiers, nous prenons ici en considération le processus de socialisation et de formation professionelle de ces agents comme objet d’analyse, en prennant les contributions surtout de la sociologie des groupes professionelles devellopée par Everett Hugues, Anselm Strauss et Howard Becker, parmi d’autres sociologues de l’École de Chicago.
Mots-Clés Sécurité publique, sociologie des groupes professionelles, socialisation et formation professionelle, police, communauté.

*Bacharel em Ciências Sociais, Mestre em Sociologia e Doutora em Antropologia pelo IFCS-UFRJ. Autora de artigos na área de Pensamento Social Brasileiro, Teoria Antropológica e Antropologia Urbana, é pesquisadora associada do LeMetro – Laboratório de Etnografia Metropolitana/IFCS-UFRJ, e professora da UERJ e do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes.

Nenhum comentário: