quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sobre o Processo Administrativo

Como prometi na postagem anterior, gravo o primeiro texto doutrinário sobre o Processo Administrativo. Espero que seja lido pelos ilustres titulares do poder disciplinar na PMERJ e no CBMERJ e por todos os que se propõem a defender a Carta Magna e o Estado Democrático de Direito como verdadeiros escudos contra a violação dos direitos e garantias individuais.



O contraditório e a ampla defesa no processo administrativo
Ary César Hernandez (*)
Promotor de Justiça – SP


SUMÁRIO: 1 – Generalidades. 1.1 – O poder disciplinar. 1.2 – Requisitos da aplicação de sanções. 2 – Dos procedimentos para imposição de sanções administrativas disciplinares. 2.1 – Dos procedimentos. 2.1.1 – Da verdade sabida. 2.1.2 – Da sindicância. 2.1.3 – Do processo administrativo. 3 – Do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. 3.1 – Das Disposições Constitucionais. 3.2 – Da ampla defesa. 3.3 – Do contraditório. 3.4 – Do devido processo legal.


1 – Generalidades

1.1 – O poder disciplinar

Dentre os poderes que tem a Administração, um deles se destaca em âmbito interno, qual seja, o poder disciplinar, que consiste na faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração,(1) e é justamente por isto que não se confunde com o poder punitivo (jus puniendi) do Estado, que é exercido através da Justiça Penal e tem caráter externo, voltado a todos os que possam praticar infrações penais.
Uma mesma infração pode dar ensejo à punição criminal e à administrativa, porque esta é um minus em relação àquela, do que resulta que toda condenação criminal, quando relacionada ao serviço, acarreta a respectiva punição administrativa, mas nem toda punição administrativa acarreta sanção penal.
Outra característica do poder disciplinar é a de que é conferida certa discricionariedade do administrador, que pode, dentre as penalidades previstas em lei, aplicar a sanção que se afigurar conveniente e oportuna. Assim, uma certa falta não implica numa sanção específica, mas em uma das sanções previstas.

1.2 – Requisitos da aplicação de sanções

Para a aplicação da sanção administrativa, entretanto, é necessário que se assegure ao infrator o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal (“due process of law”).
Também é de se considerar que motivação é imprescindível, mesmo porque, a falta deve ser demonstrada como o motivo da punição e a discricionariedade a que nos referimos envolve somente escolha da sanção dentre as previstas em lei, jamais o livre arbítrio de se punir injustificadamente.
Assim sendo, o Poder Judiciário, ao analisar a legalidade de atuação do poder disciplinar da Administração, só poderá apreciar a infração do ponto de vista material e jurídico, não podendo adentrar na matéria reservada ao administrador, qual seja, a escolha da sanção.

2 – Dos procedimentos para imposição de sanções administrativas disciplinares

2.1 – Dos procedimentos

Para a imposição das sanções administrativas decorrentes das infrações praticadas pelos servidores públicos, havia três modalidades de procedimento:

2 – Dos procedimentos para imposição de sanções administrativas disciplinares

2.1 – Dos procedimentos

Para a imposição das sanções administrativas decorrentes das infrações praticadas pelos servidores públicos, havia três modalidades de procedimento:

2.1.1 – Da verdade sabida

Verdade sabida era o procedimento de imposição instantânea da penalidade administrativa, quando o servidor fosse surpreendido praticando uma infração administrativa ou logo após tê-la praticado. A penalidade era imposta como que em estado de flagrância pelo superior hierárquico, que tomava conhecimento imediato da infração praticada e, usando do poder disciplinar, instantaneamente
aplicava a respectiva sanção.
Assim sendo, quando, verbi gratia, um chefe de serviço surpreendesse seu subordinado dormindo na repartição pública, como ele próprio já tomara imediato conhecimento de uma infração, também imediatamente já aplicava a penalidade administrativa, sem qualquer oportunidade de defesa ao servidor tido por faltoso, que, caso pudesse demonstrar sua inocência (ex. por ser diligente e assíduo, não quisera faltar ao serviço nem mesmo quando o médico lhe receitara certo medicamento que causava o inconveniente da sonolência), ficava impossibilitado de defesa, nada podendo dizer em seu benefício, já que só lhe restava a via recursal administrativa ou mesmo a via judicial para rediscutir a matéria.
Importante salientar que, a partir de 1988, com a edição da atual Constituição Federal, que estendeu os princípios do contraditório e da ampla defesa ao procedimento administrativo, a aplicação de penalidades administrativas através da “verdade sabida” deixou de existir, porque, em razão da imediatidade da aplicação das sanções, tal procedimento se distancia do que o legislador constitucional adotou como norte dos procedimentos administrativos, por suprimir a possibilidade de defesa e implicar em punição sumária.

2.1.2 – Da sindicância

Sindicância é o procedimento administrativo usado para perfeita apuração de irregularidades no serviço público, praticadas pelos respectivos servidores. Funciona como procedimento inquisitivo e tem-se entendido que nem mesmo é necessário que tenha a publicidade de seus atos.
A sindicância, conforme foi dito, se presta à apuração da eventual materialidade da infração administrativa e sua autoria, a exemplo do que faz o inquérito policial em relação às infrações penais. Não serve, portanto, como meio para a aplicação de penalidades administrativas, a não ser que, desvirtuado seu caráter inquisitivo, seja previsto o contraditório e a ampla defesa durante seu procedimento, como acontece atualmente com alguns estatutos, que ainda a prevêem como procedimento para aplicação de algumas penalidades administrativas, como acontece com a Lei Federal nº 8.112/90 (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União).
Em casos tais, é de consignar-se que, em realidade, embora continuando a levar o mesmo nome, não se trata propriamente de sindicância, mas de verdadeiro processo administrativo, porque se necessário o asseguramento da ampla defesa e o contraditório, haveria a perda de seu caráter inquisitivo, essencial à sua configuração. Assim sendo, em sua correta aplicação, a sindicância se destina à apuração de irregularidades no serviço público, em qualquer situação em que não se mostre conveniente a imediata instauração da processo administrativo, como seria o caso de não ser bem certa a existência de uma infração administrativa, de, embora certa a ocorrência da infração, não ser clara a autoria, ou mesmo quando se tratam de meras irregularidades que determinem uma melhor disciplina do serviço e não propriamente uma punição, ocasião em que se faria presente o poder hierárquico e não o poder disciplinar.

2.1.3 – O processo administrativo

Processo Administrativo é o procedimento usado para apuração de infrações administrativas e imposição da respectiva penalidade. Deve ele seguir o due process of law e o contraditório, assim como assegurar a ampla defesa à pessoa processada, de modo a evitar-se que possa servir como instrumento de arbítrio e perseguições.
Cada estatuto pode prever um procedimento diverso para o processo administrativo, o qual, no entanto, deve ser estritamente seguido para a legalidade da aplicação da penalidade, não podendo haver procedimentos diversos para uma ou outra categoria de servidores, sob pena de inconstitucionalidade, por ofensa aos princípios da isonomia e do devido processo legal.
Portanto, somente através do processo administrativo, que resguarde a ampla defesa e o contraditório, é possível a aplicação de qualquer penalidade administrativa, para que não se mostrem feridos os preceitos constitucionais.

3 – Do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal

3.1 – Das Disposições Constitucionais

O Brasil, como um Estado Democrático de Direito, preserva a igualdade entre seus cidadãos e assevera que um dos seus termos é a necessidade do resguardo do contraditório e da ampla defesa aos litigantes em processos judiciais e administrativos.
Assim dispõe o Texto Constitucional:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(Omissis)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”.

Mais adiante, a Constituição especialmente resguarda aos servidores públicos a estabilidade, após dois anos de efetivo exercício, a qual só poderá ser suprimida mediante sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que seja assegurada a ampla defesa.
Estes são os termos da Magna Carta:

“Art. 41. São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em virtude de concurso público.
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa”.

Em várias outras passagens, especialmente ao tratar de algumas carreiras isoladas, como as da Magistratura, do Ministério Público, do Tribunal de Contas etc., a Lei Maior volta a deixar clara a necessidade da ampla defesa à aplicação de qualquer penalidade, de modo a restar induvidoso que estamos diante de um verdadeiro Estado de Direito.
Citemos alguns exemplos:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
(Omissis)
VIII – o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto de dois terços do respectivo tribunal, assegurada ampla defesa;”.
“Art. 128. O Ministério Público abrange:
(Omissis)
§ 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros:
I – as seguintes garantias:
a) ...(Omissis)
b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa;”.

Estudemos, pois, cada um desses princípios, consagrados pelo Texto Constitucional:

3.2 – Da ampla defesa

A ampla defesa consiste em se reconhecer ao acusado o direito de saber que está e por que está sendo processado, de ter vista dos autos do processo administrativo disciplinar, de apresentação de sua defesa preliminar, de indicação e produção de provas que entender necessárias à sua defesa, de ter advogado que o assista, de conhecer previamente das diligências a serem realizadas e dos atos instrutórios, para que possa acompanhá-los, de fazer reperguntas, de oferecer defesa final e recorrer.
A ampla defesa é princípio que também se dirige ao legislador, porque este deve ter em mente, na elaboração das leis infraconstitucionais, que está obrigado a velar para que todo acusado tenha defensor, que possa ter pleno conhecimento da acusação que pesa contra sua pessoa, das provas que a
alicerçam e da possibilidade de contrariá-las com outras. Só assim esse princípio estará resguardado, cabendo ao legislador não olvidá-lo na edição de nenhuma lei que regulamente qualquer atividade ligada à apuração de infrações penais ou administrativas.

3.3 – Do contraditório

Este princípio que também norteia o processo administrativo disciplinar exige que “em cada passo do processo as partes tenham a oportunidade de apresentar suas razões e suas provas, implicando, pois, a igualdade entre as partes”.(2)
Seria o mesmo que dizer que a cada ato produzido por uma das partes caberá igual direito da outra de a ele se opor ou de lhe dar sua versão ou mesmo a interpretação jurídica que lhe pareça correta. Daí resulta o caráter dialético do processo, que caminha através de constantes contrariedades a serem sintetizadas no ato final da conclusão do procedimento.
Poder-se-ia dizer que no processo administrativo não existem partes distintas, já que, se de um lado temos o acusado, de outro temos a própria Administração, a qual, além de encarregada do julgamento final, é também a parte acusatória. Assim, não haveria o contraditório, pois, de um lado haveria o servidor e de outro propriamente ninguém e ao mesmo tempo o próprio juiz da causa. Nada obstante, o que se verifica é que normalmente a autoridade encarregada da aplicação da possível sanção nomeia uma comissão processante, que se encarrega de apurar a falta, opinando, ao final, pela absolvição do servidor ou pela aplicação de determinada sanção, ao que não está adstrita a autoridade competente, que deve formar sua livre convicção e, fundamentando-a, tomar o caminho que lhe pareça adequado. Em conseqüência, de um lado teríamos o acusado e de outro a própria comissão processante, que seria encarregada da acusação e do próprio andamento do processo, muito embora outra seja a autoridade que, ao final, aplicaria a penalidade.
Aliás, aconteceria coisa semelhante no Processo Penal, onde uma das partes, em geral, é o Ministério Público, órgão estatal, e o julgamento final é proferido pelo juiz, também representante do mesmo Estado.

3.4 – Do devido processo legal

O due process of law é o princípio que impõe a impossibilidade de abstenção de certas condutas formais e obrigatórias para garantia dos acusados contra os arbítrios da Administração Pública, assegurando-lhes a observância do rito procedimental estabelecido em lei, o qual, conforme já ressaltado, foi previsto pelo legislador para lhes assegurar a plena defesa.
Desta forma, o devido processo legal é aquele em que todas as formalidades são observadas, em que a autoridade competente ouve o réu e lhe permite a ampla defesa, incluindo-se aí o contraditório e a produção de todo tipo de prova lícita que o acusado ou seu defensor entendam por bem produzir. Pode-se ver, portanto, que o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal são alguns dos muitos direitos e garantias individuais assegurados pela Constituição, todos eles visando o reconhecimento de princípios de um verdadeiro “Estado de Direito”, que nasceu como fruto dos movimentos revolucionários inglês, americano e principalmente o francês, quando se estabeleceu o princípio da legalidade, como dupla garantia: a de que o cidadão poderia fazer tudo o que a lei expressamente não lhe proibisse e a de que o Estado só poderia fazer o que a lei expressamente o autorizasse.

___________________
(*) Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Ribeirão Preto e do Curso Forensis. Obs.:

NOTAS EXPLICATIVAS
(1) Por exemplo, os despachantes policiais, que se sujeitam ao “Serviço de Fiscalização de Despachantes”.
(2) DIÓGENES GASPARINI. In “Direito Administrativo”, Ed. Saraiva, S. Paulo, 1993, pág. 606.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ao providencial anônimo

Infelizmente deletei o pequeno comentário de um anônimo, que ora reproduzo: "Que cabeça pequena!"
Não sei se a razão dele se prendeu ao meu comentário inicial, alterado no seu sentido porque eu esqueci de grafar a palavra "violação" onde está agora posta. Realmente, a falta da palavra tornou-se fatal ao verdadeiro entendimento do meu intróito. Já consertei.
Peço desculpas e agradeço ao leitor anônimo porque, em se tratando de texto primoroso e de terceiro, creio que a discordância dele deve ter sido em consequência do meu lapso. Não fosse o comentário, eu não teria percebido o erro.

Emir Larangeira