sábado, 19 de setembro de 2009

Sobre o conflito e o consenso

Um tema interessante da Ciência Política é a dicotomia Legalidade/Legitimidade. Elas são (ou deveriam ser) tão íntimas que poderíamos alegoricamente imaginá-las como o espermatozóide e o óvulo fundindo-se a fazer nascer o saudável Estado Democrático de Direito. Sem a fecundação, entretanto, a vida não ocorre. Portanto, a Legalidade é dependente da Legitimidade e vice-versa. Quando o óvulo não é fecundado, há a sua morte e o expurgo desagradável; quando os espermatozóides não encontram o óvulo, há o caos e a morte de todos. Nesta alegoria, seriam o óvulo e o espermatozóide (não necessariamente nesta ordem) o “Estado de Direito” e o “Estado Democrático”, dois modelos incompatíveis com a harmoniosa convivência social: o primeiro tende à tirania e o segundo, à anarquia...


O Estado contemporâneo emergiu de ideários e revoluções mundo afora e foi reconstruído para ser protetor da sociedade e fomentador do desenvolvimento. Essa proteção, no entanto, teve de ser delimitada à primeira de suas intenções: proteger a coletividade contra riscos e antivalores, instituindo-se para tanto sanções individuais e grupais. Porém o Estado não se conteve nos seus limites: arrepanhou para si a exclusividade da vigilância e da punição, incorporou o monopólio da violência legal e culminou um tirano “a serviço da liberdade”. Neste caso, e tornando à alegoria, houve a fecundação e nasceu uma espécie turva de “Estado Democrático de Direito”; ou seja, o nascituro estatal veio à luz sem a saúde esperada, aflorando em teratogenia incurável. E este é o modelo prevalente em muitos países, incluindo-se o nosso, não importando se o defeito congênito haja sido obra da Legalidade (óvulo) ou da Legitimidade (espermatozóide), ou o contrário...
Alegorias à parte, a verdade é que uma das maiores lutas dos segmentos sociais diferenciados, desde então, tem sido encetada com o alvitre de ampliar as liberdades e os direitos a que o Estado geralmente se opõe. Enquanto os cidadãos buscam alargar a Legitimidade, o Estado finca seus pés na Legalidade, resultando daí muitos conflitos e poucos consensos. E o Estado, nascido como um aleijão devedor de respeito à sociedade (pai e mãe dele), inverte a ordem natural das coisas e se torna padrasto; transforma-se num “Leviatã” a serviço dele próprio e dos burocratas detentores permanentes do poder; porque são estes os verdadeiros mandatários do Estado, sendo a representatividade popular sua refém. E o Estado, vencedor inconteste dos conflitos, joga a escanteio o consenso e raramente se rende à Legitimidade, entendendo-se conflitos como desordens a serem atalhadas. Sim, o Estado é paternalista, interventivo e violento, enquanto assiste a sociedade curvar-se em clientelismo e resignação. E assim a Legalidade vem vencendo a Legitimidade.


Se atentarmos para o processo legislativo, é fácil perceber a superioridade do Poder Executivo, que tem no veto, sob vários pretextos bem amarrados à Legalidade, uma arma poderosa contra a Legitimidade tentada por via da representatividade proporcional. O argumento é o de que o Poder Executivo é majoritário, olvidando-se o fato de que as representações políticas são eleitas pelo mesmo cidadão, e as partes fragmentadas da sociedade não se contentam com anseios e valores comuns, o que, em última análise, seria a consagração do impraticável “comunismo”. Mas a tendência do Estado é a de pragmatizar um “comunismo” a igualar seres e vontades diferentes aos seus interesses inconfessos e imutáveis. Sim, a “igualdade entre os administrados” não recepciona o seu mais importante conteúdo: o direito dos cidadãos de serem socialmente diferentes. Daí os preconceitos, as discriminações e os abusos de poder promovidos pelo “Estado-leviatã” em tudo que é parte do mundo, em deturpação teratológica do “Estado Democrático de Direito”, como sói ser o nosso modelo tupiniquim. Ora, nós não vivenciamos um Estado Democrático de Direito! Aqui não há igualdade jurídica nem social...
Se antes reverenciávamos o Rei, hoje nos curvamos a um Estado talvez mais poderoso e cruel que o poder real. Se antes a palavra do Rei era a lei, hoje a lei é a vontade de um Estado inominado que não pode ser levado à decapitação, como outrora o povo punia seus reis tiranos. Na verdade, os burgueses foram os sábios da história: depuseram os reis e instituíram um sistema de vigilância e punição capaz de inibir as reações populares, as mesmas que abriram as trilhas do sucesso para esses poucos detentores do capital que atravessaram gerações e chegaram até os dias de hoje. Se antes havia o conluio dos senhores feudais com os reis, hoje há o conluio do Capital com o Estado. Enfim, as moscas só mudaram de nome e a receita do bolo é a mesma, ou seja, consequente da mais-valia pertencente a poucos, em detrimento da menos-valia afundando a plebe em miséria e conformismo históricos. Para conter as reações, claro, o Estado há de ser forte e a Legitimidade tem de estar a reboque da Legalidade. Como nos ensina Sidney Guerra, et al (2008)1: “Sem a necessidade de grandes explicações, basta relembrar que os direitos fundamentais inscritos na Constituição de 1988 sequer representam um consenso culturalmente partilhado pela cultura cívica do povo brasileiro, mas sim, resultam de um movimento de âmbito internacional que, por diversos motivos, fizeram com que o Brasil a ele aderisse.”
Com efeito, o nosso Estado Democrático de Direito é cópia conveniente de modelos alienígenas. Aqui nas plagas tupiniquins, e como dantes, a Legalidade é ainda a do Império. A Legalidade é a rainha de todos, e seu escudo é o “Estado de Direito” de antes, apenas travestido de “Democrático”; porque, na essência e na prática, nada mudou na convivência social pátria nem privilegiou os sofridos segmentos sociais que eram e continuam sendo vítima de variadas exclusões (política, social, econômica etc.). Aqui os conflitos são abafados à força do muque e jamais levam ao consenso da mudança de uma Legalidade que insiste em ser destoada da Legitimidade. Aqui, como nos ensina o autor supracitado2: “Se o indivíduo acata as regras e age em conformidade com o modelo normativo, independentemente de sua aprovação, tem-se um comportamento conformista. Por outro lado, caso seu comportamento não seja adequado ao modelo normativo, tem-se um comportamento desviado, ou um conflito.”
Ora, cá no Brasil o conflito que não interessa ao governo é logo enquadrado como desordem a ser atalhada mediante o uso da violência estatal. Num sistema desse não há lugar para a cidadania, a não ser aquela teorizada pelos capitalistas como se fora “realidade nacional” decorrente da “constituição-cidadã”. Ah, não há tempo para consenso, a não ser o do disfarce, o da mentira de um mesmo “Estado de Direito” mascarado de “Estado Democrático de Direito” para brincar de faz-de-conta com o povo brasileiro. Daí a necessidade de estimular (ou desestimular) a preço de vultosas verbas públicas os “sem-isso” ou “sem-aquilo” a encenar conflitos, para que o desgovernado Estado possa fingir tolerância ou intolerância diante desses orquestrados e ilegítimos movimentos populares em que todos são maus atores... Quanto aos naturais e autênticos conflitos, eles não podem nem devem conquistar nenhum consenso. Então, pau neles!... Para que fique “tudo como dantes no quartel de Abrantes”!...


1. Guerra, Sidney et al. Participação Popular na Segurança Pública, Freitas Bastos Editora, 2008, p.139/140.
2. Idem, p. 140.

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