sábado, 29 de agosto de 2009

Sobre o reencontro dos treme-terras



No sábado, 22/08/2009 (data antecipada), os oficiais da antiga PMRJ, remanescentes da Escola de Formação de Oficiais (EsFO), reuniram-se em confraternização na Avenida Feliciano Sodré, Niterói. A motivação não era das melhores: uma espécie de despedida das instalações onde todos estudaram de 1954 até 1975 (ano da Fusão da GB com o RJ).
A área foi vendida para um estaleiro em circunstâncias que desconhecemos. Não nos importou muito, é só um prédio, e ovo espatifado não se desespatifa; aproveitamos então o fato consumado para tentar rever os antigos companheiros, superiores e subordinados, que se formaram naquelas instalações durante três anos de internato, espécie de sessão nostalgia em vista da medida ditatorial que abruptamente sepultou nossos sonhos treme-terras.
Tudo começou por iniciativa da Sociedade Treme-Terra, mais especificamente por intenção do Cel PM Laurílio José da Silva, nosso ilustre presidente e integrante da primeira turma da EsFO. Contudo, colocar em prática o chamamento dos oficiais foi uma das mais árduas tarefas do grupo organizador. Ficou patente o quanto somos desligados uns dos outros; às vezes nem sabemos da morte de alguns bons companheiros; tornamo-nos elos desacorrentados; desconectamo-nos daqueles tempos de formação, aperfeiçoamento e do serviço ativo. As amizades e as inimizades se perderam no tempo...
Durante a solenidade, o espanto: companheiros que me ficaram na memória em juventude pujante me surgiam a mim avelhantados. O tempo passara e eu não o percebera, a não ser por convivência com poucos colegas. A maioria, espalhada pelos quatro cantos do RJ, não vi envelhecer. Guardei na memória a imagem da mocidade deles; muitos foram até meus alunos. Mas, como eu, culminaram vencidos pelo tempo, e não poucos desapareceram precocemente.
Curioso é que não foi difícil notar maior perda de quantidade entre os jovens. A violência urbana os atingira bem mais: morreram assassinados ou em acidentes automobilísticos; muitos enfartaram. Enfim, não nego o meu espanto por perceber a morte rondando a turma ali reunida, talvez em derradeiro momento. Já outros tantos vivos se ausentaram: ou por doença, ou porque não logramos localizá-los, ou não deram importância ao evento.
Sim, faltaram, e assim eu pude confirmar a materialização da nossa cultura divisionista tornada eterna em vista do modelo meritocrático que ainda vivenciamos na profissão. Começa na formação, por classificação em média ponderada e conceitos subjetivos, e segue carreira afora nas promoções por merecimento e antiguidade; em ambos os casos, porém, com os mais novos torcendo para que os mais velhos morram ou passem à inatividade.
E, dentro das turmas contemporâneas, a disputa pelas vagas de merecimento a enturvar amizades e a estimular desafeições. Demais disso, havia e há a ferrenha disputa por prestigiosos cargos internos, estes sempre em menor número que os habilitados a ocupá-los. Enfim, cada um dos oficiais de ontem e de hoje vivencia a hipocrisia ante a inevitável e apertada dança das cadeiras. Precisam bem mais dizer e menos provar que são melhores que seus iguais; saem “queimando o filme” de seus concorrentes em cisma que não se desfaz.
A tônica da convivência é a do mérito mensurado por meio de comparações fundadas em interesses de facções enturmadas no período de formação. Pior é que, mesmo dentro das turmas, há dissidências decorrentes de motivações inconfessas. Enfim, a disputa por espaços de promoção e cargo predomina em detrimento da união em vista do interesse público. O interesse pessoal vence o profissional e a corporação avança para trás...
Os objetivos pessoais intramuros são mais significativos que a missão extramuros. Os interesses individuais ou grupais internos se sobrepõem aos deveres institucionais externos; a pessoalidade prevalece sobre a impessoalidade, esta que se dissimula na hierarquia e na disciplina calcadas de cima para baixo a ferro e fogo. A visibilidade só é alcançada pelos que, em fortuna política de algum membro de sua facção, ocupam os cargos de projeção, em especial os comandos operacionais e o comando-geral.
Tudo se resume à pirâmide em cujo topo os vencedores se postam: os que lograram superar seus companheiros e chegaram à frente e ao alto sem se importarem como os métodos. Mas ficam por pouco tempo no andar de cima e logo desabam ao abismo da inatividade sem poder, feitos ou feitios de mandatário. Substituídos, são apenas números a engrossar a fileira dos esquecidos e malquistos. A maioria merece, com efeito, ser esquecida e malquista, porque não há nenhuma relação de admiração e respeito dos novos pelos velhos, e vice-versa, salvo ínfimas exceções.
Os velhos, na realidade, são ovos espatifados. Jamais se desespatifarão, a não ser nos raros casos de projeção transcendente à carreira original. Por sorte, e modéstia à parte, incluo-me neste caso por conta do meu ofício de escritor a alcançar corações e alguma razão dos que denominamos Público Interno e também de civis interessados em desvelar, por via da literatura que pratico incessantemente, a instituição PMERJ em meio ao ambiente em que vivem. Não sei, todavia, se é melhor ser esquecido ou lembrado. Afinal, não escrevo para que gostem de mim; escrevo o que me vem ao atino e nem sempre sou citado como exemplo a ser seguido. Na verdade, provoco mais que me conformo, e isto é terrível para um sistema formado por gentes que teimam em ser hipócritas com suas próprias gentes e rejeitam a polêmica. Quem tem razão é quem manda e superior não erra...
Ao que me parece, não há como mudar essa cultura do poder imediato a se servir dele mesmo fingindo servir à sociedade. É assim que indivíduos e grupos se vêm revezando ao longo dos tempos, e as turmas se sucedendo, e o histórico jogo de empurra seguindo a sua finalidade aparentemente impessoal e justa, mas que, no fundo, é personalista e injusta.
É lobo devorando lobo; é competição pelo poder, em vez de união em torno de objetivos institucionais voltados ao público destinatário dos nossos serviços. A melhor opinião é a de quem comanda, dirige ou chefia; o bom é quem cegamente obedece; o pior é quem contesta o mando, mesmo que cheio de razão. E a EsFO de hoje, com denominação mais pomposa de Academia Dom João VI, continua a jorrar turmas estimuladas pela mesma cultura divisionista de outrora.
Ah, pelo que vi e senti, essas turmas jamais serão reagrupadas em verdadeira confraternização no fim da estrada. Pois cada turma que avança deixa pedras e espinhos para ferir quem vem atrás igualmente atropelando valores e tornando-os desvalores. Foi o que eu vi e senti, sim, na reunião das turmas da EsFO: poucas gentes comparecendo e mínima interação entre os que se arriscaram ao encontro inédito em meio a alguns emocionantes abraços entre verdadeiros amigos, e admiradores, e admirados. Esses poucos salvaram a pátria!...
Apesar de tudo, valeu! Todos, amigos e inimigos, trataram-se lhanamente, cantaram o Hino da PMRJ em emoção, sem esquecer a letra, deram-se as mãos durante a missa. Muitos chegaram desacompanhados – sintoma de desagregação. Das duas, uma: ou se separaram e vivem em solidão ou não entenderam a importância de levar a família. Para mim, foi gratificante rever companheiros mais antigos e mais novos que eu tratando-me com afeição.
Revi meu comandante de EsFO, Cel PM Milto D’Ornelas Moreno, que me impressionava por sua visão prospectiva e seus conselhos futuristas. Acertou em tudo, exceto no desvelar prévio da Fusão e no fim dos treme-terras. Mas iremos até o último deles tentando congregá-los e abraçá-los, porque este é o Grande Objetivo da Sociedade Treme-Terra.



3 comentários:

Anônimo disse...

Caro amigo Larangeira,
Mais uma vez me vejo compelido a entrar no blog e postar uma mensagem de admiração pelos textos que vc escreve.
Mas o que me causou espanto foi tomar conhecimento de que a antiga Cia Escola da PMRJ, onde funciona atualmente a ESPM, com seus cursos de Aperfeiçoamento e Superior de Polícia, estã sendo vendida pelo governo do Estado para a iniciativa privada.
é inacreditável que isso esteja ocorrendo sem que ninguém proteste, sem inconformação, sem indignação.
Me faz lembrar uma antiga poesia de Maiakóvski que fala sobre a omissão das pessoas que quando queren reagir já não podem mais fazê-lo pela inação anterior.
Eu pessoalmente tenho muito carinho pelas instalações da ESPM, local onde fiz o CAO em 1988, ano em que o amigo feZ o CSP e em 1996 ano do último curso.
Em outubro de 2008, por iniciativa minha, a minha turma reuniu-se alí para comemorar 20 anos do CAO.
Um grande abraço do
TC FONTES

Anônimo disse...

Compadre,

Fiquei muito feliz com o encontro. Você deve ter escrito esse post num momento de pessimismo. Vi companheiros que não via há muito tempo. Lembrei-me de quando, aos 17 anos, entrei na Escola. Só boas lembranças. Essa coisa de desavenças, desunião, isso é assim mesmo. Acho até que, entre nós da PM, a coisa não é tão séria. Estou na Academia "universitária". Não tenha dúvida, é muito pior. Fogueira de vaidades. Somos felizes e não sabemos.
Abraço,

Jorge da Silva

Anônimo disse...

Caro amigo Larangeira,
Li com muita atenção o seu artigo.Fiz uma viagem no tempo.As suas palavras foram de uma felicidade incrível.Elas retrataram com muita sabedoria o que realmente é e será a nossa organização.Sem muita meditatação podemos chegar à conclusão de que se mudássemos a mentalidade poderíamos ulçtrapassar inúmeros obstáculos que são colocados a nossa frente.Como isso é humanamente impossível, temos que arcar com este ônus.Sou eterno admirador do seu comportamento com ser humano e companheiro.Que o nosso Bom Pai Celestial o ilumine sempre para que possamos ler muitas coisas escritas por voce.Parabens! Piancó
(Cel Geraldo Piancó)