segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Novo Estatuto da PMERJ IV

A legislação disciplinar da PMERJ

Crítica e Sugestões



Eivado de contradições, antiquado, cópia de diplomas legais destinados ao Exército Brasileiro (EB) em épocas remotíssimas ou adaptações malfeitas desses mesmos diplomas, a legislação disciplinar da PMERJ abate sobre a tropa em tal intensidade de imediatismo e injustiça que não seria demais afirmar que chega às raias da violência. Trata-se, com efeito, de modelo centrado em torno de coisas e não de pessoas, ou melhor, modela-as, as pessoas, como se fossem coisas. A começar pelo Estatuto, que se assemelha ao do EB em tempo de II Grande Guerra. Mas, enquanto o da força federal se aprimorou com o passar dos anos, a milícia mantém-se fiel ao modelo maliciosamente elaborado para evitar que convocados para a guerra se escusassem de suas responsabilidades inventando doenças, por exemplo.
Na verdade, a legislação da milícia é igual à do EB até nos pontos e vírgulas, “xérox” desta outra, que, como dito, adapta-se à modernidade, enquanto a milícia permanece no mesmo porto de embarque dos tempos da guerra. Inclui-se também no exemplo de legislação anacrônica o Regulamento Disciplinar (RDPM), que, para variar, em nada difere do modelo antigo destinado ao EB. Podemos acrescer a esse modo preguiçoso os textos referentes aos Conselhos de Disciplina (CD), de Justificação (CJ) e de Revisão Disciplinar (CRD), demais do Conselho Escolar Disciplinar (CED), este último destinado a avaliar cadetes, porém todos aberrantemente inconstitucionais.
De forma draconiana, a legislação disciplinar da PMERJ se volta contra a tropa como se fora a borduna do bugre. Cobra deveres exagerados e pune com rigor excessivo em regime onde prevalece a desconfiança de cima para baixo. Em contrapartida, há a insatisfação e a revolta de baixo para cima. Pior que tudo isso: a Justiça costuma privilegiar as péssimas soluções disciplinares, ressalvadas algumas importantes decisões que, aos poucos, estão predominando em favor dos prejudicados. Porém, ainda não se formulou uma jurisprudência segura e extensiva aos injustiçados em geral. Mais fácil seria a PMERJ mudar o modelo, porém não parece que isto incomode a nenhum dirigente, nem de ontem nem de hoje.
A impressão que fica é a do desleixo, ou pior, da incompetência daqueles que deveriam primar por um melhor futuro institucional. Contrário disso, porém, o modelo enraíza-se no que Erich Fromm designa em seu livro (Ter ou Ser?) como “modo ter” (“sou mais, na medida em que tenho mais”), com predomínio do egoísmo, da indiferença pelos valores pessoais em vez do respeito à dignidade da pessoa humana. A questão crucial é que o egoísmo, como igualmente ensina o importante estudioso, “refere-se não só ao nosso comportamento, mas também ao nosso caráter”. Maior exemplo do caráter dos dirigentes milicianos, em sua maioria, resume-se numa frase muito ouvida internamente: “Tenho a tropa na mão!” Isto, em resumo, o supracitado autor designa como “autoridade irracional”, típica autoridade hierárquica baseada no “ter”. E, neste caso, o desfecho seriam as “relações sociais autoritárias”, que se reduzem à idéia seguinte: “a autoridade hierárquica está estreitamente relacionada com a marginalização e o enfraquecimento dos que não têm autoridade.”
Enfim, vê-se a ênfase no “modo ter”, em detrimento do “modo ser”, embora o primeiro esteja sempre dissimulado no “parecer”, na “persona” embotando o “ter” por meio da falsa projeção do “ser”. Neste ponto, deve-se esclarecer que Erich Fromm generaliza a dimensão de seu estudo justificando-o como situação inerente a toda a humanidade, o que explica o modelo PMERJ não como aberração única, mas apenas um vagão acoplado à locomotiva do “modo ter”. Só que, na prática, as atividades milicianas deixam de ser produtivas e geradoras de motivação, dando lugar ao pessimismo e à desesperança. Por isso é comum verificar que o maior prazer do PM é a folga longe dos olhos desconfiados e punitivos dos superiores. Mas esse prazer não faz bem à saúde psíquica e física da pessoa humana representada pelo PM, mormente o de menor graduação ou patente.
Na verdade, o “caráter” voltado para o “modo ter”, por ser generalizado e cruel, provoca situações ambíguas e até estapafúrdias nas relações internas: o PM que sofre pressões de cima transfere-as para baixo até alcançar o soldado, este que, por sua vez, desconta tudo no transeunte destinatário dos seus serviços. E espera “ter” o máximo que possa conseguir para logo arribar de tão odiosa profissão. Com efeito, é este homem que vai às ruas para proteger o cidadão. Como?
Ora bem, talvez valha a pena discutir seriamente a questão da legislação disciplinar alterando o seu foco, que adrede rotula o ser humano como fundamentalmente mau, para outro, mais salutar, que situa o homem como basicamente bom, capaz de executar atividades produtivas e ser feliz. O inverso, porém, é o que prevalece: a execução sistemática de tarefas restritas ao “cumprimento do dever” e à fuga das ameaçadoras punições por motivos comezinhos. E, ao final das tarefas, surge invariavelmente a tristeza. É assim a disciplina na PMERJ: a imposição pelo temor da punição, em vez de um sistema de motivação que dignifique o ser humano e por aí o alcance em sua condição secundária de militar estadual. Cá pra nós, não é difícil mudar, basta coragem e crença na qualidade a ser aprimorada, e não na quantidade a ser facilmente descartada.
Sim, tudo isso pode mudar para melhor...
Por exemplo: a PMERJ poderia criar um só substitutivo para todas as modalidades de Conselho (CJ, CD e CRD), no bojo da criação de Tribunais Disciplinares nos moldes do Conselho de Justiça da AJMERJ, adaptando-se o rito da seguinte maneira:

1. Em cada Comando Intermediário haveria um Tribunal Disciplinar de Primeira Instância (TDPI) formado por Coronéis titulares e tenentes-coronéis substitutos, em número de cinco. O mais antigo seria o Presidente e os demais Membros seriam Relatores e Revisores por sorteio de cada Processo Disciplinar, todos, porém, com direito a voto, cabendo ao Presidente o desempate. Cada TDPI contaria com uma Secretaria para controlar os processos e assessorar os dignos juízes disciplinares na condução do rito e na observação dos prazos. Nem seria necessário sugerir um programa de informática para atender exclusivamente a esse novo sistema.

2. Em cada TDPI haveria um núcleo da Corregedoria Interna para funcionar na Acusação, contando ainda com as Delegacias de Polícia Judiciária Militar (DPJM) e com o Centro de Criminalística (CCrim) para desenvolver investigações e reunir provas de desvios de conduta ou de inocência dos acusados. Por outro lado, durante o desenrolar do rito processual disciplinar o acusado seria representado por advogado, garantindo-se assim a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos e meios a eles inerentes.

3. Em cada Comando Intermediário seria instalado um TDPI com estrutura física postando Acusação e Defesa lado a lado, tendo à frente, em plano mais elevado, os cinco Membros, sentando-se ao centro o Presidente, ladeado à esquerda e à direita por dois Membros. Ao lado desta tribuna, num patamar mais baixo, haveria um lugar para acomodar a testemunha, que prestaria depoimento sentada de frente para a Acusação e para a Defesa.

4. A lei de criação dos TDs determinaria a aprovação por decreto de Regimento Interno detalhando o rito processual e as regras de funcionamento até a decisão final, seguindo-se, por analogia, o rito do CPPM.

5. O Tribunal Disciplinar de Segunda Instância (TDSI) funcionaria no Quartel-General, tendo como competência o julgamento dos recursos interpostos pela Acusação ou pela Defesa contra decisões dos TDPIs. Além disso, julgaria faltas disciplinares cometidas por coronéis.

6. Os Membros dos TDPIs seriam nomeados pelo Comandante-Geral, tendo como Presidente o Comandante do Comando Intermediário e os Membros escolhidos entre os oficiais mais antigos. Em caso de necessidade, o Comandante-Geral poderia nomear oficial de outra OPM como Membro de TDPI.

7. O TDSI seria presidido pelo Chefe do Estado-Maior Geral, tendo como substitutos, no seu impedimento, o Chefe de Gabinete do Comando-Geral ou o Subchefe do Estado-Maior. Os demais Membros seriam escolhidos entre os coronéis mais antigos lotados nas Chefias e Direções Superiores.

8. O Comandante-Geral designaria qual TDPI julgaria os efetivos dos quadros administrativos e de saúde desvinculados dos Comandos Intermediários. Também os efetivos das Unidades Especiais seriam julgados por TDPI designado pelo Comandante-Geral.

9. A nomeação dos Membros de TDPI e TDSI teria validade de um ano, permitida a recondução ou a substituição de Membros a qualquer tempo em razão de afastamento por passagem à inatividade, doença, ou se alguns desses Membros figurarem na condição de acusados ou se declararem eventualmente impedidos.

10. Caberia ao comandante-geral dirimir dúvidas quanto ao funcionamento dos TDPI e TDSI, cabendo-lhe a responsabilidade de alterar o Regimento Interno, sem, entretanto, modificar o rito processual administrativo estabelecido Regimento Interno.

11. Todos os desvios de conduta seriam objeto de Averiguação por iniciativa do comandante, chefe ou diretor do acusado. Dependendo da conclusão do averiguador, as supracitadas autoridades dirigentes de OPM poderiam decidir pelo arquivamento ou por instauração de Sindicância Administrativa, ato a ser imediatamente comunicado ao TDPI referente, ou ao TDSI, quando for o caso.

12. Com a criação dos TDPI e TDSI, e considerando a obrigatoriedade da instauração de Sindicância Administrativa a gerar Processo Disciplinar em todos os casos, para decisão dos referidos tribunais, seriam extintos os Conselhos de Justificação, de Disciplina e de Revisão Disciplinar, cabendo aos TDPI e TDSI o encaminhamento ao Egrégio Tribunal de Justiça, mediante despacho do Comandante-Geral ao Secretário de Segurança Pública, das decisões de perda de patente de oficial ou de graduação de praças, para confirmação ou não pelo Poder Judiciário.

13. O Conselho Escolar Disciplinar (CED) seria mantido em vigor para aplicação nas Unidades de Ensino, podendo, todavia, a falta disciplinar ser objeto de Sindicância Administrativa ou de Inquérito Policial Militar. Finda a Sindicância Administrativa, ela seria encaminhada ao TDPI referente ou ao TDSI, iniciando-se o Processo Administrativo. No caso de IPM, o feito seria encaminhado à AJMERJ pela autoridade que determinou sua instauração, com cópia à Corregedoria Interna para avaliação e posterior decisão no sentido de instauração concomitante de Processo Disciplinar ou arquivamento para aguardar a decisão judicial.

14. O Comandante-Geral solicitaria ao Ministério Público e à OAB a fiscalização permanente do funcionamento dos TDPI e TDSI, nos termos da CRFB e das leis referentes. Ficaria a cargo do MP e da OAB estabelecer o modo como a fiscalização seria exercida.

15. Todos os Processos Disciplinares receberiam número de identificação e teriam seus dados divulgados pela Internet, em site elaborado para tal desiderato. Todas as reuniões dos TDPI e TDSI seriam públicas, liberado o acesso dos interessados no feito, com ressalvas quanto ao direito do acusado de ter a sua imagem e a sua honra preservadas, bem como garantida a ordem pública.

16. A Defesa e a Acusação teriam livre acesso ao Processo Disciplinar, estabelecidos os prazos de devolução no Regimento Interno, podendo ambas (Defesa e Acusação), e também os Membros dos TDPI e TDSI, solicitar diligências, perícias e outros meios de prova em busca da verdade real.

17. Outra alternativa de composição dos Tribunais Disciplinares seria por meio do aproveitamento de coronéis inativos (excetuando-se aqueles reformados sem poder prover os meios de subsistência), para julgar acusados até o posto de tenente-coronel. Esses oficiais inativos seriam convidados e indicados pelo Comandante-Geral ao Chefe do Poder Executivo, e remunerados mediante cargos em comissão compatíveis com a importância da função.

18. Também competiria aos Tribunais Disciplinares o julgamento dos pedidos de reinclusão, instituindo-se Processo de Reinclusão protocolado diretamente na Secretaria do Tribunal Disciplinar a que a OPM do requerente for vinculada. Também neste caso o rito incluiria embate entre Acusação e Defesa, sendo certo que a Corregedoria Interna poderia ser favorável à reinclusão. Não o sendo, e recebendo o Processo de Reinclusão decisão desfavorável, caberia recurso ao TDSI, e, sucessivamente, ao Secretário de Segurança Pública e, em última instância administrativa, ao Governador do Estado.

19. Seria garantido ao administrado, em todas as situações geradoras de Processos Disciplinares ou de Processos de Reinclusão, o pleito simultâneo junto ao Poder Judiciário, sem prejuízo para o acusado ou para o pleiteante à reinclusão.

Claro que a idéia aqui exposta é superficial e leiga. Acurada, porém, por especialistas em técnica legislativa e por juristas (a PMERJ conta com notável quadro de juristas), poder-se-ia conceber um Anteprojeto de Lei instituindo os Tribunais Disciplinares, abrangendo a feitura do Regimento Interno através de Decreto, tendo como foco o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, demais do direito de o administrado defender-se de acusações ou pleitear a sua reinclusão. No meu humilde modo de ver e ser, este seria um caminho rápido e seguro para sepultar as inconfessáveis anomias no trato disciplinar da tropa, geralmente concentrado em decisões isoladas de quem pode mais... Negar tal evidência não é mais possível. Daí a conclusão de que só eliminando a anacrônica legislação disciplinar, por meio de um substitutivo democrático, é que se resolverá o gravíssimo problema da disciplina na PMERJ, esta que ontem e hoje se poderia resumir no aforismo de Cícero (De Officiis, I, 10,33): “Excesso de justiça, excesso de injustiça.”
Por conseguinte, estamos ante um desafio monstruoso: mudar a cultura no seio da PMERJ, o que jamais se conseguirá mediante a implantação de modelos evolucionários de mudança de atitudes para gerar novos comportamentos. Os integrantes da PMERJ são refratários a novas idéias, são impertinentes na manutenção do status quo, por mais que cursos internos levados para as universidades, e por mais que professores civis demonstrem os erros institucionais em vista da modernidade e da necessidade de adequação às violentas transformações ambientais. Balzac disse que “a vida militar exige poucas idéias”. Foucault denunciou os “corpos dóceis”. Sociólogos e antropólogos já pesquisaram e provaram a necessidade de mudança na cultura da PMERJ. Mas nada disso surte efeito, nada sensibiliza os integrantes da instituição, que preferem o “tudo como dantes...”.
Daí a certeza de que a única via possível para produzir uma contracultura desejável seja por meio de mudanças revolucionárias. Traduzindo: através de leis assertivas, que obriguem o público interno a adotar comportamentos mais democráticos no trato entre superiores e subordinados e mais civilidade nas ruas. Se não for assim, nada mudará, e continuaremos sentados na estação da inércia vendo passar o trem da evolução social, certos de que possuímos “sete vidas” e dominamos o tempo.


Nenhum comentário: