sábado, 7 de janeiro de 2017

VIOLÊNCIA URBANA NO BRASIL – DESENCONTROS E MENTIRAS NÃO ENCOBERTAM A FALÊNCIA DO ESTADO BRASILEIRO EM RELAÇÃO À CRIMINALIDADE E AOS PRESÍDIOS.


“Abramos a História, veremos que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade com este único fim: todo o bem-estar possível para a maioria. Felizes as nações (se há algumas) que não esperaram que revoluções lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem.” (Cesare Beccaria in Dos Delitos e das Penas)
Quem trabalhou com Defesa Civil sabe que as mortes coletivas, em comoriência, produz mais estragos psicossociais do que as que ocorrem em tempos e lugares diversos. Daí é que as chacinas recentes nos presídios brasileiros estão fervendo em desdobramentos midiáticos, enquanto, por exemplo, o assassinato de mais de oito PMs no início do ano corrente, em proporções de mais de um por dia, algo espantoso, passa ao largo do clamor público e não desperta nenhuma solidariedade por parte da sociedade. Há a acrescentar, ainda, a prevalência dos preconceitos sociais contra policiais que exercem funções coercitivas e antipáticas, além de forte dose de rejeição em razão de ideologias extremadas de esquerda neste país tumultuado por rejeições ao que se apresenta como “público”, por razões óbvias. Na verdade, a rejeição afeta os três poderes da República, ao mesmo tempo em que faz emergir grupos messiânicos formados por burocratas que logo são idolatrados pela opinião pública a partir da influência de manifestações veiculadas por uma mídia sem compromisso com a investigação jornalística e maculada por ideologias tendentes ao gramscismo e semelhantes. Eis a inversão de valores, ou sua subversão deliberada, formando um caos onde a verdade desaparece como que sugada por um redemoinho de invencíveis proporções.



No caso das últimas chacinas em presídios, releva sublinhar as absurdas mentiras expelidas por importantes boquirrotos republicanos, logo desmentidas por documentos oficiais recentes. Isto bem demonstra o quanto os últimos governos marxistas-leninistas tornam inviável a crença nas tão propaladas mudanças propostas em eloquência por um governante que, embora legalmente alçado ao cargo máximo do Poder Executivo por demérito de sua parceira em campanha, sabe que não possui nenhuma legitimidade para tocar o Brasil em direção a um futuro promissor. Pois as pessoas por eles escolhidas são as mesmas de sempre, duvidosas e inconfiáveis em todos os sentidos, e ainda ameaçadas por operações policiais e ministeriais concentradas naquela minoria messiânica que quer mais e mais poder para atingir o ápice da “canonização”. Tal situação me faz lembrar uma importante autora, a socióloga norte-americana Martha K. Huggins, que denuncia essa “chantagem protecionista” que aqui resumo em transcrição do livro dela, escudado na citação que ela faz de R. I. Moore (The Formations of a Persecuting Society, Oxford, Blackwell):

 “(...) a transição de uma ‘sociedade segmentar tradicional para outra governada por um Estado implica uma mudança na definição de criminalidade’, que deixa de ser encarada como delito contra indivíduos ou grupos específicos, para passar a ser vista como um delito contra uma abstração, como ‘o interesse público’. De qualquer maneira, ampliar a definição de perigos para súditos ou cidadãos, e torná-la cada vez mais abstrata, proporciona uma justificativa para que se desenvolva um aparelho para conter o que é percebido como ameaça desse tipo.”

Em outras palavras, cria-se do nada uma ameaça, para que esta justifique os serviços de quem argutamente a instituiu, ou, como disse Charles Tilly (The formation of National States in Western Europe. Princeton, Nova Jersey, Princeton University Press), igualmente referido por Martha K. Huggings:

(...) Os construtores-de-Estados agem como empreendedores interesseiros que ‘criam [...] uma ameaça e a seguir cobram [...] ‘por sua redução’ [...] Uma ‘chantagem protecionista’ organizada pelo Estado existe na medida em que as ameaças contra as quais um governo protege seus cidadãos são imaginárias ou então consequências de sua própria ação. 

Voltemos ao caso das chacinas em presídios pátrios, que são de responsabilidade exclusiva do Estado Brasileiro (União, Estados Federados e Municípios), mas que, num primeiro momento, intentaram jogar nas costas de empresas particulares que administram alguns presídios, porém sem chance de o Estado, que detém o monopólio do uso da força, transferi-lo para o particular. Portanto, a ter sido transferida a administração de alguns presídios para o particular, junto com ela não o poderia ter sido transferido o controle absoluto dos apenados, situação de uso gradativo da força pelo Estado, um poder intransferível. Portanto, e para não alongar esta parte, a culpa pelas chacinas é do Estado, seja ele a União Federal, sejam os Estados Federados ou os Municípios, estes, principalmente, que precisam ser enquadrados nos ditames genéricos do caput do Art. 144 da Carta Magna: 

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: [...]”

Eis o foco de qualquer planejamento a ser feito pela União quanto à segurança pública. Pois o “dever do Estado”, por mim sublinhado, desde muito tempo é concentrado nos Estados Federados, e ninguém quer saber de construir presídios, embora contribuam para enchê-lo de criminosos por meio de seus órgãos repressores a partir das Guardas Municipais. E mais sabemos: a União só passou a construir presídios recentemente, e muitos dos apenados pela Justiça Federal (presos pela PF, pela PRF e demais entes de segurança pública federais) ocupam ou ocuparam vagas em presídios estaduais, um contrassenso. Na verdade, mandar algum dinheiro por meio do Fundo Nacional Penitenciário, sem trocadilho, funciona como penitência por parte da União em relação aos Estados Federados, que ficam com a pior parte: administrar o cumprimento das penas com todas as suas consequências, o que de pronto explica a má vontade dos governantes estaduais, hoje e sempre, com gastos na construção de novas unidades prisionais em vez de escolas e/ou hospitais, tendo ainda de entubar a falsa participação federal e a quase nenhum participação municipal na segurança pública, esta que, como um sistema integrado (globalístico), deveria abranger todos os subsistemas, em especial o subsistema prisional, que, cá entre nós, é o mais complicado de todos.


O que acontece atualmente no Brasil com o sistema prisional segue a lógica simples do crescimento populacional com o consequente aumento da criminalidade, ainda tendo de se considerar a sofisticação do crime a partir da globalização do narcotráfico e do tráfico de armas, o que no Brasil foi assunto de segundo plano durante o regime militar, que só queria saber de “subversão” e direcionou assim a polícia, culminando, no centro dos acontecimentos (Rio de Janeiro), na colocação de presos políticos junto com presos comuns no Presídio Candido Mendes, na Ilha Grande. Lá os presos comuns foram orientados por integrantes de facções guerrilheiras, principalmente o MR-8, e aprenderam a pensar e agir coletivamente, daí emergindo no universo do crime as facções, a partir da Falange do Jacaré, depois Falange Vermelha, depois Comando Vermelho, e por aí a ideia do “coletivo” nas prisões, que assumiu contornos definitivos também do lado de fora, tudo inicialmente ignorado por um sistema situacional cujo foco era exclusivamente voltado para a “subversão”. E assim seguiu o crime no Brasil, desenvolto deiante de um Estado ineficiente e autista, até chegar aos dias de hoje, com espantosa vantagem numérica, tecnológica e bélica para os bandidos. As chacinas vêm sinalizando isto desde muito tempo, desde um massacre havido na própria Ilha Grande, em reedição da “Noite de São Bartholomeu” francesa, lá pelos idos de 1572, conforme insinuou o Cel PM Nelson Salmon Bastos sobre a matança da Ilha Grande em 1979, que merece aqui o repise: (texto extraído da obra do jornalista Carlos Amorim, “Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado” (Editora Record)

“[...] Os preparativos para a guerra começam em ritmo febril. Colheres são raspadas na pedra até se transformar em facas. Pedaços de madeira com pregos são clavas medievais de combate. Armas de fogo são improvisadas: um suporte de madeira, um cano de ferro, uma única bala disparada com o impacto de um pedaço de elástico que carrega um prego. Estoques são afiados. Tudo que pode agredir, ferir e matar entra para os arsenais dos grupos rivais. De acordo com o relato que me foi feito pelo comandante Salmon, naquele mesmo dia os presos da Falange Zona Norte optam pela prudência e anunciam que não saem mais da Galeria C, nem para comer. Estão presos numa armadilha. Vai correr sangue no paraíso.



A segunda-feira 17 de setembro de 1979 amanhece ensolarada e quente na Ilha Grande. Céu azul. Nuvens baixas na linha do horizonte. O cenário é cinematográfico. Assim acaba o prazo dado pelo Comando Vermelho para a rendição da Falange Jacaré. Durante toda a madrugada, os "vermelhos" afiam as armas. Os inimigos, abusando da prudência, reúnem os líderes numa única cela, o cubículo número 24 da Galeria C, distante da entrada do corredor. Ali estão, além dos chefões, trinta presos de confiança. Na cela ao lado, outros vinte. Todos armados e dispostos a manter a qualquer preço o controle do presídio. O que acontece a seguir até hoje é mal contado. Mas o fato é que o Comando Vermelho invade a galeria ao raiar do dia, exatamente às cinco e meia da manhã. São dezenas de presos armados no corredor. O grupo anuncia aos berros que vai poupar a vida de quem se render, passando para o cubículo número 19, na mesma ala. Colchões e móveis são amontoados na porta das celas da Falange Jacaré. O fogo pode ser aceso a qualquer momento, alimentado por litros de álcool que os presos usam para aliviar as mordidas de percevejos e pulgas. A galeria é só gritos. A guarda do presídio, curiosamente, não se mete na tremenda confusão.



A pressão é tão grande que os prisioneiros encurralados resolvem enfrentar o ultimato frente a frente. Saem João Carlos da Silva, o Ratinho, e Ozório Costa, o Caveirinha. A ideia é mostrar que não têm medo e que tudo não passa de um blefe dos "vermelhos". A batalha é rápida, sangrenta, implacável. Mais de três dezenas de homens do Comando Vermelho caem em cima deles. São mortos a socos e pontapés, pauladas e golpes de estoque. Os corpos ficam estendidos no meio do corredor.



Sangue por todo lado. Isso basta para que dez presos se rendam e passem à "cela de segurança", cuja porta está vigiada pelo Comando. A guarda continua afastada. Um mistério!



A tensão aumenta. Um machado aparece na mão de um dos homens da organização e a porta do cubículo 24 começa a ser arrombada. Quatro inimigos do Comando tentam romper o cerco, desta vez os líderes mais temidos da Falange Zona Norte: Luiz Carlos Pantoja dos Santos, o Parazão, Jorge da Silva Rodrigues, o Marimba, Carlos Alberto Veras, o Naval, e José Cristiano da Silva. Um grito uníssono estremece o corredor:



— Morte aos canalhas!



Um massacre. Os quatro são despedaçados em minutos, a cela é invadida e outros dez presos são feridos. Em meio a tamanha violência, outros homens da Falange Zona Norte que estão na cela ao lado conseguem abrir um buraco na parede que dá para o pátio. Fogem usando "teresas", cordas improvisadas com ganchos de ferro na ponta que os ajudam a descer do segundo andar. Vão se refugiar no prédio da administração. Quase ao mesmo tempo, os guardas do Desipe e a tropa da Polícia Militar entram no campo de batalha. Tiros, bombas de gás. Porrada em todo mundo.

Dois presos do Comando – Édson Raimundo dos Santos e Ivaldo Luiz Marques de Almeida – são agarrados ainda com as mãos sujas de sangue. Mais duas prisões: Sebastião Prado Santana e Cidimar dos Santos. Na base do cacete, a paz e a ordem vão sendo restabelecidas no "Caldeirão do Diabo". Está no fim a Noite de São Bartolomeu, título que o comandante Salmon usou para definir o massacre no relatório que fez aos superiores. A única noite da história que acontece em plena luz do dia.



O mito da Noite de São Bartolomeu é muito antigo. No primeiro século da era cristã, no lugar onde hoje existe a Armênia, no centro da Europa, o apóstolo Bartolomeu foi preso, esfolado vivo e crucificado de cabeça para baixo. Aconteceu numa certa noite de 24 de agosto. Em 1572, na mesma data, houve um massacre de protestantes franceses, sob o reinado de Carlos IX. Dessa vez eram os católicos que trucidavam dezenas de pessoas. Mas a Noite de São Bartolomeu ganha fama mesmo na década de 30 do nosso século, quando o gangster americano Al Capone manda matar seus rivais de uma só vez na violenta Chicago da lei seca.



No Brasil, o massacre de 17 de setembro de 1979 marca a tomada do poder pelo Comando Vermelho na Ilha Grande. Os grupos menores, que viviam à sombra da Falange Zona Norte, estabelecem imediatamente um pacto com os "vermelhos": a cadeia agora tem uma só liderança. Isto, porém, não significa a paz. Pelo contrário: está inaugurado um período de lutas que vai se ampliar às penitenciárias do continente. Mesmo na Ilha Grande, continua a correr sangue. Dois dias depois da Noite de São Bartolomeu, em 19 de setembro, os presos Luiz de Souto Machado e Dácio da Cruz morrem a facadas no corredor da Galeria A. Os corpos chegam ao IML com vinte perfurações. No dia 29, o acerto de contas continua: Jorge Fernandes Figueiredo, o Pintinha, leva trinta facadas. O assassino de Pintinha é Marcos Sanini Escobar. Na delegacia policial de Angra dos Reis, ele declara com toda a franqueza, em depoimento prestado no dia 30 de setembro:



— Na cadeia, quem não mata morre. Pintinha tava nos devendo. Ontem cansei de esperar. Olhei pra cara dele e parti pra definição, com o estoque na mão. Não sei quantos furos dei nele, porque perdi a conta.



Toda essa matança sistemática leva o comandante Nelson Salmon a redigir um documento ao Comando-Geral da PM, à época chefiada pelo coronel Nilton Cerqueira, o homem que organizou a caçada e a morte do líder guerrilheiro Carlos Lamarca, da Vanguarda Popular Revolucionária. Uma cópia do relatório vai para o Desipe, com minuciosa descrição da luta interna no presídio e suas prováveis consequências. O documento não é levado em conta. E hoje não há uma única pista a respeito do seu paradeiro nos arquivos oficiais do estado do Rio. O próprio comandante Salmon admite:



— Depois disso, só tive problemas. Eles não acreditaram no que eu estava prognosticando. Meus companheiros da Ilha Grande chegaram a me aconselhar a não entregar o relatório. Até agora não entendo direito por que a verdade não podia ser revelada.



A incredulidade das autoridades estaduais tem um preço: a experiência do "fundão" vai ser levada a todas as instituições penais. O braço da organização vai se estender ao redor dos quatorze mil presidiários do estado do Rio de Janeiro, especialmente porque a direção do sistema penal comete um erro muito grave, transferindo para outras unidades carcerárias alguns dos líderes do Comando Vermelho e muitos dos seus inimigos. Momentaneamente, a população da Ilha Grande se reduz - mas a repercussão da matança aumenta. As novas e mais radicais palavras de ordem do Comando Vermelho são ouvidas em todas as cadeias:



1. Morte para quem assaltar ou estuprar companheiros;



2. Incompatibilidades trazidas da rua devem ser resolvidas na rua [...]”

E por aí segue a narrativa do exímio autor, jornalista de renome, ex-diretor de eventos especiais da Rede Globo, que afirma na introdução do seu livro que tudo que nele consta não é ficção, mas fruto de 12 anos de pesquisas. Ponho aqui esta parte para demonstrar a pouca memória das atuais autoridades públicas federais e para também ilustrar os leitores interessados no tema, sugerindo a todos os resgate da obra de Carlos Amorim para ampliar o conhecimento histórico das facções criminosas no RJ e agora no Brasil como consequência da globalização local (nacional) e internacional do crime organizado do tráfico. E para demonstrar, principalmente, que essas autoridades públicas de hoje, brincam com fogo jogando sobre ele mais gasolina.



E quem viver, verá!...





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