domingo, 3 de agosto de 2014

Teoria do combate ao crime V


“Que as alegres canções dos trovadores eram sufocadas pelo barulhento tilintar das armas, que as festivas passeatas com tochas eram substituídas por marchas guerreiras para os campos de batalha, e que os exuberantes jovens, no verdor da mocidade, eram chamados às armas pelo sino de guerra, para dar suas vidas pela igreja ou pela coroa, pela honra do senhor feudal ou pelo orgulho dos burgueses.” (René Fülöp-Miller in Os Santos Que Abalaram o Mundo)

 Quando ingressei na briosa, em 1965, como soldado raso, no antigo 1º BPM, em São Gonçalo (hoje 7º BPM), parecia-me a reedição do dia em que me apresentei no Terceiro Regimento de Infantaria do Exército Brasileiro (3º RI), em Niterói, para cumprir serviço militar obrigatório.
No EB, por ter eu concluído o 2º grau (Ensino Médio), fui relacionado junto com outros jovens em igual situação. O escopo do oficial do EB que nos separou era o de formar uma turma de oficiais da reserva (CPOR), em curso com duração de dois anos. Ocorre, porém, que os apadrinhamentos já funcionavam freneticamente, e a maioria não desejava mais que pular fora do barco para iniciar alguma faculdade civil. Daí o grupamento foi encolhendo, encolhendo, encolhendo, de tal modo que restaram uns quatro, dentre os quais lá estava eu, sem qualquer padrinho a me retirar da farda verde-oliva. Então, o oficial que nos atendia, antes animado por formar o seleto grupo que em fade desapareceu de suas vistas, e agora irado, dispensou-nos e nos atestou a dispensa do serviço militar obrigatório.
Na PMERJ, o ritual de ingresso foi semelhante: tropa de paisanos em formatura, sargento orientando os inexperientes jovens que se propuseram ao ingresso na briosa. Dali, todos foram encaminhados ao barbeiro, este, que lambia os beiços em sadismo e segurava sua máquina totalmente cega, enquanto nos postávamos numa improvisada cadeira a céu aberto; e quase que arrancados do couro cabeludo, os pelos se iam amontoando no chão, os recrutas raspados ao modo dos conscritos do Exército Brasileiro. Sim, tudo igual, pois é certo que saí dispensado da instituição verde-oliva de cuca raspada, primeira providência ao adentrarmos o portal do 3º RI.
De cabeça raspada ao modo “príncipe Danilo”, fomos então ao almoxarifado para receber os uniformes e o boné... Cena tragicômica, pois a roupa (farda) ou era maior ou menor que o corpo. Quando ocorria ser menor, o recruta trocava-a por peças maiores, pegava as botinas em número certo e ziguezagueava pelo pátio sem saber que fazer, porém mui ansioso pela presença do providencial sargento que momentaneamente sumira. Mas logo apareceria a determinar que todos vestissem a farda como estava e entrassem novamente em forma. Que cena!...
Depois de algumas orientações, e uma delas foi a de entrar em forma para o rancho com o uniforme de educação física (calção de brim cáqui, camiseta do tipo suéter, meia soquete branca e tênis preto que leváramos como parte do “enxoval”), houve a dispensa para cada um cuidar do seu uniforme até o dia seguinte. Ah, o desespero tomou conta do pequeno grupo de 25 recrutas, alguns vindos de longe e hospedados em quartel. No meu caso, filho de costureira e morador em São Gonçalo, foi tudo simples. Mas também os demais não se apertaram, eis que logo surgiu outro sargento oferecendo os préstimos de sua esposa costureira, que residia ao lado da unidade, e assim todos se apresentaram arrumadinhos para o primeiro dia de atividades do Curso de Formação de Soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Claro que já devendo a parcela da costureira, primeiro ato de gastar por conta antes de receber...
Sim, seríamos formados “soldados”, com todas as características de um infante, o que logo se percebeu pela ordem-unida disparada por um cabo. Durou tanto tempo que quase pela hora do almoço foi que ele, bastante suado, resolveu dar fim. E nós, recrutas, com os pés cheios de bolha devido ao uso dos apertados coturnos, de qualidade tão discutível que mais parecia casco de tatu, lá fomos nós, mancando, almoçar um “PF” entregue tal como de presidiário, com supostos cozinheiros dando-nos o prato cheio de feijão, arroz e peixe frito, mas com o sujo polegar enfiado no feijão. Ah, para não se dizer que o rango era ruim, veio também no prato batizado a dedão sujo um negócio que chamavam “guisado de chuchu”. Aguado... Cruz-credo!...
Parte da tarde, sala de aula, eis que surge mais um sargento dando as primeiras orientações teóricas e distribuindo alguns manuais, dos quais me lembro do RDE (Regulamento Disciplinar do Exército). Sim! Do EB! Tudo igual, nem cópia o danado era! E outro manual de “Emprego Tático” igualmente do EB. E houve, a partir daí, uma aluvião de apostilas cheirando a álcool, copiadas de manuais verdes-olivas, dando-nos a certeza absoluta de que daquele curso sairíamos infantes embriagados, e não policiais. Bem, para não se dizer que não havia alguma instrução policial, um sargento cuidou de nos apresentar um antigo manual da PMDF versando sobre Instrução Policial Básica Individual (IPBI), do qual teríamos de copiar o que o sargento dele extraísse durante as aulas e complementar com as finas e alcoolizadas apostilas.
E assim, diariamente, – alternando ordem-unida com maneabilidade (arrastávamos pelo chão poeirento ou lamacento carregando o Fuzil Ordinário – FO), tudo numa correria de dar gosto e temperada com algumas abobrinhas em sala de aula, incluindo a fala de monitores semianalfabetos (padrão da época), –  e assim, diariamente, seguíamos no curso... Mas para cada matéria havia um oficial instrutor, estes que jamais entraram em sala de aula para absolutamente nada.
Eis, em apertada síntese, como o CFSd (Curso de Formação de Soldados) chegou ao seu desfecho e passamos à nova condição de “prontos para o serviço”, soldados PM formados e entregues às companhias para exercitar os labores da profissão policial-militar (com hífen, pois se trata de composto por dois substantivos). Só que de policial sabíamos nada mais que aquelas aulas de IPBI. E muitos dos formados foram enviados ao interior do RJ para exercitar atividades de polícia em Destacamentos de Policiamento Ostensivo (DPO) onde não havia nenhuma polícia civil. Todos tão ignaros em polícia como quando eram civis...
Ora bem, o que terá mudado de lá para cá?
Muita coisa mudou internamente, sem dúvida, mas o RDPM continua cópia do mesmo RDE daquela distante época, demais de outros manuais verdes-olivas que insistem em se eternizar na briosa apenas mudando de capa – a cultura militar. Eis, portanto, o “militarismo PM”, autêntica mimese do EB de outrora, de tal modo que o Estatuto da PMERJ é cópia autêntica do Estatuto do EB de 1946, ainda com resíduos extremos de rigor disciplinar em vista da II Grande Guerra. Enquanto isso, do lado de fora tudo mudou, e como mudou!...
Mas a PMERJ pouco se preocupa em inovar para adaptar sua cultura aos novos tempos dos serviços policiais. Continua uma tropa de infantes. Não são policiais discriminativos, prestadores de serviços policiais. Pertencem ainda ao mundo dos “combatentes”, dos “guerreiros” – o mundo real da briosa.
Esta ambiguidade do militarismo na PMERJ (não me refiro às demais Polícias Militares pátrias, mas presumo que são poucas a diferenças) reflete-se negativamente nas ruas e intramuros, a ponto de a corporação mandar prender disciplinarmente policiais-militares em presídio de segurança máxima destinado a bandidos. Isto porque os policiais-militares (insisto no hífen e podem conferir) não mais suportam a anfibologia que permeia a sua profissão, acrescido do fato de que a tropa, por conta da invencível capacidade de retaliação manu militari da corporação, sofre horrores no seu cotidiano laboral.  Porque não há como instalar em cada PM um “servomecanismo” que consiga equilibrar seu concomitante exercício profissional de policial e infante.
Não sou contra o militarismo na PMERJ, desde que ele seja efetivamente adaptado à função policial, que é predominante nos dias de hoje, sendo certo que para exercitar o serviço policial não há nenhuma necessidade de tacanhos regulamentos feitos para controlar militares em tempo de guerra.

 

2 comentários:

tom telles disse...

Bom dia e meus sinceros respeitos.
Este texto me fez lembrar do CFSD de 2000, ainda que somemos 35 anos de diferença, nada havia mudado naquele inicio de década. Com sua descrição do "modus" de instrução e relação interpessoal entre gestor e colaborador, há de se perceber que nada mudou. Entretanto, extra muros o mundo,inclui-se pessoas, mudaram vertiginosamente.
Permita-me lançar uma questão!
O senhor não observa que as políticas e seus politiqueiros estão criando uma "anaconda azul" capaz de auto-devorar? Vejamos:A sociedade mudou, seus anseios mudaram, a forma de se comunicar revolucionou as relações interpessoais, em fim, o aspirante ao cfsd e/ou cfo são parte desta sociedade atual. Aí que uso a metáfora da cobra acima, pois há casos que estes aspirantes tomam posse com graduações e até títulos lato/stricto. Se a mudança intra muros Pmerj não vier a médio prazo, estes que hoje buscam a Briosa como MEIO DE VIDA, serão os primeiros a flamejarem fim desta honrosa corporação.

Anônimo disse...

Emir Larangeira disse:

Caro Tom Telles, você está coberto de razão, a briosa mais parece uma "anaconda azul" que já se come pelo rabo formando um "círculo vicioso". E desde muito tempo a instituição se tornou nada mais que meio de vida, na verdade desde que Brizola, na sua primeira gestão, transformou a PMERJ em secretaria e a entupiu de cargos comissionados, instituindo por um lado privilégios, e por outro discriminações, o que a Constituição Estadual (Art. 9º) proíbe. Antes, os oficiais, sendo ou não detentores de cargos e funções recebiam a mesma quantia e se mantinham independentes perante seus comandos-gerais. Corrupção à parte, e partindo do pressuposto de que todos são honestos, a diferença de ganho por postos e graduações idênticos instituiu a submissão por dinheiro e destruiu o moral da corporação. Não se pode mais falar de anseios e valores para uma tropa coesa, ela não mais existe. A impressão que eu tenho, - sem falar das facções internas que se autodestroem desde a formação na Academia em vista da disputa do poder interno, - a impressão que eu tenho é a de que esgotam a briosa como se esgotassem um poço no deserto, e depois da última gota, e sem mais minar água, o último a beber vai embora e fim. Não faz muito tempo um comandante-geral, do qual muito se esperava, mandou à letra todos os mais antigos que ele como se fossem leprosos. Depois alçou ao poder seus coleguinhas de turma e o resultado é que hoje os mais antigos assistem:fracasso total e descrédito jamais visto, salvando-se as UPPs porque interessam ao Sistema Globo que existam.